A projeção turca no continente africano

14 de dezembro de 2022

Por Mohammed Nadir, Flávio Francisco e Gabriel Soares (Foto: Turkish Presidential Press office)

 

País soma-se à nova disputa pelo continente marcada  pela corrida por seus recursos naturais e influência geopolítica

 

A África passa por um processo de complexificação da relação de seus países com os países de outros continentes, marcada por uma nova corrida pelos seus recursos naturais. No atual contexto, entretanto, não são somente as potências ocidentais que competem por meio de agendas econômicas e de segurança, mas também a Rússia, o Qatar, Emirados Árabes, Arábia Saudita, Israel e Irã. Alguns especialistas já identificaram uma nova disputa pelo continente africano, diante do potencial e do desenvolvimento de algumas regiões nas últimas décadas. A Turquia aparece como uma força emergente interessada em estabelecer a sua influência sobre o continente, trilhando o seu próprio caminho desde o ano de 2005. Desde então o país tem estruturado uma política de assistência para os países africanos em conflito e abrindo caminhos para a atuação de construtoras turcas em diferentes partes do continente.

É possível identificar a influência turca na África desde o século XVI, quando os otomanos expandiram os seus domínios ao norte do continente, indo em direção à região do Sahel. Foram cerca de quatrocentos anos de ocupação através de administrações políticas na Argélia, Tunísia, Líbia, Egito e Eritréia. Os otomanos começaram a recuar na primeira década do século XX, com o avanço dos projetos coloniais dos países europeus. Após o recente “retorno”, a Turquia tem procurado aumentar a sua influência por meio de diferentes canais como comércio, investimento, educação, saúde, segurança e cooperação técnica na área militar. Por outro lado, é cada vez mais evidente a presença de africanos em solo turco, sobretudo com a presença de empreendedores, estudantes e imigrantes que engrossam as comunidades de somalis, sudaneses, líbios, egípcios, argelinos, senegaleses e nigerianos.

Através desse engajamento, a Turquia ganhou o status de observadora da União Africana e tem estreitado o relacionamento com os países africanos por meio de conferências que reforçam as relações de mutualidade marcadas pelas expressões “futuro comum”, “cooperação” e “solidariedade”. O presidente Erdogan visitou cerca de 30 países, o que é considerado um recorde para um estadista não africano. Apesar da atuação em várias frentes, as prioridades dos turcos são as cooperações econômicas e as relações comerciais.

A participação turca  através de construtoras

O Banco Africano de Desenvolvimento estima que as carências por gastos somente no setor de infraestrutura do continente totalizam  US$130 a US$170 bilhões por ano. Outras fontes, como o Banco Mundial, sugerem uma demanda reprimida ainda maior, contabilizando US$300 bilhões a.a. até 2040, ao considerar os custos associados à contenção dos efeitos das mudanças climáticas. A África precisaria, portanto, de cerca de US$12 trilhões em investimentos no setor para atingir os níveis de infraestrutura que precisa, e assim, poder subsidiar a melhora dos padrões de vida de sua população e estimular o surgimento de novas fontes produtivas. Mesmo que a participação das estatais chinesas se mantenha nas mesmas proporções, esse processo ainda pode levar décadas, logo, existe um amplo espaço para atuação de outras corporativas e o estado turco já vem antevendo essas oportunidades. 

A expansão do volume de contratos de empresas turcas no ramo de construção africano, particularmente na África subsaariana, é resultado dos amplos esforços que a política externa do país teve na última década para projeção dessas empresas em mercados estrangeiros. Os resultados do ambicioso projeto do estado turco já são visíveis em sua balança comercial, o comércio África-Turquia cresceu aproximadamente cinco vezes em comparação com dados de 2003, passando de US$5,5 bi para US$21,2 bi em 2021. O setor de construção turco, que historicamente sempre foi o eixo motriz para promoção do desenvolvimento no país, e por isso, recebeu predileção dos incentivos estatais, hoje corresponde a  6% do PIB – chegando a 30%  pela consideração dos impactos diretos e indiretos sobre setores relacionados- e tornou-se empregador direto de 1,5 milhão de trabalhadores. 

A agenda turca de segurança e defesa em África 

De fato, a África é um “continente multipolar” em ascensão, onde as potências extrarregionais estabelecidas e emergentes estão competindo por ganhos comerciais e influência geopolítica. A Turquia tem figurado com destaque nesta terceira onda de interesse estrangeiro na África.

Enraizada na redefinição do papel do país nos assuntos internacionais e na convergência de interesses entre as elites estatais e empresariais, a Turquia desenvolveu uma rede cada vez mais densa de laços em múltiplas dimensões em toda a África. 

O crescente volume de negócios das empresas turcas nos mercados de construção africanos é ilustrativo do progresso que a Turquia fez para garantir uma forte presença no continente. Embora as empresas estatais chinesas (SOEs) sejam de longe as maiores construtoras da África, as empresas de construção turcas se estabeleceram como participantes capazes e competitivos não apenas no Magreb, mas também e sobretudo  nos mercados subsaarianos.

Isso se explica pela visão do Estado turco de tornar a Turquia um ator importante no cenário global, nesse sentido Erdoğan presidiu uma estratégia multidimensional para o continente africano. Desenvolvida no âmbito da “Política de Abertura para a África” adotada em 1998, a estratégia visava fazer a ponte entre o Magreb culturalmente “próximo” e a  África Subsaariana geograficamente  “distante”.

Liderando a campanha diplomática e comercial de Ancara no continente africano, o presidente Erdoğan, que se refere à Turquia como “um estado afro-eurasiano”, empregou e autorizou pessoalmente o uso de uma variedade de ferramentas de soft power. Logo depois Erdoğan declarou 2005 o Ano da África – aliás, um ano antes da China fazer o mesmo – a Turquia foi admitida como membro observador da União Africana (UA). Três anos depois, a UA designou a Turquia como “Parceiro Estratégico”.

Ora, se o protagonismo turco tem se destacado em termos empresariais e industriais, a Turquia tentou desbravar outro campo não menos importante na estratégia global da Turquia no continente africano. Trata-se da área de segurança e defesa. Como?

É sabido que os estados africanos aspiram desde muito  a fortalecer suas capacidades de defesa em um cenário de instabilidade contínua no continente. Ciente disso, a Turquia adicionou recentemente a cooperação em segurança e defesa aos seus instrumentos de soft power existentes e lançou as bases para uma cooperação estratégica de longo prazo com os países africanos. O aumento das vendas de drones é uma parte importante dessa cooperação, mas não é seu único componente. Um projeto de política de exportação de armas, treinamento militar e diplomacia de defesa que se reforça mutuamente permite que o governo turco possa construir laços institucionais e de longo prazo com os países africanos. Hoje, a Turquia é um entre muitos provedores de segurança que os estados africanos podem escolher o que lhes permite não ficarem reféns dos tradicionais provedores que são a União Europeia e os Estados Unidos.

Portanto, se até recentemente, o envolvimento da Turquia em grande parte da África tinha um perfil menor, a sua intervenção militar na Líbia e seus investimentos em larga escala na Somália mostraram uma mutação nesse perfil. Hoje, a Turquia está aumentando seu alcance de segurança no continente. Além de várias visitas oficiais de alto nível feitas pelo presidente Recep Tayyip Erdoğan a países do oeste e norte da África nos últimos anos, a Turquia também alavancou a participação nas iniciativas de contraterrorismo dos estados africanos e aumentou sua ajuda humanitária, por exemplo, para Nigéria, Mauritânia e Níger. Além disso, Ancara assinou novos acordos de armas com países do norte da África, como Tunísia e Marrocos.

Nesse sentido, a política externa turca na África combina segurança e economia, de certa forma reforçando-se mutuamente em seu desígnio político. A cooperação com a Nigéria sobre fluxos ilícitos de armas, a ajuda financeira à Mauritânia para combater o terrorismo, um acordo de cooperação militar com o Níger e os recentes acordos de drones com o Marrocos e a Tunísia se encaixam no padrão geral do desígnio político de Ancara. Isso significa não apenas a transformação da política externa da Turquia em relação à África, adicionando outro instrumento ao seu conjunto de ferramentas, mas também a cooperação estratégica de longo prazo com os estados do continente.

É nesse âmbito que se explica o aumento das exportações de armas da Turquia para os Estados africanos como veículos aéreos não tripulados (UAVs), veículos blindados, sistemas de sensores eletro-ópticos, sistemas de vigilância e veículos de remoção de minas. O maior trunfo das empresas de defesa turcas é a conjugação dos  preços competitivos para seu equipamento militar com uma política sem compromisso. De acordo com dados da Assembleia de Exportadores Turcos, as exportações de defesa e aeroespacial da Turquia para a África atingiram US$460,6 milhões em 2021, em comparação com US$82,981 milhões no ano anterior. Este aumento de mais de cinco vezes ao longo de um ano mostra o crescente interesse dos países africanos e o elevado potencial deste mercado.

Em segundo lugar, também houve um aumento nos esforços sistemáticos da Turquia para assinar diferentes tipos de acordos de cooperação relacionados à segurança com países africanos. Por exemplo, a Turquia tem acordos de treinamento de pessoal de segurança com a Argélia, Burkina Faso, Djibuti, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Costa do Marfim, Líbia, Madagascar, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Ruanda, Senegal, Somália, Sudão, Tanzânia, e Tunísia. Alguns desses acordos também permitiram à Turquia abrir centros de treinamento, como os da Líbia e da Somália. Os programas de treinamento visam diferentes unidades do aparato de segurança, incluindo militares, gendarmaria, guarda costeira e forças policiais.

No entanto, os acordos de segurança da Turquia vão além dos programas de treinamento. Eles também incluem um número crescente de acordos de cooperação em segurança, de escopo mais abrangente, como os acordos-quadro militares que abrangem treinamento, cooperação técnica e científica. No total, 30 estados africanos assinaram diferentes tipos de acordos relacionados à segurança com a Turquia. O maior número de acordos, 21 no total, foi ratificado em 2017 (com Benin, Chade, RD Congo, Djibuti , Gabão, Gâmbia, Guiné-Bissau, Costa do Marfim , Quênia, Líbia, Mali, Níger, Nigéria, Senegal, Somália, Tanzânia e Uganda), seguidos por 16 acordos em 2018 (República do Congo, Djibuti, Gana, Madagascar, Níger, Nigéria, Ruanda, Somália, Sudão, Tanzânia, Tunísia). Esses acordos fornecem uma estrutura para a cooperação militar e de segurança em diferentes níveis entre diferentes partes interessadas.

Em terceiro lugar, a Turquia também se envolve na diplomacia de defesa com os estados africanos. Em 2014, o Grupo de Trabalho Naval Turco Bárbaros, que é composto por duas fragatas, uma corveta e um navio de reabastecimento, viajou por todo o continente africano, visitando 25 portos em 24 países africanos; 19 deles foram visitados pela primeira vez. Esta missão participou de exercícios de treinamento conjuntos na África do Sul e apoiou atividades antipirataria no Mar Vermelho, Golfo de Áden, Mar da Arábia e regiões adjacentes. Essa investida turca visou interconectar diferentes estratégias, como a diplomacia de defesa, a promoção de sua indústria de defesa e o treinamento militar.

Por fim, a Turquia também aumentou sua participação em missões internacionais de manutenção da paz na África. Na era pós-Guerra Fria, a Turquia estava ansiosa para participar de operações militares internacionais e, como resultado de seus intensos esforços, assumiu o comando da Missão de Assistência das Nações Unidas na Somália (UNOSOM) em 1993-94. Esta foi a única missão militar internacional na África em que a Turquia participou durante a década de 1990. Naquela época, a participação proativa da Turquia nas operações internacionais de gerenciamento de crises era uma estratégia para garantir seu papel nas estruturas de segurança ocidentais, concentrando-se principalmente nos Bálcãs. Nos anos 2000, a Turquia começou a contribuir mais para a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a ONU e outros esforços conjuntos de governança de segurança na África. Desde então, a Turquia contribuiu em esforços multilaterais semelhantes no Mali, República Centro-Africana (RCA), Congo, Líbia, Sudão, Sudão do Sul e Somália.

Contudo, deve-se entender que o salto marcante na indústria de defesa turca ocorreu como resultado do boom econômico em meados dos anos 2000. O boom possibilitou o aumento dos recursos alocados em projetos de defesa e deu origem a inúmeros projetos de desenvolvimento de equipamentos militares.

Enquanto os EUA e União Europeia estão perdendo espaço na região, os Estados africanos estão cada vez mais fazendo parcerias com estados regionais como os Estados do Golfo, a Turquia, bem como com potências globais, incluindo Rússia e China. Esses novos atores fornecem opções e alternativas viáveis para as tradicionais, Bruxelas e outras capitais europeias. Aos olhos dos decisores africanos, esta transformação geopolítica oferece mais espaço para negociações e manobras e, consequentemente, uma oportunidade para exercer mais agência e maior possibilidade de afirmar os seus próprios interesses e prioridades.

Para a Turquia, a multipolaridade emergente na África é uma oportunidade de desenvolver relações “estratégicas e de longo prazo” baseadas em “interesse mútuo, confiança e parceria” com os países africanos, posicionando-se como um parceiro de segurança de maior relevo.

 

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