Como os presidenciáveis enxergam o comércio internacional

04 de outubro de 2022

 

Por Lourraine Milagres, Mikael Servilha e Thais Venancio (Foto: Unsplash) 

 

Duas linhas disputam o segundo turno: uma devotada às prescrições neoliberais e outra que responde criticamente à subordinação em que Bolsonaro colocou o Brasil e toca em aspectos de comércio e desenvolvimento

 

Uma agenda para o comércio internacional é parte de qualquer política externa e econômica de um governo. Decisões sobre aumento ou diminuição de alíquotas de importações, adesão a certos círculos internacionais e tomada de posição em negociações internacionais, entre outras, impactam toda dinâmica de uma sociedade. As escolhas sobre política comercial podem determinar o que um país produz e/ou deixa de produzir, o que as pessoas consomem e/ou deixam de consumir, o que o governo arrecada ou deixa de arrecadar. A participação ou não em acordos de comércio tem impactos diretos no espaço regulatório do país e políticas públicas necessárias para o bem-estar social e o desenvolvimento nacional. Isso sem falar dos impactos ambientais e sobre direitos humanos que podem ocorrer em razão de diversos compromissos de livre comércio.

 

Examinamos os planos de governo dos 11 candidatos e candidatas à presidência do Brasil. Nossa análise destaca os caminhos gerais de inserção no comércio internacional apontados nos planos das candidatas e dos candidatos. Nesse formato, e reconhecendo que as diretrizes dos presidenciáveis de modo geral podem não discorrer rigorosamente sobre uma agenda para o comércio internacional – ou fazer isso de modo vago e disperso em algumas partes dos textos -,  buscamos atentar tanto para os aspectos intimamente relacionados ao tema, quanto para as relevantes ausências percebidas.  

 

Quais caminhos são apontados? 

 

Atender ao aprofundamento do livre comércio foi o modo prioritário de inserção internacional do Brasil escolhido por Temer e Bolsonaro. Sob o último, disciplinado transversalmente pelo impulso liberalizante do Ministério da Economia de Paulo Guedes, foi reforçada a condição do Brasil como exportador de bens primários, com o aprofundamento dos impactos sobre o meio ambiente,  a subordinação frente a atores centrais, o distanciamento de parceiros estratégicos do Sul-Global, a desindustrialização da economia e o baixo nível de renda das famílias.

 

Três linhas orientadoras da agenda de comércio internacional foram vistas nas propostas deste pleito. Uma caracterizada por devotamente atender às prescrições neoliberais no que diz respeito ao comércio internacional. Outra propõe uma política comercial que, em certa medida, responde criticamente à subordinação em que Bolsonaro colocou o Brasil e toca em aspectos de comércio e desenvolvimento. Por fim, a terceira linha propõe uma política comercial estruturalmente anti-imperialista. 

 

A primeira linha, em que enxergamos mais claramente os planos de Felipe D’Avila, Jair Bolsonaro, Simone Tebet, Soraya Thronicke e Kelmon Souza, subscreve o núcleo duro da cartilha política neoliberal e aposta as fichas na liberalização da economia para o seu desenvolvimento. Estratégia essa já batida e que não alçou resultados econômicos favoráveis de modo duradouro nem com Temer e nem com Bolsonaro (nem com os que a executaram antes deles). 

 

Nessa linha, de modo interconectado tais propostas tendem a defender explicitamente a abertura comercial e priorizar a assinatura de compromissos para o livre comércio, com alguns candidatos dando especial ênfase ao Mercosul e acordos que tenham por contraparte economias desenvolvidas. Três candidatos estabeleceram explicitamente o objetivo central da entrada do Brasil na OCDE, abraçando isso como condição necessária tanto para superar a crise econômica, quanto para gerar crescimento e favorecer a inserção internacional do Brasil.

Em particular, o plano apresentado por Bolsonaro insistiu em negar o isolamento diplomático que se impôs ao Brasil, sobretudo após a derrota de Donald Trump em 2020. Ao mencionar como meta a conclusão dos acordos do Mercosul com a UE e a Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA, sigla em inglês) – atualmente em fase de validação -,  o programa do candidato à reeleição nega o distanciamento dado pelos países da União Europeia em celebrar o instrumento com o seu governo, em especial, por conta da sua política ambiental. Bolsonaro argumenta que “dentre as vantagens do ingresso do país na OCDE será criada a possibilidade de estreitar acordos econômicos com nações que são mais desenvolvidas”. 

 

Simone Tebet fala em retomar o protagonismo internacional do Brasil negociando novos acordos comerciais e buscando aumentar a participação do país no comércio internacional, tendo por base um enfrentamento àquilo que a candidata chama de “custo Brasil”. Nesse sentido, o plano defende a negociação “de novos acordos com parceiros comerciais relevantes e envidar esforços para colocar em vigência acordos negociados recentemente”, sem maiores especificações. Na sequência, fala em “reforçar a integração latino-americana, aprofundando acordos já existentes e negociando novos acordos” e “consolidar e aprofundar o Mercosul”, num movimento contrário ao que se apresenta na política externa comercial atual. Seu compromisso com a abertura comercial, a desestatização, a privatização e a liberalização do comércio alonga-se por todas as seções de seu projeto, destacando sua intenção de construir um governo de parcerias público-privadas. Também é explorada a intenção de “promover segurança” para o ambiente regulatório e institucional, de forma a atrair investimentos externos para o país, abrindo a economia para uma ampla atuação da iniciativa privada e do capital internacional, promovendo, em suas palavras, “uma maior integração às cadeias globais de valor”.

 

Na sequência, Tebet propõe “formular e implementar plano de redução gradual de tarifas aduaneiras, eliminação de medidas não-tarifárias e negociações comerciais, com ênfase em acesso a mercados” e defende “consolidar e aprofundar o Mercosul, por meio de propostas e ações voltadas para a liberalização do comércio de bens e serviços”. Ainda, a candidata, sem marcar nenhum posicionamento crítico em relação à atual configuração mundial, promete engajar o país “nas discussões de grupos plurilaterais dos quais o Brasil participa, tais como G-20 e Brics, com vistas ao  fortalecimento do multilateralismo”. Tebet ainda menciona que o Brasil deve “deixar de ser um país de costas para o mundo”, de forma a retomar seu “protagonismo no concerto global das nações”. Aqui, fica clara uma intenção de maior inserção brasileira em acordos comerciais internacionais. São mencionados ao longo do documento de diretrizes a centralização da economia verde em relação às demais políticas públicas, criação de marcos legais à pesca e a modernização do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual, temas que apareceram frequentemente nas discussões internacionais dos últimos anos. A candidata encerra suas propostas envolvendo comércio internacional ao colocar o acesso à OCDE como “oportunidade para revisão geral das políticas públicas nacionais, visando seu aperfeiçoamento à luz das melhores experiências e práticas”, mais uma vez reafirmando o tom politicamente neoliberal de seu projeto.

 

Felipe D’Avila, por meio de suas diretrizes, apresenta um plano de governo que parece querer ser bem direto ao ponto no que tange a agenda de comércio internacional, colocando também a entrada na OCDE como passo essencial. A maior questão, no caso, é que o candidato do partido NOVO – que diz ter como meta estabelecer um “Brasil Competitivo” internacionalmente – ignora completamente a condição de subdesenvolvimento da economia brasileira frente ao cenário internacional. Isto é, de desindustrialização e dependente da exportação de commodities, único setor em que o Brasil é competitivo atualmente.

 

O plano de D’Avila sustenta como principal proposta a promoção da abertura unilateral da economia brasileira, “com redução dos níveis de proteção tarifária e não tarifária que englobe transversalmente todos os bens”. Se posto em prática, potencialmente se traduziria em um projeto de desmonte do que restou da indústria brasileira, que hoje corresponde a 20% do PIB (em 1985 a parcela do PIB da indústria era de 48%). Tal posicionamento, embora apareça de forma mais objetiva no programa de D’Avila – o que faz sobressaltar a sua omissão sobre a realidade da economia brasileira -, não é, contudo, muito diferente do defendido por outros candidatos à direita do espectro político, como Bolsonaro e Tebet. 

 

Para além disso, o plano de Felipe D’Avila fala em “priorizar acordos comerciais internacionais”, e continua propondo “negociar a eliminação de barreiras que afetam as exportações de produtos em que o Brasil é competitivo, sobretudo no agronegócio”. Sobre isso, o candidato não descreve como pretende barganhar a eliminação de tais barreiras para as exportações agrícolas. A resposta para essa questão é essencial, uma vez que os países desenvolvidos, com os quais o NOVO se mostra mais propenso a querer negociar, tradicionalmente não abrem mão das robustas políticas protecionistas sobre as suas importações agrícolas. 

Em relação aos planos de Kelmon e Soraya, verificou-se que os dois subscreveram os mesmos princípios políticos neoliberais: pró-corporativos, de privatização e abertura econômica. Ambos, nesse sentido, reafirmam o agronegócio enquanto carro-chefe das exportações brasileiras, sem problematizar os problemas relacionados à dependência da economia nacional à exportação de bens primários agrícolas.

 

Soraya, nesse sentido, traz um capítulo bastante extenso de ações que visam, ora para o apoio e reforço da agricultura familiar, do abastecimento interno e de instituições voltadas para a soberania alimentar, mas ora em ações de fortalecimento do agronegócio, muito voltado ao discurso neoliberal vigente sobre as oportunidades ocasionadas pela crise de abastecimento e pela guerra na Ucrânia, sem articular como as ações serão trabalhadas em conjunto. Embora não façam menção explícita ao caminho que pretendem conduzir sua política para o comércio – o que limitou a nossa análise sobre seus projetos -, empreende-se facilmente que tanto a candidata do União Brasil quanto o do PTB parecem inclinados a apoiar sem resistências a entrada do Brasil na OCDE e assinatura de compromissos de livre comércio. Kelmon ainda menciona a abertura comercial e a liberalização do comércio “sem permitir a ação nociva de capitais e empresas”, o que, sem maiores definições, parece inconsistente. Assim, não é explicitado o que seriam essas atuações nocivas em sua concepção ou mesmo as medidas para evitá-las. Isso apareceu também no plano da candidata Soraya, que se comprometeu a “ampliar as parcerias internacionais, abrindo novos mercados para os produtos nacionais”, sem os planos concretos para a condução desse objetivo.

 

Os planos de Lula e Ciro Gomes encontram-se na segunda linha, apesar do segundo explicitar menos que o primeiro as suas políticas sobre as relações comerciais, se aproximando do tema em alguns trechos do documento. Em comum, ambos reafirmam em seus programas o princípio de soberania nacional, com a defesa de um programa de desenvolvimento pautado pelo investimento público (baseado no BNDES), uma reforma sobre o regime regressivo de tributação e alteração da política de preços da Petrobrás.

 

O que, em outras palavras, indica o contraponto à linha de redução da atuação estatal sobre a economia. Isto é, tanto Lula quanto Ciro, em suas propostas, firmam o Estado com as rédeas do desenvolvimento, retirando da abertura comercial, por exemplo, o protagonismo no processo de dinamização e crescimento da economia. Tais posições, portanto, indicam um programa para o comércio mais preocupado com o desenvolvimento e manutenção do espaço político. 

 

Posto isso, o candidato do PDT não fez menção a nenhum parceiro estratégico, tampouco apontou para direções no que diz respeito às relações comerciais do Brasil. Sem mais que se possa aqui dizer em relação ao plano de Ciro, porém, é possível recordar que em 2019 por meio de sua conta de Twitter, o candidato se posicionou sobre o Acordo Mercosul-UE. Na ocasião, Ciro argumentou que o instrumento “pode ser devastador” para a indústria do bloco. Em determinados pontos de suas diretrizes de governo, Ciro aponta a intenção de um desenvolvimento e crescimento econômico sustentável, reforçando a preocupação com a soberania nacional e o compromisso com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU. A maneira apontada pelo candidato que possibilitaria tais objetivos serem alcançados inclui ênfase em grandes complexos industriais nacionais, como o agronegócio; petróleo, gás e derivados; saúde e defesa. Como mencionado, há uma ausência de detalhes em relação ao papel do comércio internacional dentro desses objetivos e alternativas, no entanto, a partir das intenções é possível interpretar que as tendências caminham para possíveis incentivos às exportações, abertura de mercado e determinada preocupação com pautas relacionadas à sustentabilidade.


Sobre as diretrizes de Lula, de outro lado, mais pôde ser lido. O plano do candidato do PT fala que “elevar a competitividade brasileira será uma prioridade do novo governo, que construirá medidas efetivas de desburocratização, de redução do custo do capital, de ampliação dos acordos comerciais internacionais relevantes ao desenvolvimento brasileiro”. E continua, o plano de Lula, defendendo o aperfeiçoamento da “tributação sobre o comércio internacional, desonerando, progressivamente, produtos com maior valor agregado e tecnologia embarcada”.


Sobre as relações comerciais, as diretrizes de Lula falam em defesa da soberania e da integração da América Latina e do Caribe “com vistas a manter a segurança regional e a promoção de um desenvolvimento integrado de nossa região, com base em complementaridades produtivas potenciais entre nossos países”. Mais do que isso, discute explicitamente o fortalecimento do Mercosul, Unasul, Celac e BRICS. Defende, também, contemplar “as necessidades e os interesses dos países em desenvolvimento, com novas diretrizes para o comércio exterior, a integração comercial e as parcerias internacionais”. Ainda sobre esse aspecto, cabe aqui resgatar que, segundo entrevista do Ex-ministro Celso Amorim durante a corrida eleitoral, Lula estaria disposto a revisar alguns capítulos do Acordo Mercosul-UE, reabrindo assim as negociações com o bloco Europeu. Mais recentemente, o próprio Lula disse que, sendo eleito, deve chegar a um acordo com a União Europeia dentro de seis meses

 

Por fim, partimos para a terceira linha orientadora, sobre a qual se acomoda as propostas de Vera Lúcia, Leonardo Péricles e Sofia Manzano. Essa se caracteriza pela centralidade da pauta anti-imperialista, defesa da revolução socialista e união dos proletários (nacional e internacionalmente) e proposta de estabelecimento de relações comerciais parceiras do Sul Global. 

 

Sob isso, o programa da candidata Vera Lúcia propôs “rever todos os tratados militares e acordos comerciais impostos pelo imperialismo” a fim de romper com a dominação imperialista. De forma análoga, o programa de Leonardo Péricles apoia a “anulação dos acordos e dívidas do Estado com os capitalistas estrangeiros, que foram contraídos contra a soberania e os interesses dos trabalhadores”. Sofia Manzano, sobre a questão, defende em seu plano o “fortalecimento de alianças anti-imperialistas e o realinhamento das relações comerciais e políticas internacionais, mediante o fortalecimento das relações sul-sul”. Sofia, também, defende como princípio o estabelecimento de relações comerciais mutuamente vantajosas com esses países. 

 

O plano de Manzano, mais do que isso, inclui massiva atuação do Estado, com confisco de áreas improdutivas e reestatização de empresas estratégicas. Em relação às relações internacionais, Manzano destaca que, uma vez eleita, seu governo teria uma atuação internacional pautada pelo princípio da “solidariedade internacionalista”, “autodeterminação dos povos”, “internacionalismo proletário” e “integração dos povos latino-americanos e caribenhos”. Para tal integração, o fortalecimento da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) e da UNASUL (União das Nações Sul Americanas) é apontado como uma solução eficaz, possibilitando uma integração e colaboração econômica, política e militar entre as nações. O desenvolvimento nacional, nas diretrizes de Manzano, também é conceito chave, no entanto, executado de maneira distinta em relação aos presidenciáveis mencionados nos dois primeiros eixos. Há a intenção de firmar parcerias comerciais estratégicas, no entanto, com grande participação do Estado e protecionismo às indústrias, “priorizando o desenvolvimento industrial e tecnológico”. O fortalecimento de relações econômicas com o continente africano toma lugar em seu projeto de governo, ainda como alternativa para subversão da lógica imperialista do sistema internacional.

 

Manzano defende uma forte regulação estatal no câmbio e no comércio exterior, em busca de mitigar a atuação do capital especulativo e “operar uma política de exportação e importação de acordo com os interesses do país, não do mercado”. O monopólio do comércio exterior é defendido como uma alternativa para a diminuição do poder e da atuação de empresas transnacionais e do capital internacional no país, ambos vistos como prejudiciais para o desenvolvimento nacional. Seus objetivos abarcam a intenção de estabelecimento de um ambiente comercial internacional mais equitativo, antiimperialista e diametralmente oposto ao neoliberalismo. Assim,  defende iniciativas apresentadas como capazes de diminuir o poder dos Estados  mais desenvolvidos e, através da integração internacional socialista, possibilitar a defesa de agendas que beneficiem países do Sul Global.

 

¹Para este texto, revisamos as propostas de (em ordem alfabética): Ciro Gomes (PDT),  Jair Bolsonaro (PL), José Maria Eymael (DC), Kelmon Souza (PTB), Leonardo Péricles (UP), Luiz Felipe D’Avila (NOVO), Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Simone Tebet (MDB), Sofia Manzano (PCB), Soraya Thronicke (UNIÃO) e Vera Lúcia (PSTU).

² Não foi possível, porém, caracterizar minimamente as diretrizes do candidato Eymael. Bem enxuto, o documento apresentado pelo candidato Democracia Cristã, como um todo, traz uma linguagem muito pouco propositiva em termos concretos. Além de não apresentar propostas claras para a economia – ainda que defenda a diminuição do Estado em determinado trecho -, o documento dedica uma seção bem curta e genérica sobre política externa. Nessa, o candidato não aponta se pretende buscar aprofundar relações no âmbito regional ou multilateral e muito menos faz menção a parceiros ou organizações estratégicas. Sumariamente (considerando os fins deste artigo), o documento limita-se a defender a política externa “como instrumento de desenvolvimento nacional, incluindo o Brasil nas rotas mundiais do sucesso sócio-econômico”, o que na prática muito pouco diz sobre  o que o presidenciável pensa sobre o assunto.

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