14 de dezembro de 2022
Por Gabrielly Almeida Santos do Amparo[1]
A imagem de diplomata que foi construída e reproduzida no Brasil teve parâmetros elitistas, patrimonialistas, racistas e patriarcalistas, e as mulheres não estão presentes em cargos de representatividade e visibilidade internacionais
Poucos cargos do serviço exterior brasileiro podem ser ocupados por pessoas de fora da carreira diplomática. De acordo com Figueira (2010, p. 9), o Itamaraty é o ministério “que menos comporta cargos comissionados e profissionais externos dentro de seu quadro funcional”. Contudo, cabe ao presidente da República a escolha do comando do Ministério das Relações Exteriores (MRE).
Durante a corrida eleitoral de 2022 pela presidência do Brasil, muito se especulou sobre a possibilidade de o país ter, pela primeira vez, uma ministra das relações exteriores, caso Luiz Inácio Lula da Silva fosse eleito. Nomes como o das embaixadoras Maria Luiza Ribeiro Viotti e Irene Vida Gala – diplomatas de carreira – e o da ex-Ministra do Meio Ambiente Marina Silva – que apesar de não ser diplomata de carreira tem grande influência na questão ambiental – foram cotados como fortes candidatos ao cargo[2]. Com a vitória de Lula garantida no segundo turno, ficou a dúvida: será que enfim teríamos uma mulher à frente do MRE?
No Brasil, a diplomacia é uma comunidade profissional vinculada a uma instituição burocrática caracterizada por uma cultura hierárquica com regras de seleção e ascensão funcional (MOURA, 2007, p. 17; LOPES, 2013). Os diplomatas brasileiros são treinados e capacitados nos assuntos de política externa pelo Instituto Rio Branco (IRBr) e são institucionalmente vinculados ao MRE, compondo, assim, o quadro de funcionários do serviço exterior. No entanto, nem sempre o Ministério das Relações Exteriores teve regras democráticas de seleção e ascensão de seus funcionários. Desde seus primórdios até meados da década de 1930, os diplomatas recrutados eram, majoritariamente, homens brancos da corte e da elite – econômica e intelectual -, de confiança do soberano ou do governo vigente e que lhes eram interessantes manter por perto devido a seus interesses. O Barão do Rio Branco, considerado patrono da diplomacia no Brasil, por exemplo, recrutava diplomatas de maneira pessoal, considerando laços patrimoniais, raça (branco), sexo (homem) e condição econômica-social (classe). A partir da década de 1940, sobretudo com a criação do IRBr em 1946, houve uma crescente burocratização e democratização dos mecanismos de recrutamento, tornando o processo de adesão à carreira diplomática mais impessoal, por meio dos concursos públicos (LOPES, 2013; MOURA, 2007).
Desta forma, a imagem de “diplomata” foi construída, no Brasil, sobre parâmetros elitistas, patrimonialistas, racistas e patriarcalistas. Esta imagem forjada e reproduzida historicamente pelo Itamaraty, pelas mídias e pela sociedade, encobre e perpetua uma hierarquia de gênero prejudicial às mulheres, que sequer fazem parte da história oficial da instituição e não estão presentes em cargos de representatividade e visibilidade internacionais. Logo, se elas não são “vistas” pela sociedade brasileira, tornam-se “invisíveis” e, consequentemente, “ausentes”, “inexistentes”. Assim, mesmo que nos dias atuais haja uma busca crescente pela democratização da instituição, o Itamaraty ainda lida com desigualdades de gênero no seu quadro funcional. As mulheres ainda compõem menos de 25% do corpo diplomático e nunca houve uma Ministra das Relações Exteriores do Brasil (AMPARO; MOREIRA, 2021).
Com a volta de Lula à presidência do Brasil, ascendeu-se o lampejo de esperança de termos, pela primeira vez, uma mulher no comando do MRE. Esta esperança se acendeu não somente pelas falas do ex-Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim durante o período eleitoral, que enalteceram Viotti e não descartaram a possibilidade da nomeação de uma mulher ao cargo, mas também porque, durante os dois mandatos presidenciais de Lula, houve apoio à causa de gênero dentro da instituição: de 2003 a 2009 a proporção de mulheres entre os diplomatas promovidos cresceu de 16% para 29% (COCKLES; STEINER, 2017: 267-268); em 2003 Amorim nomeou a primeira Subsecretária do Itamaraty, Vera Pedrosa Martins de Almeida; em 2005, nomeou Maria de Nazareth Farani Azevedo como a primeira mulher chefe do Gabinete do Ministro das Relações Exteriores; nomeou Maria Luiza Ribeiro Viotti – que está sendo cotada para a chefia do MRE no governo Lula – e Regina Maria Cordeiro Dunlop para representações permanentes do Brasil junto às Nações Unidas em Nova York; e, além disso, promoveu uma política informal de cotas para promoção de mulheres na hierarquia itamaratiana, por meio de instrumentos de pressão interna (AMPARO; MOREIRA, 2021).
Todavia, no dia 9 de dezembro de 2022, o presidente eleito seguiu a tradição de manter um homem branco à frente do MRE e nomeou o embaixador Mauro Vieira como ministro das Relações Exteriores, mostrando que as especulações de termos uma ministra não passaram de miragens no calor do momento da corrida eleitoral. Caso o governo Lula tivesse nomeado Marina Silva ao cargo, por um lado atenderia uma demanda da frente feminista interna e externa, mas, por outro, desvalorizaria os profissionais da carreira diplomática – uma vez que Marina não é diplomata de carreira -, contradizendo as posições anteriores do partido do presidente eleito – pois o Partido dos Trabalhadores sempre apoiou a nomeação apenas de diplomatas de carreira – e ratificaria a ideia – errônea – de que não há mulheres qualificadas para o cargo dentro do corpo diplomático. Já a nomeação de Viotti ou de outra embaixadora ao comando do Ministério das Relações Exteriores teria permitido dar voz às diplomatas e uma nova face à diplomacia brasileira, que de sua gênese até hoje não tem rosto de mulher.
[1] Doutoranda em Economia Política Mundial pela UFABC. Professora de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP).
[2] https://exame.com/brasil/lula-planeja-nomear-mulher-para-comandar-itamaraty-se-vencer-a-eleicao/
Referências:
AMPARO, Gabrielly Almeida Santos do; MOREIRA, Julia Bertino. A diplomacia não tem rosto de mulher: o Itamaraty e a desigualdade de gênero . Meridiano 47 – Journal of Global Studies, [S. l.], v. 22, 2021. DOI: 10.20889/M47e22001. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/MED/article/view/32441. Acesso em: 2 dez. 2022.
COCKLES, Mariana; STEINER, Andrea Quirino. “As mulheres na carreira diplomática brasileira: considerações sobre admissão, hierarquia e ascensão profissional.” Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 6, no. 11 (2017): 250280. Disponível em: http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/6918/3891.
FIGUEIRA, Ariane C. R. Rupturas e continuidades no padrão organizacional e decisório do Ministério das Relações Exteriores. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 53, n. 2, p. 5-22, 2010.
LOPES, Dawisson Belém. Política externa e democracia no Brasil: ensaio de interpretação histórica. São Paulo: Editora UNESP, 2013. 336 p.
MOURA, Cristina Patriota de. O Instituto Rio Branco e a diplomacia brasileira: um estudo de carreira e socialização. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. 136pp.