Para onde foi o debate racial na política internacional da China?

18 de outubro de 2022

 

Por Ana Luísa da Cunha, Brenda Neris Gajus, Fabíola Lara de Oliveira, Kethelyn Santos e Luccas Gissoni (Foto: Pixabay)

 

Em condições de exercer uma posição de liderança no mundo em desenvolvimento e de colaborar na construção de um sistema internacional mais justo, país precisa abordar exploração dos povos do Sul, resgatar viés internacionalista e atuar no debate interno

        

O debate sobre casos de racismo envolvendo autoridades chinesas e imigrantes africanos reacendeu na China no início da pandemia de Covid-19. Em âmbito internacional, o país tem avançado na construção de parcerias com empresas e países africanos, tornando-se, cada vez mais, um país importante para a economia e política no continente africano. Contrasta, assim, o ressurgimento das discussões sobre o racismo praticado por chineses contra africanos com a crescente parceria internacional entre China e África. 

No passado, durante o período de Mao Zedong (1949-1976), o anti racismo foi um componente importante da política internacional chinesa. Hoje, apesar dessa política ter peso nas relações com os países em desenvolvimento, o componente antirracista não é pronunciado. Para onde foi o debate racial na política internacional chinesa?

Em 2016, um comercial de sabão em pó de uma empresa chinesa viralizou nas redes do país ao mostrar uma cena sensual entre um homem negro e uma mulher chinesa, que o empurra para dentro da máquina de lavar. Ao abrir a máquina, a mulher depara-se com um homem chinês de pele clara. 

Em julho, veio à tona no Twitter o caso do economista Mei Xinyu, ligado ao Instituto de Comércio Exterior e Economia do Ministério do Comércio da China, que conta com 1,5 milhões de seguidores da rede social WeiBo. Entre outras postagens de cunho racista, Mei frequentemente comenta atos de violência e estupro ocorridos nos Estados Unidos especulando sobre a raça do agressor e ligando-o hipoteticamente ao movimento Black Lives Matter. Em uma ocasião, o economista afirmou que a substituição do governo da minoria branca na África do Sul pelo governo majoritário negro – isto é, o fim do regime de apartheid – tornou o país africano uma “superpotência em crimes violentos de assassinato e estupro”.

Outro tema importante é o tratamento que imigrantes negros, em especial de origem africana, relatam receber na China. No início da pandemia de Covid-19 essa discussão ficou mais evidente, já que diversos imigrantes começaram a expor situações de xenofobia e racismo, especialmente na província de Guangzhou. Foram relatados casos de quarentenas especificas para negros, término de contratos de aluguel, obrigação de testes de Covid mesmo sem necessidade, proibição de entrada nos estabelecimentos comerciais, entre outros. Os casos ficaram tão explícitos que o Ministério de Relações Exteriores da China recebeu embaixadores africanos para discutirem a respeito.

Uma das marcas recentes do racismo na China é a popularização de vídeos que alimentam o mito de uma suposta superioridade da cultura e modo de vida chineses em comparação à vida, sobretudo de pessoas negras de países africanos. Nestes vídeos, que mobilizam uma indústria milionária que lucra com o racismo e a humilhação de diversas pessoas, inclusive crianças, é comum a representação de africanos adotando hábitos culturais chineses, cozinhando comida chinesa e falando língua chinesa. Neste caso, às vezes, as pessoas são enganadas e levadas a acreditar que estão dizendo apenas cumprimentos em mandarim quando, na verdade, estão reproduzindo frases e expressões ofensivas. Em outras situações, ocorrem piadas com a penúria e o sofrimento dos povos, até mesmo com a fome, ou a reprodução de velhos mitos do colonialismo europeu relacionados a um suposto caráter primitivo dos povos africanos e a hiperssexualização das mulheres.

Um caso notório, por exemplo, foi a viralização de um vídeo de 2020 em que crianças, em um contexto aparentemente festivo, repetem insultos racistas e auto-degradantes, como “sou um monstro negro” e “tenho um QI baixo”. As crianças são orientadas a dizer frases em língua chinesa, a qual não conhecem, por um cinegrafista até então anônimo. Após uma complexa investigação, os repórteres Runako Celina e Henry Mhango do Africa Eye da BBC revelaram que o cinegrafista, conhecido como “Susu” na região, chamava-se Lu Ke e, foi responsável pela gravação de centenas de vídeos do mesmo tipo, pelos quais recebia aproximadamente R$350 de redes sociais chinesas. E a partir de entrevistas com os moradores do povoado no Maláui, revelou-se, ainda, que ele também cometeu abuso para com uma das crianças que frequentemente aparecia em seus vídeos. 

A grande repercussão da reportagem levou a uma investigação por parte da polícia local e à consequente prisão de Lu Ke, que se encontrava foragido em um país vizinho. Entretanto, as ações desse indivíduo não são isoladas; diversos “influenciadores” continuam a lucrar com conteúdo como esse, e são poucas ou inexistentes as consequências para uma violação tão grave dos direitos humanos. Na China, houve meramente ações por parte das empresas proprietárias das redes sociais bloqueando a busca do termo “África” por parte dos usuários, mas não o banimento das contas.

A política anticolonial e antirracista de Mao

O aspecto anticolonial e antirracista já foi elemento importante da política internacional chinesa. No período pós-revolução (a partir de 1949), Mao Zedong formulou a teoria da existência de duas zonas intermediárias entre os Estados Unidos e a União Soviética – os quais disputavam a hegemonia global durante a guerra fria – a primeira sendo os “países economicamente atrasados da Ásia, África e América Latina” e a segunda sendo os “países imperialistas e de capitalismo avançado representados pela Europa”.

O propósito e a essência da teoria das zonas intermediárias foi o de dar destaque ao papel central dos países que as compõem na luta contra o imperialismo estadunidense e o hegemonismo soviético. Para isto, seria necessária a união dos países da primeira zona, os quais constituíam a primeira força e cuja ação seria capaz de ganhar, para seus objetivos, os países da segunda zona. Na década de 1970, com a deterioração das relações sino-soviéticas, a teoria das zonas intermediárias evolui para a famosa teoria dos três mundos, com destaque para, mais uma vez, os países do terceiro mundo – isto é, aqueles outrora vítimas do colonialismo e do semicolonialismo, como a China – cuja união seria capaz de trazer para si os países do segundo mundo na luta contra o primeiro, ou seja, Estados Unidos e União Soviética, que representariam a maior ameaça à paz e à prosperidade do globo.

As elaborações chinesas a respeito das relações internacionais estavam em consonância com o movimento terceiro mundista que ia surgindo na época, a partir da descolonização dos países antes submetidos ao jugo europeu e que buscavam unir suas forças para independência política e desenvolvimento econômico. Tais esforços – cristalizados a partir da Conferência Afro-Asiática realizada em Bandung, Indonésia, em 1955, e que contou com a participação chinesa – continham uma dimensão antirracista explícita na medida em que eram vistos como uma união tricontinental dos povos não-brancos contra a exploração secular perpetrada pelos brancos europeus e pelos Estados Unidos. Como afirmou o jornalista negro estadunidense Richard Wright, que cobriu o evento, em seu livro The color curtain:

“Os desprezados, os insultados, os feridos, os despossuídos – em suma, os oprimidos da raça humana estavam se encontrando. Aqui estavam a consciência de classe e racial e religiosa em escala global. Quem tinha pensado em organizar tal encontro? E o que essas nações tinham em comum? Nada, parecia-me, a não ser o que seu relacionamento passado com o mundo ocidental os fez sentir. Esta reunião dos rejeitados foi em si uma espécie de julgamento sobre o mundo ocidental!” 

A propaganda estatal chinesa buscou cristalizar a orientação terceiro mundista de sua política externa com imagens que procuravam mostrar a união contra a opressão dos três continentes vítimas do imperialismo. Esses continentes eram representados pelas três raças, o que dá às imagens um tom antirracista evidente, havendo destaque, inclusive, normalmente para a raça negra, além da asiática. Tal propaganda não era apenas retórica. Recentes aberturas de arquivos revelaram que a luta armada contra o apartheid na África do Sul teve início após o Partido Comunista daquele país, que tinha Nelson Mandela como membro, consultar-se pessoalmente com Mao Zedong.

Outrossim, além da China apoiar materialmente movimentos de libertação nacional no continente africano, Mao expunha o antirracismo em seus comentários acerca da África e da diáspora africana. Em declaração em apoio ao movimento negro estadunidense, o líder chinês convocou trabalhadores, camponeses e intelectuais de todas as cores a se oporem à “discriminação racial perpetrada pelo imperialismo” e a apoiarem o movimento negro dos Estados Unidos contra a discriminação racial. O líder afirmou também, comentando o assassinato de Martin Luther King, que “o sistema maligno do colonialismo e do imperialismo surgiu e desenvolveu-se com a escravização dos negros e o comércio de negros, e será com certeza enterrado com a completa emancipação do povo preto”.

Os incidentes anti-africanos dos anos 1980

A orientação política anticolonial e antirracista do governo chinês sofreu uma mudança a partir das reformas empreendidas no governo Deng Xiaoping (1978-1992), e contradições raciais e xenofóbicas emergiram no seio da sociedade chinesa. Uma das medidas governamentais voltadas a dar materialidade à orientação terceiro-mundista durante o período Mao, foi a atração de jovens quadros dos países recém-independentes do continente africano para realizar gratuitamente estudos universitários na China, a partir de 1960. Essa política continuou durante o governo Deng, mas vários incidentes violentos opondo estudantes africanos e chineses ocorreram em Shanghai em 1979 e em Tianjin em 1986. Homens negros que tinham namoradas chinesas foram deportados enquanto as mulheres perderam o emprego ou foram presas.

Na virada do ano 1988 para 1989, começando em Nanjing e espalhando-se em seguida para várias outras cidades, uma série de conflitos raciais ocorreu nas universidades chinesas, com os africanos sendo alvo de acusações racistas por portarem o vírus HIV e cometerem estupros. Entre as injúrias dirigidas pelos estudantes chineses aos africanos, estava a palavra hei gui (黑鬼), que pode ser traduzida como monstro, fantasma ou diabo preto: a mesma que Lu Ke fez as crianças do Maláui dizerem em seu vídeo. Os incidentes de 1988-89 geraram ampla reação negativa na mídia africana e por parte dos governos de Gâmbia, Gana, Libéria, Benin e Líbia, o qual condenou a “campanha de pressão de natureza racista” e ofereceu bolsas de estudo a todos os africanos residentes na China, além da Organização para a Unidade Africana que chamou seu embaixador chinês para consultas.

Tais manifestações racistas por parte de alguns estudantes chineses, diante das quais as autoridades policiais eram no mínimo coniventes, além de contrastarem com a política do período anterior, quando predominou o fomento ativo a uma consciência antirracista de unidade do terceiro mundo na luta anticolonial.

Como se sabe, o próprio povo chinês é uma vítima histórica do racismo, sobretudo a partir da subjugação da China à situação de uma semi-colônia durante o século de humilhação. Data desse período o estabelecimento de concessões estrangeiras nas principais cidades chinesas, cujo principal exemplo é o Parque Huangpu, em Shanghai. Implantado em 1868 como o primeiro parque público na China, o local proibiu a entrada de chineses – exceto os serventes dos brancos – até 1928 e, proibindo também a presença de cães, tornou-se para o povo chinês um símbolo da opressão imperialista sobre seu país. O racismo anti-asiático também se faz presente nos delírios europeus e estadunidenses acerca do chamado “perigo amarelo”, consubstanciado, por exemplo, nas obras do alemão Oswald Spengler e do estadunidense Lothrop Stoddard.

Para onde foi o debate racial na China?

Mao Zedong e Lu Ke representam dois momentos distintos do debate racial na China e das relações do país com o terceiro mundo. O primeiro entendeu que o fim do sistema imperialista de exploração global só seria possível com a união dos povos oprimidos. Assim, buscou ativamente fortalecer os movimentos de libertação nacional que lutavam pelo fim do colonialismo, sobretudo na África. Como nesse continente a exploração colonial era simultaneamente uma opressão de caráter racial, Mao aprendeu com os africanos que ambas as coisas estavam estruturalmente ligadas.

Lu Ke, por sua vez, é o produto de uma China que se desenvolve rapidamente e expande a presença de suas empresas pelo mundo. São notórios os investimentos desta no continente africano, o que tem gerado – por parte dos imperialistas, como os EUA – acusações de que a China teria se tornado imperialista. Destaca-se a presença massiva de indivíduos chineses na África, que é apresentada como “a promessa de uma fronteira no século XXI”. Em dezembro de 2021, o famoso comediante sul-africano Trevor Noah, radicado há anos nos Estados Unidos, publicou um vídeo em que se propõe a explicar “porque a China está na África”, afirmando que o país está “colonizando” o continente. O vídeo gerou pronta reação da comunidade africana engajada em acompanhar a relação continental com o país asiático, com os âncoras do “The China in Africa podcast”, ligado ao “China Global South Project” e ao “Africa-China Reporting Project”, do Centro de Jornalismo da Universidade de Wits, Joanesburgo, lamentando a quantidade de desinformação veiculada pelo comediante e outros interlocutores nesse debate, em que, dada a “atual fase do conflito entre os Estados Unidos e a China”, “ninguém mais se importa com a verdade, apenas com argumentos, o que é decepcionante”.

Independentemente de ser ou não possível utilizar, para descrever as relações entre a China e os países africanos, categorias forjadas para descrever a dominação econômico-militar perpetrada pelos países imperialistas de maioria branca sobre o terceiro mundo, é indiscutível que o aspecto econômico dessas relações atingiu um patamar quantitativo várias vezes superior ao do período Mao. Politicamente, entretanto, embora a China tenha passado recentemente a se colocar como uma alternativa à hegemonia global estadunidense e se esforçado pela desconstrução do mundo unipolar montado após o fim da Guerra Fria, em termos qualitativos houve em sua política internacional o recuo quanto a premissas antirracistas que presidiram suas relações junto ao terceiro mundo no período anterior.

Comparada a era Mao, a China de hoje tem condições materiais muito maiores de exercer uma posição de liderança no mundo em desenvolvimento e de colaborar na construção de um sistema internacional mais justo. Tendo em vista seu discurso e suas ações, parece que o governo chinês busca justamente isso. Não obstante, para que tenha sucesso, é mister que ele assuma que a questão nacional e a questão racial são duas manifestações do mesmo sistema de exploração dos povos do Sul, e empreenda esforços ativos, inclusive no debate interno ao seu país, para resgatar o viés internacionalista e anti-imperialista que outrora adotou. Isto é, outrossim, de seu próprio interesse: o recuo da questão racial é também um recuo da construção do socialismo, fato evidenciado pela circunstância de que os protestos da década de 1980 contra os africanos carregavam também bandeiras contra o governo comunista, num prelúdio dos eventos de Tiananmen em 1989.

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