A América Latina entre a crise da direita e os dilemas de uma nova onda de centro-esquerda

12 de julho de 2022

Por Ana Beatriz Aquino, Audrey Andrade Gomes, Felipe Teixeira, Gustavo Mendes de Almeida, Henrique Mario de Souza, Júlia Cardoso de Magalhães e Laura do Espírito Santo Silva (Foto: Unsplash) 

 

No ano de 2015, a vitória de Maurício Macri, na Argentina, abriu as portas para um verdadeiro levante conservador que tomaria conta da América Latina. Interrompia-se ali mais de uma década de vitórias progressistas por toda a região. A eleição de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) no México, três anos depois, marca o início de uma reversão deste quadro, que começa a se solidificar com a ascensão de Alberto Fernández na própria Argentina (2019), renovando o movimento denominado por alguns analistas como Onda Rosa. Agora, há novas nuances e novos atores progressistas. Além desses dois países, há reversões ideológicas nos executivos de países como Peru, Chile, Honduras e Colômbia. Some-se a esse quadro, a manutenção de chefes de Estado que já estavam no poder desde os últimos instantes do último ciclo progressista – casos da Venezuela e da Nicarágua -, bem como as situações em que a esquerda se manteve predominante, mas com uma troca de atores – como na Bolívia e em Cuba. O Equador, que teve com Rafael Correa (2007-2017) um governo reformista, volta a apresentar uma situação de verdadeiro levante social neste junho último. A partir dessas constatações, se faz necessário entender as propriedades e as possibilidades dessa nova ascensão progressista. 

Recuperação e desgaste do peronismo na Argentina

A vitória de Alberto Fernández e Cristina Kirchner em 2019, assim como o êxito eleitoral de López Obrador em 2018, anteciparam uma tendência progressista que parece se propagar pelo continente. Alinhado com os conhecidos ideais peronistas, Fernández representou uma vitória da centroesquerda contra o neoliberalismo de Macri. O novo presidente assumiu o governo diante de uma crise que assola o país há três décadas e que tem deixado um em cada quatro argentinos em situação de pobreza, além de uma mega-dívida externa de US$57 bilhões, elevada para os padrões locais.

Nas eleições primárias de 2019, quando já era possível esperar pela ascensão de Fernández, o país sofreu uma fuga cambial que fez a moeda local se desvalorizar em 30% em apenas algumas horas. Essa era a resposta do mercado diante da possível derrota de Macri. Hoje, no terceiro ano de seu mandato, o presidente continua com dificuldade em enfrentar as propostas neoliberais e as imposições fiscais do FMI e se vê diante de divergências com sua vice. Além disso, as eleições legislativas de 2021 deixaram o peronismo sem maioria no Congresso do país pela primeira vez desde 1983 e o governo tem de lidar com a crescente rejeição da população, em meio a uma inflação de 60% ao ano.

Ainda que não tenha conseguido promover grandes reformas e precise administrar uma pesada herança de seu antecessor, Fernández busca concretizar algumas de suas propostas progressistas. Uma delas é o estabelecimento de uma renda básica universal – a ser desenvolvida pela nova ministra da economia, Silvina Batakis -, e a aprovação da lei de despenalização do aborto, que aconteceu no fim do ano de 2020 e era uma das promessas de sua campanha. Alberto Fernández também busca uma posição firme no cenário internacional, como demonstrou com a crítica à decisão do presidente Biden de excluir a participação de alguns países da Cúpula das Américas e com a recente solicitação da participação da Argentina no BRICS. O presidente demonstra grande afinidade com Lopez Obrador, do México, pela construção de uma integração latinoamericana profunda, “do país mais setentrional ao mais austral” como dito por Alberto em sua visita ao país da América do Norte. 

Gustavo Petro e Francia Márquez: o ineditismo progressista na Colômbia 

 

Historicamente, a Colômbia é tratada como um quintal dos EUA na América do Sul. Ao longo de toda a existência da República, jamais fora vista uma liderança progressista guiando a nação, que havia sido governada pela oligarquia liberal-conservadora durante quase um século, sempre atrelada aos anseios e interesses estadunidenses. O ano de 2022 marca uma virada nessa situação: após duas tentativas sem sucesso, o ex ativista do grupo guerrilheiro M-19 e então senador Gustavo Petro consegue enfim se eleger presidente, acompanhado por sua vice, Francia Márquez, negra, ativista ambiental e mãe solo. O feito representa uma imensa quebra de paradigmas na alta política colombiana, dominada historicamente por figuras da oligarquia do país. 

A vitória de Petro e Francia é resultado da insatisfação do povo colombiano com as políticas neoliberais praticadas no país em maior intensidade principalmente a partir da ascensão do uribismo, em 2002. Álvaro Uribe, bastião da direita e extrema-direita colombiana, assumiu a presidência do país no mesmo contexto em que estava a pleno vapor o ciclo progressista nos demais países da região. Com um governo marcado pelo liberalismo econômico e imerso em questões autoritárias, Uribe foi o progenitor de um movimento político que acabará por promover os dois próximos presidentes do país: Juan Manuel Santos (que no futuro se afastaria de Uribe) e Iván Duque, que marcou o fim do período liberal-conservador na Colômbia. 

Dados do Banco Mundial mostram que, entre 2002 e 2021, a Colômbia apresentou uma média de crescimento econômico na ordem de 3,8% a.a. Entretanto, é importante demarcar a diferenciação entre crescimento econômico e desenvolvimento social. O aumento do PIB da Colômbia não gerou ascensão social, muito pelo contrário, aumentou a desigualdade, o que fomentou insatisfação social das camadas populares, situação essa que seria fermentada pela crise econômica que solapou o país no início da pandemia, bem como as altas taxas de desemprego e inflação, somada-se ainda a um aumento da violência policial durante os últimos anos. O plano de governo de Petro e Francia apresenta mudanças importantes, como educação superior gratuita, reforma fiscal que contribua para as classes inferiores, bem como a modificação na estrutura produtiva e exportadora do país, o que aparece como esperança de desenvolvimento social para a população. 

Podem-se notar aproximações e certos contrastes entre os projetos pensados por Petro e outros atores da região. Uma das principais metas estabelecidas, por exemplo, é substituir o extrativismo como principal motor da economia colombiana, por uma estrutura produtiva de padrão industrial, fato que o aproxima de Gabriel Boric – que em junho determinou o fechamento da fundição da maior produtora de cobre do mundo por danos ambientais – mas o difere de lideranças como Nicolás Maduro – ainda muito dependente da extração de hidrocarbonetos -, além de López Obrador, que embora traga essa diferenciação de Petro, possui características semelhantes no que tange ao cenário em que seu país se encontrava antes de sua vitória, em 2018.

AMLO entre ação estatal na economia e conservadorismo nos direitos

Assim como a eleição de Gustavo Petro na Colômbia, a vitória de López Obrador no México, em 2018, ocorreu após duas tentativas em se eleger presidente, e também marca uma quebra no longo período em que o México esteve sob domínio da elite liberal-conservadora. Em se tratando do México moderno – termo cunhado para o período que se inicia em 1934, no governo de Lázaro Cárdenas -, por mais de 80 anos o Partido Revolucionário Institucional (PRI) manteve-se de maneira quase ininterrupta como predominante no Palácio Nacional, com um pequeno intervalo entre 2000 e 2012. Nesses anos, o país foi governado pelo Partido de Ação Nacional (PAN), também de direita. 

Até os anos 1980, López Obrador era um dos quadros do PRI, se colocando como um de seus integrantes mais à esquerda. O PRI fora hegemônico por décadas, repleto de ambiguidades, com mudanças de nome e de orientações ideológicas. Ex-prefeito da Cidade do México, AMLO também apresenta algumas ambiguidades. Apesar de exibir concepções mais à esquerda em temas econômicos, traz uma série de posicionamentos considerados conservadores no âmbito dos direitos humanos. Isso o aproxima, em certa medida, de Pedro Castillo, presidente do Peru, e faz com que a agenda voltada ao meio-ambiente e questões de gênero pouco avancem no país. Vale ressaltar que recentemente o México tornou inconstitucional a punição ao aborto, em uma decisão da Suprema Corte, da qual López Obrador buscou se esquivar e não emitiu opinião. 

A ascensão de Obrador ocorre em um período de insatisfação da população mexicana com a corrupção presente nos governos anteriores, bem como a extrema violência que assola o país há décadas. O então candidato prometeu combater tais questões tão caras à sociedade mexicana e promover o desenvolvimento socioeconômico, deixado de lado por seus antecessores. Embora esteja conseguindo promover projetos sociais voltados para o combate das desigualdades no país, o governo de AMLO vem encontrando dificuldades para conquistar melhores indicadores nas searas econômicas e de segurança. Em abril de 2022, por exemplo, a inflação no México chegou a 7,9%, o maior nível em 21 anos. Ademais, o índice de mortes violentas no país não diminuiu entre 2018 e 2020, com cerca de 29 homicídios para cada 100 mil habitantes. Por outro lado, é possível constatar uma redução constante na taxa de desemprego do país, que no ápice da pandemia chegou a 4,7% e hoje está conformada em 3,4%

A questão ambiental difere AMLO de outros líderes da onda rosa, como Gabriel Boric e Gustavo Petro. Um de seus principais projetos, por exemplo, concerne em uma reforma energética que fortaleça a empresa estatal Comissão Federal de Energia (CFE). Embora resida em uma proposta louvável de maior soberania energética, o grande problema se coloca frente ao fato de que a energia produzida pela CFE seja, majoritariamente, proveniente de usinas termelétricas, marcada como fonte de energia suja. Entre avanços e estagnações, ambiguidades e posições firmes, fato constatado é que AMLO possui uma alta aprovação popular, com a concordância de 60% da população mexicana em relação a suas ações.

Chile, do estalido ao palácio

 

Em 2019, mais de um milhão de pessoas, movidas pelo descontentamento com as forças tradicionais que regiam o país, ocuparam as principais avenidas da capital chilena para lutar por igualdade em todas as frentes. Os manifestantes exigiam melhorias nos sistemas públicos de saúde, educação e previdenciário, salários dignos e reforma da constituição. Essa foi a raiz da nova Onda Rosa no Chile. 

 

Gabriel Boric, atual presidente desde 11 de março de 2022, representa a ascensão progressista do país nos últimos anos. Eleito com 55,8% dos votos, o ex-líder estudantil conquistou os eleitores com promessas de fortalecimento do Estado, criação de um sistema público de Saúde, políticas pró-emprego e reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. No entanto, essas propostas dependem da nova Constituição, cujo texto foi apresentado no último dia 4 e será submetido a um plebiscito “de saída” em 4 de setembro.

 

A nova Carta Magna propõe um Estado plurinacional, reconhecendo a diversidade dos povos indígenas, que totalizam 12,7% da população chilena. O texto ainda apresenta uma democracia participativa em que leis de iniciativa popular poderão ser propostas ao Legislativo se tiverem pelo menos 3% de apoio do eleitorado. Além disso, visa estabelecer igualdade de gênero em todos os organismos do Estado e garantir o direito ao aborto de forma voluntária, livre, segura e dentro do sistema público de saúde. Contudo, a proposta que tem causado conflitos diz respeito ao aumento da fiscalização do Estado sobre as finanças e a taxação das grandes riquezas. Mas apesar da nova Constituição propor um aumento da fiscalização do Estado, o Banco Central não perderá sua autonomia.  

 

O enraizamento da direita no país tem sido um grande empecilho para o desenvolvimento da esquerda. O Chile juntou-se à primeira Onda Rosa em 2006, com a eleição de Michelle Bachelet, mas assim como os demais países da América Latina, migrou novamente para a direita nas duas administrações de Sebastián Piñera (2010-2014 e 2018-2022). Especialistas dizem que o erro da esquerda latino-americana está em não alterar o modelo econômico e tratar a pobreza e desigualdade social como um fator intrínseco ao sistema, ao invés de reconhecer que são frutos do neoliberalismo. Apesar do discurso avançado na área de direitos, Boric nomeou para a pasta de finanças o ex-presidente do Banco Central do governo de Piñera, Mauro Marcel. A Constituinte, por sua vez, incluiu como uma de suas cláusulas a responsabilidade fiscal, tema caro ao neoliberalismo, defendido pelo presidente Boric.


O governo enfrenta duas situações delicadas. A primeira é a abrupta queda da popularidade de Gabriel Boric, que tem apenas 23,8% de aprovação, segundo as pesquisas. Um total de 54,1% dos chilenos desaprovam sua gestão. Por sua vez, a intensa campanha de desinformação por parte da mídia, as sondagens apontam que 51% da população irá rechaçar a Constituinte no plebiscito, contra 33% que a apoiam. As avaliações sobre o ocorrido são contraditórias. Ao que parece, a equipe de Boric planejou políticas de médio e longo curso, como reformas tributárias e no sistema de saúde e educação, mas não previu ações para os primeiros 100 dias, visando atender uma população ávida por mudanças. Diante da intensa oposição de direita, o governo se vê enfraquecido.

 

Em relação à Onda Rosa, Dawisson Belém Lopes (UFMG) diz que “É uma esquerda que chega com menos impacto. Tende a ser mais institucional, convencional, não tão transformadora como no início dos anos 2000″. Assim, o governo de Boric no Chile é um espectro do que pode acontecer com os demais países da América Latina. A esquerda terá que se articular não apenas para vencer a direita, mas para conseguir atender as expectativas de mudança da população. 

 

Venezuela, o berço da onda anterior

A Venezuela – dona das maiores reservas petrolíferas do mundo – foi o grande berço da Onda Rosa (1998), dando seus primeiros passos após a crise da década de 1980, marcada por uma enorme dívida externa, crise cambial, inflação e corrupção. Em 1989, durante o governo de Carlos Andrés Perez, ocorreu uma série de protestos e manifestações contra medidas econômicas de austeridade anunciadas pelo presidente, o que ficou conhecido como “Caracaço”. Com o descontentamento da população frente ao mergulho econômico e, somado ao colapso dos partidos tradicionais e insatisfação com as medidas tomadas pelo governo, o Movimento da Quinta República, liderado pela então pouco conhecido coronel Hugo Chávez, ganhou força no país com seu discurso sobre a necessidade de “reformar a Constituição e refundar a República”.

Em 1998, Hugo Chávez vence as eleições presidenciais e se torna o primeiro presidente de um governo de esquerda depois de décadas na América Latina. O sucesso do chavismo se deu pela promoção de melhorias na vida da população mais pobre, graças à alta dos preços internacionais do petróleo, o que não agradou as classes mais ricas da Venezuela. Após uma tentativa de golpe em 2002 organizada por membros do exército e do empresariado, com apoio da Casa Branca, Chávez se fortaleceu politicamente e garantiu sua reeleição em 2006 e 2011, tornando-se a principal figura da Onda Rosa.  

Após sua morte, em 2013, Nicolás Maduro assume o poder e mantém a presença da esquerda no país. Contudo, desde sua posse, Maduro enfrenta golpes orquestrados pelas oligarquias e apoiados pelos Estados Unidos. Ademais, seu governo é marcado por polêmicas sobre autoritarismo e denúncias de corrupção, e uma complicada conjuntura internacional.

A Venezuela vive o prolongamento de uma crise iniciada em 2013, quando os preços do petróleo no mercado internacional desabaram o barril para menos de US$ 30. Como a produção nacional para exportação se concentra apenas em hidrocarbonetos, uma pesada recessão instalou-se, sem muitas válvulas de escape. Some-se a isso o sucateamento da indústria petroleira, que carece de investimentos em tecnologia e inovação há mais de uma década. A produção diária de petróleo, embora tenha aumentado um pouco nos últimos meses, é de cerca de um terço do total obtido há duas décadas. 

O anúncio nesta semana de que o governo abriria Zonas Especiais Especiais, com incentivos e financiamentos destinados à expansão da atividade industrial, suscitou controvérsia no governo. Trata-se de modelo semelhante ao tentado na China nos anos 1980, que abre caminho à criação de locais onde leis nacionais de produção e trabalho possam ser burladas. Um acordo de exportação de petróleo para os EUA, acertado em março recoloca o país no mercado Ocidental de combustíveis, mas as decorrências ainda não são evidentes.

Bolívia, o país que voltou do golpe

Luis Arce assumiu o cargo de Presidente da Bolívia em 2020, um ano após Evo Morales renunciar, num violento golpe institucional. No intervalo, um governo ultraliberal tentou implementar medidas restritivas, mas não conseguiu se estabilizar. A volta da centro-esquerda ao poder é um feito a ser ressaltado. 

Luis Arce foi Ministro da Economia do governo de Evo Morales. Após a eleição, Arce sinalizou um afastamento da figura de seu antecessor. O novo presidente encontrou uma oposição disposta a atacá-lo.

Apesar de ter um perfil semelhante ao de Evo em seu discurso, Arce não apresenta liderança semelhante. Além de ser chefe do executivo, Evo também era presidente de seu partido e uma liderança entre os indígenas e movimentos populares. 

Arce assumiu um país em crise, fruto do governo interino de Jeanine Áñez, que em 11 meses triplicou a dívida interna da Bolívia. Já de início,  revogou todos os decretos econômicos promovidos por Áñez, e aumentou os investimentos públicos. Além disso, Arce promulgou a lei de taxação de grandes fortunas e  pretende continuar os investimentos na industrialização do lítio. A Bolívia possui as maiores reservas mundiais dessa matéria prima para a construção de baterias para carros e motores elétricos. 

Na agenda ambiental, o presidente apresentou propostas para a neutralização de emissões de gás carbônico no país até 2030. Também propôs a mudança da matriz energética do país para fontes renováveis.

Arce estreitou as relações com o Peru, assinando um acordo bilateral, para desenvolvimento da agricultura e da mineração.

Peru, cordilheira de crises

O caso peruano evidencia a crescente insatisfação popular a uma das maiores crises políticas já enfrentadas pelo país, e também a aversão às figuras declaradamente de extrema direita, que recordam um passado ditatorial na América Latina. 

 

O país enfrenta um alvoroçado cenário político cercado por investigações de corrupção, processos de impeachments e renúncias que remontam os governos de Alan García (2006-2011) e Ollanta Humana (2011-2016), bem como as gestões conservadoras de Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018) e Martin Vizcarra (2018-2020). Nas eleições gerais de 2021, vence Pedro Castillo, por um partido de esquerda sem muito enraizamento social, o Peru Livre. Tendo enfrentado Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000), Castillo se vê sem maioria parlamentar, realizando uma administração errática que luta para se manter de pé. 

 

O conturbado processo eleitoral peruano se estendeu por cerca de um mês de apuração em segundo turno – durante o qual surgiram questionamentos, por parte da candidata de direita, de suposta fraude eleitora, e pedido de anulação de votos – até ser dada a vitória democrática de Castillo nas urnas. Pedro Castillo é um professor e líder sindical nascido na cidade camponesa de Puña, Tacabamba, tomou posse da presidência em 28 de julho de 2021.

 

Apesar de sua posição econômica mais à esquerda. Castillo talvez seja o mais conservador dos atuais presidentes da Onda Rosa, no âmbito dos direitos humanos: católico, já demonstrou sua insatisfação e não apoio a assuntos sociais mais progressistas, tais como a legalização do direito ao aborto, pautas sexuais e de gênero na educação e ao casamento entre pessoas de mesmo sexo. Ainda no segundo turno das eleições, fez questão de dizer em seus discursos que não é comunista, que trabalharia para a satisfação geral dos eleitores das áreas ricas aos das áreas rurais, onde possuiu maior apoio.

 

No país, ministros têm de ser aprovados pelo Congresso, o que, num governo de minoria parlamentar, pode tornar o ato de governar um exercício de infindáveis negociações e chantagens entre os poderes. Castillo já está em seu quarto gabinete ministerial desde a posse há menos de um ano e, na prática, realiza um governo convencional de direita. Seu partido rompeu com ele e seu governo há poucas semanas.

 

Castillo não conseguiu aprovar uma Assembléia Constituinte no Congresso – uma das principais promessas de sua campanha -, enfrentou duas tentativas de impeachment e se vê diante de um crescente descontentamento popular. Ainda de acordo com os líderes do partido, o presidente vem implementando um programa de governo neoliberal.

 

Honduras, 13 anos após o golpe

 

Em 2022 Honduras elegeu sua primeira presidenta, 13 anos após um golpe de Estado que interrompeu seu processo democrático. Após mais de uma década de conservadorismo, um partido de esquerda chega ao poder. Xiomara Castro substituiu o ex-presidente Juan Orlando Hernández (JOH), que logo após foi preso suspeito de ligações com o narcotráfico.

 

Desde 2009, em que Manuel Zelaya, esposo de Xiomara, sofreu um golpe por parte dos militares e das elites empresariais, Honduras foi governada por conservadores. JOH (2014 – 2021), se reelegeu de forma conturbada e com acusações de fraude, em que levaram a protestos e cidadãos hondurenhos foram mortos pelas forças armadas. 

 

Xiomara assumiu Honduras com altos índices de pobreza e desemprego. Além disso, o país também sofre com a violência, vinda dos cartéis de drogas. A presidente chega ao governo com uma coalizão ampla, o que já trouxe problemas nos primeiros dias  de governo. Algumas de suas propostas foram a da flexibilização das leis de aborto do sob condições específicas, e também o casamento homoafetivo. Durante sua campanha, Xiomara prometeu tirar Honduras do abismo do neoliberalismo, lutar contra a corrupção e contra a cultura de impunidade que existe no país.

 

Repressão e manutenção do poder na Nicarágua

Em 2021, o presidente Daniel Ortega assumiu pela quarta vez consecutiva o cargo de chefe de Estado da Nicarágua, em meio a uma eleição extremamente controversa, em que sete de seus concorrentes (os mais competitivos) foram presos e removidos da disputa eleitoral. Ortega conseguiu 75% dos votos, mas somente 20% de eleitores se dispuseram a participar, segundo o observatório independente Urnas Abertas. Além da abstenção, houve denúncias de tentativa de controle paramilitar e assédio a funcionários públicos para que não se abstivessem.

Mesmo diante dos intensos protestos que ocorreram em 2018, que exigiam a renúncia de Ortega e do recuo da proposta de redução da aposentadoria, ele tem, a cada eleição que se realiza, um número cada vez mais expressivo de percentual de votos (saindo de 38% na eleição de 2006, para 72% em 2016). E esses números não parecem indicar uma aprovação maior sobre o governo, mas se relacionam com a adoção de mais medidas repressivas e de ataque à oposição.

O presidente apresenta críticas aos EUA e à sua atuação no país e na América Latina, ambos têm enfrentado cada vez mais desentendimentos sobre as decisões políticas e econômicas da Nicarágua. Os EUA alegam que suas tentativas de interferência dizem respeito à preocupação com a manutenção da democracia no país, mas é sabido que há um incômodo com a possibilidade de atividades do governo russo no país da América Central. O presidente, por sua vez, sinaliza que resistirá às investidas estadunidenses contra a soberania do país.

Ortega integra a Frente Sandinista de Libertação Nacional, tem como vice a sua esposa Rosario Murillo e preside o país desde 2007. Foi um dos principais líderes da Revolução Sandinista, que expulsou o ditador Anatásio Somoza do poder, em 1979. No entanto, a gestão atual guarda muito pouco do impulso transformador de quatro décadas atrás. Ortega criou uma nova oligarquia, num país atrasado e desindustrializado. Nem mesmo com imensa flexibilidade interpretativa a Nicarágua pode ser incluída na classificação de possuir um governo progressista.

O desfecho que se espera em 2022

 

O Brasil – que concentra quase 40% do PIB e cerca de 25% da população continental – se constitui como um dos últimos redutos do levante conservador dos últimos anos. A supremacia da extrema-direita será confrontada em outubro deste ano, quando ocorrerá a eleição presidencial. Desde que assumiu, o presidente Jair Bolsonaro demonstra-se inapto em promover políticas econômicas de combate à inflação e ao desemprego, em se relacionar com países vizinhos e, principalmente, em conter os efeitos da crise sanitária de Covid-19 que ceifou mais de 670 mil vidas nos últimos dois anos. E, portanto, enfrenta a crescente rejeição da população ao seu governo. 

 

As pesquisas eleitorais expõem uma ampla preferência dos eleitores pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com algumas projeções apresentando um cenário de vitória ainda em primeiro turno. Caso este fato se consume, Lula se colocaria como o único remanescente do primeiro ciclo progressista na região. O ex-presidente é tido como referência pelos atores da nova Onda Rosa, e já atuou em favor da integração latino americana nos mandatos anteriores. 

 

Há, no entanto, dilemas sérios a serem superados. Apesar de inegáveis avanços nos terrenos de direitos sociais e de algum investimento público significativo, os governos progressistas não alteraram os perfis das economias locais e nem romperam com os principais paradigmas neoliberais. É preocupante que o Chile esteja em vias de constitucionalizar o que se denomina de “responsabilidade fiscal”, conceito criado nos anos 1990 para constranger investimentos nos países da periferia. José Antonio Ocampo, indicado para a pasta da Economia na Colômbia, já anunciou que dará continuidade a um ajuste fiscal para reduzir gastos. No caso brasileiro, Luís Inácio Lula da Silva anunciou, em encontro com empresários, a necessidade de se manter a responsabilidade fiscal. Embora todos os três propaguem políticas de investimento e ação do Estado, a centro-esquerda não pode perder de vista o que foi o segundo governo de Dilma Rousseff, no Brasil. Pressionada por setores da mídia e da alta finança, a então presidenta adotou o que denominava de “o maior ajuste fiscal da história do país”, com políticas fortemente restritivas. O resultado foi uma inédita recessão e um desemprego acima de dois dígitos, que reduziu em muito o apoio popular à sua gestão, abrindo caminho para o golpe de 2016. 

 

Não é fácil ultrapassar os limites do neoliberalismo, que representam os interesses seculares das oligarquias continentais. É preciso não apenas vontade, mas força política para tanto.

 

Existem alguns fatores comuns entre quase todos os atores progressistas, como a busca pela autonomia de seus países, pela diversificação das relações externas, propostas de desenvolvimento e industrialização. A nova Onda Rosa que pode estar surgindo na América Latina está sendo recebida em um contexto muito mais dramático que a anterior. 

 

É urgente a integração definitiva dos povos vulneráveis, a transformação do estilo de vida e o compromisso com as causas ambientais. A manutenção do neoliberalismo submeteu as pessoas a sucessivas crises e incertezas que as fazem desacreditar e negar a efetividade da participação política. Além disso, a região se recupera do trauma de uma tomada acelerada e agressiva da extrema-direita, seguida pela tragédia pandêmica. Para que exista chance de mudança, é necessário a articulação de estratégias comprometidas com esses propósitos e uma sólida integração regional que some forças contra investidas imperiais.

 

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