02 de novembro de 2022
Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva (Foto: Casa Rosada/Presidência da Argentina)
A política externa brasileira é um fator essencial para o cumprimento das propostas do novo governo, que já é reconhecido por lideranças mundiais da esquerda à extrema direita
A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República é um novo marco na chamada nova “Onda Rosa”, ou seja, a guinada à esquerda vislumbrada com as eleições de candidatos progressistas no continente latino-americano. O movimento que já ocorreu na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México e Peru, chegou ao Brasil com o resultado da eleição do último domingo. Embora o avanço da esquerda seja evidente, o momento é mais “moderado” que a primeira onda, do início dos anos 2000, que elegeu Hugo Chávez, Pepe Mujica, Evo Morales, Néstor e Cristina Kirchner.
O pleito foi acirradíssimo no segundo turno, Lula venceu com 50,90% dos votos válidos, contra 49,10% de Jair Bolsonaro. Fato que demonstra a polarização do país, dividido entre duas propostas de governo antagônicas, uma com viés progressista e social, e outra com temas neoliberais e conservadores.
Nesse momento pós-vitória, o clima começa a pesar com o fechamento de rodovias federais pelos apoiadores de Bolsonaro e a demora do reconhecimento do resultado do pleito pelo candidato derrotado, condição inevitável em democracias estabelecidas. Ainda durante o domingo, os presidentes do TSE e STF, Alexandre de Moraes e Rosa Weber, reconheceram o resultado das eleições, além dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Com o reconhecimento do poder legislativo e judiciário, atestando o resultado do pleito com lisura e total confiança nas urnas eletrônicas, qualquer movimento de questionamento torna-se inviável e infundado.
O mundo também reconhece e parabeniza Lula, com manifestações de Joe Biden, Emmanuel Macron, Xi Jinping, Volodymyr Zelensky, Vladimir Putin, Rishi Sunak, Gabriel Boric, Pedro Sánchez, Gustavo Petro, António Costa, Nicolás Maduro, Alberto Fernández, López Obrador, entre outros nomes, já perto de uma centena.
Representantes da extrema direita, como a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, já felicitaram o presidente eleito. O príncipe Mohammed Bin Salman da Arábia Saudita também reconheceu o resultado das urnas, além do governo dos Emirados Árabes Unidos. Ambos mantêm afinidades com o presidente Bolsonaro, assim como a presidente ultraconservadora da Hungria, Katalin Novak e o Estado de Israel. Lula venceu, inclusive, em redutos da direita, como em Budapeste, na Hungria, cujo primeiro-ministro, Viktor Orbán, também é aliado de Bolsonaro.
Mas o que está em jogo?
A vitória de Lula é uma grande conquista para o avanço de pautas progressistas no país, como a legalização do aborto, o avanço de direitos ao público LGBTQIA+ e, principalmente o combate à fome, ao desmatamento da floresta amazônica e a desigualde social. Assim, como vem ocorrendo em nossos vizinhos, integrantes da nova “Onda Rosa” que obtiveram avanço em várias pautas populares.
Os desafios do vencedor serão enormes, principalmente no âmbito econômico, em um país com altas taxas de juros e inflação, grande parte da população endividada e mais de 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar. A questão que fica é: como reconstruir o país?
O primeiro passo certamente será retomar avanços em diversos âmbitos, principalmente nas pautas de inclusão social. Outro ponto importante é recuperar o protagonismo brasileiro internacionalmente. Com o Itamaraty sob o comando de Celso Amorim, o país participou de grandes encontros e negociações, integrando a Unasul e estreitando laços com os países de todo o continente latino-americano. O futuro promete ainda mais avanços, mesmo com as enormes dificuldades impostas pelo cenário interno e externo. A polarização da última eleição deixará enorme oposição, e o cenário internacional permanece difícil com a Guerra na Ucrânia. Dessa maneira, a união e o diálogo com o Congresso Nacional serão essenciais para a governabilidade e o avanço das pautas necessárias de reforma.
Como reconstruir o país?
O novo governo Lula, que assumirá o poder a partir de 1º de janeiro, terá como principais metas as apontadas na “Carta para o Brasil do amanhã”, divulgada no último dia 29, semelhante à divulgada em 2002, que deu aceno ao empresariado sobre a pauta econômica do governo à época, mantendo o tripé macroeconômico do governo FHC.
Na nova carta, o desenvolvimento econômico e os investimentos apontam para a retomada de obras estruturais e, financiamento e cooperação – nacional e internacional – para investimentos públicos e privados. Ou seja, houve um novo aceno ao mercado financeiro da colaboração entre Estado e setor privado. Outro ponto importante é o trabalho e a renda: ao retomar a pauta social-desenvolvimentista, o governo coloca como prioridades – o salário mínimo forte, com aumento acima da inflação, o Novo Bolsa Família, com renda permanente, o Desenrola Brasil para renegociação de dívidas e o Imposto de Renda Zero, para renda até cinco mil reais, além da igualdade salarial entre homens e mulheres.
A carta destaca também o meio ambiente. O novo governo promete desmatamento zero na Amazônia e emissão zero de gases do efeito estufa na matriz elétrica, além da agricultura de baixo carbono e familiar, e a criação de um Ministério dos Povos Originários, para proteção dos indígenas e a repressão dos garimpos ilegais. Com esses compromissos, o país poderá avançar em negociações e pautas internacionais, além de obter investimentos públicos e privados. Um dos avanços já estabelecidos será o desbloqueio do Fundo Amazônia pela Noruega, após a vitória de Lula.
A reindustrialização do Brasil é outro ponto crucial para alcançar a esfera do desenvolvimento. A construção de uma estratégia nacional para avançar em direção à economia do conhecimento é fundamental para manter o potencial nacional dentro do país e investir em vantagens competitivas, especialmente nos complexos econômico-industriais de alta tecnologia. E possibilitará também fazer a transição digital e trazer a indústria brasileira para o século XXI, com inovação, ciência e tecnologia e financiamentos adequados.
À vista disso, a política externa brasileira (PEB) é um fator essencial para o cumprimento da maioria das propostas do novo governo. Será necessário reinserir o país no cenário internacional, ou seja, retomar a PEB “altiva e ativa”, estabelecida nos dois governos anteriores de Lula, pelo ex-ministro Celso Amorim, além de promover o diálogo democratico e a autodeterminação dos povos. De forma análoga é necessário atrair novos investimentos e retomar a integração regional, isto é, reatar os “Laços de Confiança” no continente latino-americano, fundamentados no Mercosul, com a inclusão de novos membros, e na retomada da Unasul, que foi esfacelada pelos governos de extrema-direita, nos últimos anos, com a criação do Prosul. O processo de integração, inclusive, já se iniciou com a visita de Alberto Fernández, presidente da Argentina, a Lula no dia seguinte à vitória, com a pauta de retomada da relação bilateral entre as nações.
Também é fundamental estreitar as relações com o continente africano, consideradas quase inexistentes no atual governo, e com a China, que foi desacreditada e atacada durante a pandemia. E, se aproximar dos EUA, com o governo Biden, após o afastamento de Bolsonaro do país com a derrota de Trump, em 2020. Torna-se necessário também estreitar as relações Brasil-União Europeia, com intermédio do Mercosul, com o acordo de cooperação em andamento, barrado pela pauta ambiental. Os novos movimentos já podem ser observados. Segundo entrevista de Celso Amorim ao jornal O Globo: “O Brasil voltou a ser protagonista”. Após a eleição de Lula, todos os países estão ansiosos e esperam manter e estabelecer relações com o Brasil.
Um novo horizonte à vista
Em suma, diante de diversas pautas relevantes e importantes para o desenvolvimento social, econômico e ambiental do Brasil. O novo governo Lula assume um lugar importante, diante do escancarado despreparo, descaso e falta de bom-senso do governo Bolsonaro. Os últimos quatro anos foram um período nebuloso na história brasileira com o acirramento da pauta autoritária, nacionalista e patriarcal. O auge de tudo isso foi o surgimento do bolsonarismo, que inflama o ódio, o descaso e a intolerância pelo diferente. Assim, surgiram fatos inéditos na política brasileira – o escândalo das fakenews que abalaram severamente as campanhas eleitorais, gerando, inclusive, condenação do TSE, e a polarização que dividiu a sociedade brasileira, engendrando violência física entre o eleitorado e mortes. Outro fato foi a criação do “Orçamento Secreto”, impedindo a gestão do orçamento pelo executivo federal.
A vitória de Lula é a retomada da democracia e a oposição ao obscurantismo, frente ao questionamento da lisura do processo eleitoral por seu oponente. A voz do povo foi maior que a misoginia e o ódio, um novo alvorecer surgiu no horizonte brasileiro. A esperança se faz presente, e um novo futuro surge, após a derrota do avanço autoritário. A pauta progressista deve avançar e a reconstrução do país com união, mesmo com a oposição, deve permanecer, e assim enfrentar os desafios e dificuldades impostas para o avanço e desenvolvimento do Brasil em todos os âmbitos. A derrota da ultradireita traz desafios intensos, já vivenciados por líderes como Biden e Macron, nos EUA e na França respectivamente, e Lula por sua ampla experiência política deve enfrentar de forma análoga buscando resgatar o papel do Estado na sociedade.
Por fim, como defende o ministro do STF, Luís Roberto Barroso: “A essência da democracia é a convivência harmoniosa das diferenças e sua consolidação exige vigilância permanente por parte da sociedade e das instituições”, algo que Lula propõe.