Documento indica fórmula militar para fortalecer poder e visão de mundo na ditadura

14 de junho de 2022

Por Flávio Rocha, Anna Bezerra, Diego Jatobá, Felipe Lelli, João de Oliveira, Julia Lamberti, Lais Surcin, Larissa Gradinar, Lucas Ayarroio, Roberto Silva e Vinícius Bueno (Foto: Unsplash)

 

No último dia 19 de maio, o Brasil foi surpreendido com o lançamento do “Projeto de Nação”, um documento que propõe diretrizes a serem implementadas no país até 2035. O texto nasceu do trabalho conjunto de três think tanks: os Institutos Sagres, General Villas Bôas e Federalista – ligados a lideranças conservadoras, militares da reserva e também diretamente ao governo Bolsonaro.

O “Projeto de Nação” faz um exercício futurista de construção de cenários,  imaginando um Brasil a partir do ano 2035. Escrito do ponto de vista de uma consultoria fictícia, batizada de CPEAZ (Consultoria Política e Empresarial para as Américas), o trabalho olha para o passado e detalha as ações que o país tomou para chegar a essa conjuntura imaginária. Antes mesmo da análise do documento, um detalhe que chama a atenção, em se tratando de  documento fortemente identificado com o estamento militar brasileiro, é o nome da consultoria, que indica preferência liberal pelo jargão do mundo dos negócios, em detrimento de uma visão de Estado.

Nas supostas ações que foram tomadas no cenário descrito, o pensar “liberal na economia e conservador nos costumes” parece ter sido o motor da maioria das propostas. Há o foco numa suposta “desideologização” que teria acontecido tanto no campo social quanto no sistema educacional, onde seus conteúdos teriam sido substituídos pelos ideais “conservadores evolucionistas”.

Em um contexto de eleições próximas, o documento dá uma amostra daquilo que os militares, ou parte deles, esperam para um possível segundo mandato de Bolsonaro ou de futuros governos conservadores. Mesmo que não seja possível atrelar diretamente o texto à campanha bolsonarista, pode-se imaginá-lo como um fruto da maior presença das Forças Armadas nas estruturas políticas dentro do governo. É indicador também de como pretendem se utilizar da máquina para fortalecer o seu poder e visão de mundo, sem levar em consideração a opinião pública na formulação e aplicação das políticas apresentadas no projeto.

A respeito das relações internacionais, o documento busca reacender a discussão sobre o chamado globalismo. A definição que é dada ao suposto “problema” é: “movimento internacionalista cujo objetivo é determinar, dirigir e controlar as relações entre as nações e entre os próprios cidadãos, por meio de posições, atitudes, intervenções e imposições de caráter autoritário, porém disfarçados como socialmente corretos e necessários”. (Projeto de Nação, p.11) Os principais agentes desse movimento seriam “representantes do ultracapitalismo, com extraordinários recursos financeiros e econômicos”  e  determinadas entidades nacionais (Projeto de Nação, págs.11 e 12).

A atuação do chamado globalismo, entendida como perversa, seria compreender que problemáticas complexas e com potencial de influência nas relações internacionais (como crises econômicas, proteção ao meio ambiente e direitos das minorias) necessitam de certa coesão internacional para sua resolução. Porém, de acordo com o documento, isso não passaria de uma desculpa que pudesse legitimar um abalo à soberania nacional, como uma imposição globalista “especialmente em pautas destinadas a conceder benesses a determinadas minorias, em detrimento da maioria da população, a exercer ingerência em nosso desenvolvimento econômico, usando pautas ambientalistas a reboque de seus interesses e não pela necessária preservação da natureza, e a provocar crises que enfraquecem a Nação em sua busca pelo desenvolvimento” (Projeto de Nação, pág.12).

Apontam como outra forma de atuação o “ativismo judicial político-partidário”. Nesse caso os agentes estariam inseridos na política nacional (parcela do Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública) atuando de forma contaminada ideologicamente (Projeto de Nação, pág.12).

Em 2019, o ex-ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, definiu globalismo como “configuração atual do marxismo”. A comparação das definições do movimento evidencia uma enorme falha lógica: configuração marxista liderada por representantes ultracapitalistas. Entretanto, o abismo de sentido não torna o conceito menos popular e influente para aqueles que temem constantemente perigos externos a uma certa ideia conservadora de soberania nacional.

Ao longo do Projeto de Nação estão estabelecidas perspectivas pouco claras no que concerne à defesa nacional (tema 32, pág. 85) e relacionamento com países vizinhos e aliados, apesar do documento reforçar a competição entre as grandes potências. Entretanto, o documento não projeta adequadamente como seria esse Brasil de 2035 além das fronteiras nacionais, apesar de fazer constantes comparações com as National Security Strategy (NSS) dos EUA, tomadas como um dos exemplos para o projeto.

Por outro lado, o documento deixa bem claras as intenções dos militares e aliados no que concerne à inteligência e segurança pública. O governo Bolsonaro aumentou a influência dos militares no SISBIN (Sistema Brasileiro de Inteligência) e, segundo o documento, a tendência é aprofundar a relação entre os membros da comunidade de inteligência (tema 33, pág. 87), porém não deixa claro o quanto de influência militar estará presente. Já no quesito segurança pública, a presença militar é um dos objetivos a longo prazo, quando o documento expõe a necessidade de uma Gendarmeria Federal para o policiamento de fronteiras, portos e aeroportos, a criação de uma Guarda Costeira, além de reativar o Ministério de Segurança Pública, demanda importante dos especialistas em segurança (tema 36, pág. 93).

O documento deixa claro o desejo de aumentar a aproximação das Polícias Militares estaduais das Forças Armadas (tema 36, pág. 94), que na visão dos militares são forças de reservas do Exército. O documento faz regulares menções ao ciclo completo de polícia, atualmente dividido entre Polícia Civil e Militar, e o atual status de polícia penal para a administração penitenciária, que também envolveria um ciclo completo de polícia. Há um forte interesse no sistema penitenciário além de estreitar laços com a polícia penal (tema 37, pág. 95). Entre as propostas estão a construção de penitenciárias SUPERMAX e uma forte interferência federal, quando se fala do tratamento securitário de lideranças do crime organizado que estejam sob jurisdição estadual. Por fim, está claro que os militares que chancelam esse documento querem participar ativamente das políticas de segurança pública, tanto em nível federal, com o controle de fronteiras, como regional, com forte aproximação com várias polícias.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *