Brasil e a reaproximação com o continente africano por meio do Conselho de Segurança da ONU

31 de maio de 2022

Por Gabriel de Castro Soares, Heuler Costa Cabral, Leticia Pereira, Mohammad Nadir e Flávio Francisco (Foto: Pixabay)

 

O Brasil retornou ao Conselho de Segurança da ONU como membro não permanente por um período de dois anos. Segundo Ronaldo Costa Filho, representante do Brasil na organização, o país tem como um dos seus principais objetivos promover o debate sobre questões relacionadas aos países da América Latina e da África. A reaproximação com países africanos, após quase uma década de distanciamento, dessa vez, viria a partir da construção de agendas na área de segurança para resolver conflitos no continente.

A avaliação de Costa é de que 70% de todo o trabalho que envolve as atividades do conselho tem relação com as nações africanas. A experiência em missões de segurança, além da cooperação técnica na área de segurança com os africanos, credencia os brasileiros a protagonizarem as ações de pacificação e reorganização da infraestrutura dos países envolvidos em guerras. Entre os conflitos africanos que aparecem no topo da lista estão os confrontos políticos na Etiópia, os golpes militares no Mali e a reconstrução da Líbia após a queda de Muammar Khadafi. 

Os países africanos no conselho

A experiência africana é de grande relevância para a compreensão dos conflitos contemporâneos e a formalização de saídas diplomáticas para suas soluções. Ao longo da Guerra Fria, o continente foi muito importante para a estratégia das potências do período. Com o fim do embate, os interesses das superpotências em assuntos da região declinaram,  cortando programas de financiamentos e parcerias e colocando os países locais em um acentuado processo de insolvência. Os temas da segurança e estabilidade institucional surgem como as principais pautas para o continente africano, com o advento dos intensos conflitos no período de 1960-1990, em um contexto em que os países da região não conseguiam solucionar seus conflitos pelas vias institucionais. Como consequência de profunda instabilidade, a articulação política dentro dos organismos internacionais tornou-se uma alternativa às políticas individuais localizadas. 

O A3 – Bloco formado pelos três membros não permanentes africanos eleitos para o  Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU)-, que constitui 30% dos membros rotativos do conselho- é um dos grandes mecanismos para a articulação regional africana, recentes relatórios demonstram domínio das questões africanas sobre as discussões nas conferências (47% das reuniões, 64% dos documentos resultantes e 76% das resoluções com mandato no capítulo VII 19 referem-se a questões de paz africana), fato que não retira a baixa prioridade dada por essas pautas por outros integrantes do conselho. Historicamente, os membros do A3 concentram-se quase que exclusivamente sobre questões africanas, mas com certa independência nacional, fator que vem mudando, o grupo apresenta uma nova dinâmica, onde seus membros passaram a apresentar, desde 2019, posições unificadas sobre tópicos africanos, posição ainda mais acentuada com o acompanhamento pelo Conselho de Paz e Segurança da União Africana (UA). 

Figura 1 — Países africanos no conselho de Segurança das Nações Unidas (2004 – 2022)


Fonte: Elaboração dos autores, segundo publicação do Institute for Security Studies e atualizações da CSNU.

 

A parceria estratégica entre as Nações Unidas e a UA é um dos principais pontos para se entender a historicidade da formulação das pautas defendidas pelo bloco africano no conselho, ambas organizações vêm trabalhando em conjunto desde o ano de fundação da UA em 2002. A cooperação foi com o passar dos anos especializando-se na prevenção de conflitos e o gerenciamento de crises sobre o continente africano, toda experiência conjunta acabou por culminar na criação de um Quadro Conjunto em 2017, ONU-UA para Parceria em Paz e Segurança. As Nações Unidas vêm nos últimos anos promovendo discussões e trabalhos para a ampliação da parceria dentro Conselho de Segurança, apontando os numerosos frutos dessa colaboração, sendo eles, a viabilização e promoção conjunta de missões políticas especiais e para a manutenção da paz realizadas pela ONU, são exemplos: O caso da Líbia — com a elaboração de um acordo de cessar-fogo entre as partes do conflito observado pelas Nações Unidas, possibilitando a futura retomada das negociações políticas —, a facilitação para a transição de poder no Mali, o apoio para o estabelecimento de uma missão de observação militar na República Centro-Africana, entre outros. 

 

Figura 2 — Mapa de Operações de paz da ONU, UA ou Comunidades Econômicas Regionais (CERs) e suas parcerias, até 2019.


 Fonte: International Peace Institute. Elaborado pelos autores. 

Conflito no Mali

O Mali vive uma crise política desde 2012, resultado de golpes de Estado, por um lado, e da insegurança causada pela rebelião tuaregue, que reivindica a sua independência no Norte do país, por outro. Os tuaregues são povos tradicionalmente nômades no Norte dessa nação africana, Mali, e países vizinhos. Em janeiro de 2012, o Movimento Nacional para Libertação de Azawad, “país” tuaregue, acompanhado de alguns grupos extremistas islâmicos, como Ansar ed-Din (Movimento dos Defensores da Fé), e Movimento pela Unidade e o Jihad na África Ocidental (MUJAO), se apoderou da grande parte do Norte do Mali e declararam a independência de Azawad.

Em março do mesmo ano, o governo de Amadou Toumani Touré foi deposto pelos militares, acusando-o de incapacidade de conter as forças rebeldes. Em 2013, a autoridade maliana recorreu ao auxílio da força estrangeira, especialmente da França, que ajudou a recuperar a região norte. Em agosto de 2020, militares derrubaram de novo o presidente democraticamente eleito, Ibrahim Boubacar Keita. E em maio de 2021, as forças militares voltaram a tomar o poder, depondo o governo interino que haviam instalado, prometendo a realização das eleições no início de 2022, o que não aconteceu ainda. Por este fato, Mali ficou suspenso da União Africana e da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao); no início do ano 2022, a missão militar francesa também deixou o país, tornando a situação mais preocupante ainda.

A origem do problema tuaregue vem desde a independência do Mali, agravado, em grande medida, pela constante instabilidade política do país (Mali já conheceu mais de três golpes de Estados, 1968, 2012, 1991, 2020 e 2021). Mali foi uma colônia francesa que se tornou independente em 1960. Se localiza na África Ocidental, possui fronteiras com a Mauritânia e Argélia ao Norte, Níger a leste, Senegal a oeste e Guiné, Costa do Marfim e Burkina Faso ao Sul.  Antes da ocupação francesa, o seu lado norte, mais desértica, na parte do Saara, foi palco de grande expressão cultural e comercial, onde situavam antigos impérios de Gana, Mali e Songay. No período colonial, a França se interessou mais pelo Sul, zona fértil, tornando Bamako o principal centro urbano. Depois da independência, a política socialista de modernização, adotada pelo primeiro presidente maliano, Modibo Keita, considerou o nomadismo tuaregue uma ameaça ao desenvolvimento econômico; os tuaregues passaram a ser vistos como inúteis. Esta marginalização dos tuaregues, e a carência do investimento na região norte herdada do colonialismo, levou a esse grupo o desejo de independência, para formação do seu Estado que chamam de Azawad.

Isso motivou a primeira rebelião tuaregue, 1962 – a rebelião de 2012 foi a quarta. Houve outras duas rebeliões em 1990 e 2007. Depois da segunda e a terceira revolta, respectivamente, foram assinados, em 1991 e 2009, acordos de paz entre o governo maliano e os tuaregues, visando uma política de inclusão, de desenvolvimento e de autonomia da região norte, porém, esses acordos não foram cumpridos. Isso levou à mais intensa rebelião de 2012, acusando o presidente de quebra da promessa. Além das instabilidades políticas, a seca, que assolou o Sahel nos finais dos anos 60 a 80, e 2010 que causam a falta de comida e da crise humanitária maliana, contribuíram em enfraquecer a capacidade do Estado para responder a demanda da população e de cumprir agenda tuaregue o que aumentou mais a tensão social. 

Conflito na Etiópia

Entre os conflitos que podem ser um dos levantados pela frente brasileira na ONU, o etíope é uns dos que ganham maior destaque. De um país que ficou marcado por imagens fortes que circularam entre as décadas de 70 e 80 com pessoas, entre elas crianças, em grave situação de desnutrição, dessa vez o país enfrenta um outro conflito que tem como principal liderança envolvida o ganhador do nobel da paz, Abiy Ahmed.

Assim como muitos países do continente africano, a Etiópia conta com cerca de 80 grupos étnicos diferentes. Dentre eles, dois representam cerca de 60% da população, a etnia Oromo e a etnia Amhara. A terceira maior etnia que representa 7% da população é a etnia Tigré, que tem uma província localizada ao norte do país, e é esta etnia que vem ganhando a atenção do então primeiro ministro da Etiópia e ganhador do Nobel da Paz em 2019, Abiy Ahmed.

A TPLF – Frente Popular para a Libertação do Tigré – esteve a frente do comando da Etiópia por 27 anos, entre os anos de 1991 e 2018, mas saiu com a entrada de Abiy Ahmed, que assumiu com a promessa de unir todas as etnias de seu país. Mas isso não foi suficiente para a TPLF, eles queriam autonomia e acesso aos recursos da sua região (Tigré), o que gerou um alerta no então primeiro ministro, que apesar de ter sido consagrado com um Nobel por ter conseguido um acordo de paz com a Eritreia, um país inimigo de longa data, não mediu esforços para direcionar a segurança nacional contra a Frente de Libertação Tigré, em novembro de 2020.

As denúncias perpassam desde perseguições contra a etnia Tigré, fome, abusos e até genocídio. Hoje o conflito segue forte, mas sem grandes comoções. O governo etíope não fala sobre guerra e sim sobre terroristas que os atacam, enquanto a população de Tigré se diz abandonada pelo governo, e mesmo aqueles da etnia que discordam da guerra se veem obrigados a lutar contra o governo e garantir a sobrevivência de seus familiares que se encontram sem acesso a necessidades básicas, como saúde e alimentação.

Reconstrução da Líbia

O caso líbio é outro caso dos conflitos intermináveis que assolam o continente africano e em que as nações Unidas se sentem incapazes de resolver.  Após onze anos do início da revolta popular que pôs fim à ditadura de Kadhafi, o futuro da Líbia é repleto de incertezas. A queda de Muammar Khadafi em 2011 não deu lugar ao desejado Estado democrático que tantos sonhavam antes, pelo contrário provocou um caos no país causado pelo alastramento das milícias armadas.

Apesar do Conselho Nacional de Transição (2011-2012) ter tentado dissolver as milícias e pacificar o país, a verdade é que tanto as interferências externas assim como a luta pelo poder entre as diversas facções levou o país a uma profunda guerra civil e uma sequência ininterrupta de governos sem alcançar a paz desejada.

Os confrontos e desentendimentos entre as forças em presença, isto é, de um lado a Câmara dos Representantes da Líbia (CPL) eleito em 2014, também conhecido como o “governo de Tobruque”. Este governo tem a lealdade do Exército Nacional Líbio (ENL) sob o general Khalifa Haftar; o governo internacionalmente reconhecido como Governo do Acordo Nacional (GNA); o Conselho da Shura de Revolucionários de Bengazi, liderados pela Ansar al-Sharia e; Estado Islâmico do Iraque e do Levante da Líbia.

No dia 23 de outubro de 2020, as partes em conflito: o Governo do Acordo Nacional da Líbia (GNA), comandado por Fayez al-Sarraj, reconhecido internacionalmente, e as forças rebeldes do Exército Nacional Líbio (LNA), lideradas pelo general Khalifa Hafter, assinaram um acordo de cessar-fogo permanente.

No início de fevereiro de 2021, delegados líbios se reuniram em Genebra (Suíça), sob a mediação da Organização das Nações Unidas (ONU) e escolheram Abdelhamid Dbeibah para formar um governo de unidade nacional.

Com efeito e de novo as lutas de dois governos que disputam o poder: um nomeado pelo Parlamento em Benghazi, leste do país, liderado pelo ex-ministro do Interior Fathi Bashagha, e outro em Trípoli, liderado pelo empresário Abdelhamid Dbeibah e formado em 2020 após um processo político mediado pela ONU. Na segunda-feira à noite, o serviço de imprensa do Executivo nomeado em fevereiro anunciou “a chegada do primeiro-ministro do governo líbio, Fathi Bashagha, acompanhado por vários ministros à capital Trípoli para começar seu trabalho”. Poucas horas depois, no entanto, o mesmo serviço informou que Bashagha e seus ministros deixaram Trípoli para preservar a segurança dos cidadãos.

Em fevereiro, o Parlamento da região leste do país designou Bashagha para liderar um novo executivo com o apoio do marechal Haftar, o homem forte do leste, cujas tropas tentaram conquistar a capital em 2019. Mas Bashagha não conseguiu afastar o executivo liderado por Dbeibah, que afirmou em diversas ocasiões que só entregaria o poder a um governo eleito.

As disputas constantes entre os líderes políticos locais provocaram o adiamento da votação por tempo indeterminado. Para os rivais de Dbeibah, isto significou o fim de seu mandato. A produção de petróleo, principal fonte de receita da Líbia, é refém da situação política, com uma onda de fechamentos forçados de campos petrolíferos. Considerados próximos ao grupo do leste, os grupos na origem dos bloqueios exigem a entrega do poder a Bashagha e uma melhor distribuição de renda do setor. A produção caiu para cerca de 600.000 barris por dia, metade da média anterior, e provoca perdas de “60 milhões de dólares” por dia, o que dificulta a reconstrução do país.

 

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