Cem dias de política externa

18 de abril de 2023


Por Bárbara Fasolin Koboyama, Francisco Zupanovich, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Gustavo Mendes Almeida, Melissa Souza Jorge e Rafaela Castilho Miranda (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)


A política externa dos primeiros 100 dias do governo Lula III desatou nós e reatou laços diplomáticos na América Latina. A nova gestão busca recuperar a liderança do Brasil na região, após quatro anos de isolamento. A marca maior é a volta da diplomacia presidencial através da viagem à Argentina e ao Uruguai, na qual Lula participou da 7ª Cúpula da CELAC e discutiu o futuro do Mercosul. Em relação aos organismos multilaterais da região, destacam-se ainda a reconstrução da Unasul, os esforços para destravar o acordo Mercosul-UE e a iniciativa brasileira de sediar uma reunião de países amazônicos a partir da OTCA. Na dimensão bilateral, os destaques são a normalização das relações com a Venezuela e a postura questionável do governo frente às crises políticas no Peru e na Nicarágua.


Cenário encontrado 


No dia 30 de outubro de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente do Brasil pela terceira vez. É possível afirmar que a política externa caótica do governo Bolsonaro tenha sido um fator importante para sua rejeição frente a população brasileira.

Para compreender melhor esse cenário precisamos retornar um pouco atrás e entender que o Brasil, historicamente, se consolidou como uma referência para a diplomacia mundial e, principalmente, para a diplomacia latinoamericana. Diante dos acontecimentos históricos foi se criando uma reputação sobre a diplomacia brasileira e sob a PEB que levava o Brasil a posição de um importante mediador de resoluções diplomáticas e amistosas. Durante o processo eleitoral de 2018, no entanto, a revista The Economist chegou a apontar Jair Bolsonaro como uma ameaça para a América Latina, na época em questão o medo se pautava em duas grandes frentes: 1. A ameaça que Bolsonaro representava para a “democracia sobrevivente” de um país de dimensões continentais e 2. A ameaça que seus discursos representavam nas relações já estruturadas com os demais países da América Latina – visto que desde os primeiros momentos da candidatura ele proferia discursos contra os vizinhos do sul global. 

Ao longo de seu mandato, a política do governo Bolsonaro no continente apresentou duas iniciativas: a de destruição e a da tentativa de criar alianças com administrações conservadoras. A primeira se traduziu no esvaziamento da União de Nações Sulamericanas (Unasul), na saída da Comunidade de Estados Latinoamericanos e do Caribe (Celac) e na mitigação do Mercosul. As articulações se concentraram na tentativa de criar o ProSul, junto aos governos Sebastián Piñera (Chile) e Iván Duque (Colômbia). Se a destruição teve sucesso, a construção se frustrou. Em síntese, a política externa extremista pode ser resumida como um momento de isolamento diplomático mundial, mas com uma intensidade especial sob o sul global e, consequentemente, sob a América Latina. As especificidades desse isolamento assim como as políticas detalhadas do mandato de 2018 a 2022 no que tange a política externa podem ser encontradas de forma aprofundada no livro lançado pelo OPEB em 2021.

A primeira manifestação pública da equipe que assumiria o Itamaraty foi uma nota emitida dez dias após a vitória, dianteo da destituição do presidente Pedro Castillo, no Peru. A situação embutia certa dose de confusão. Eleito pela esquerda, Castillo enfrentou ao longo de um ano e meio uma feroz oposição da maioria congressual de direita e de extrema-direita. Em 9 de dezembro, valeu-se da prerrogativa constitucional de destituir o Congresso e chamar novas eleições, a partir de seguidas derrotas no parlamento. Sem força política, sofreu um impeachment e foi preso. Vitória conservadora. Seguiu-se brutal repressão aos setores populares.

A nota do governo eleito saudava a vice de Castillo, recém empossada, parecendo desconhecer a legalidade da ação presidencial e de onde partiu o golpe. Posição mais cautelosa tomaram os governos de México, Colômbia, Bolívia e Argentina.


Reaproximação com o Mercosul


A escolha da Argentina como primeiro destino do terceiro mandato carrega um peso significativo para a integração regional. A questão do Mercosul e as estratégias políticas para garantir os interesses voltados à América Latina através da participação e representação do Sul Global no sistema internacional evidencia o grande impacto que a relação entre Brasil e Argentina tem para ambos os países e na região.

No dia 23 de janeiro, Lula reuniu-se com o presidente argentino, Alberto Fernandez e, no dia seguinte, interveio na VII Cúpula da Celac. Em entrevista coletiva na Casa Rosada, junto a Fernández, Lula traçou pelo menos duas grandes linhas de atuação para a região: a volta do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como financiador de empresas brasileiras no exterior e a defesa da soberania de Venezuela e Cuba. A essas iniciativas se somaram o retorno do Brasil à União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a reconstituição da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), além do reforço ao Mercosul.

Os governos brasileiro e argentino ratificaram acordos nas áreas de defesa, economia, saúde, ciência, tecnologia e inovação, energia e ambiente, integração e outros tanto nas esferas bilaterais quanto regional e multilateral. Não somente é mencionada a relação comercial, mas também a aproximação cultural, política e entre as universidades brasileiras e argentinas. 

A primeira viagem internacional de Lula em seu primeiro mandato, em 2003, também foi à Argentina. Em ambas as visitas, o governo Lula demonstra a política voltada à América do Sul e à América Latina como uma prioridade. 

Lula chega ao Uruguai  dois dias depois e realiza duas reuniões: uma com o presidente, Luis Lacalle Pou, e outra com o ex-presidente, Pepe Mujica.

A conversa entre Lula e Lacalle Pou é marcada por divergência de posicionamentos. Enquanto Argentina, Brasil e Paraguai defendem a necessidade de unanimidade para negociações bilaterais entre membros do Mercosul com outros países, a posição atual do Uruguai é contrária. O país planeja isoladamente um acordo de livre-comércio com a China. O presidente uruguaio alega que o Mercosul não cumpriu com sua proposta de mercado comum. Por outro lado, o encontro de Lula e de Mujica traz o tema da integração do Mercosul como questão central para a política da região

A trajetória do Mercosul é marcada por uma série de mudanças de viés político. O bloco foi criado no início dos anos 1990, com uma agenda neoliberal, que tinha como objetivo estabelecer a liberação das tarifas entre os países-membros. A partir da década seguinte, a política de integração muda com o estabelecimento de outros compromissos políticos e sociais. Posteriormente, com a ascensão de governos de direita e de extrema-direita na região, o bloco se enfraquece. Brasil e Argentina emergem como pilares fundamentais do Mercosul, diante das hesitações uruguais e das incertezas colocadas na eleição presidencial paraguaia, em 30 de abril.


A reconstrução da Unasul


A União das Nações Sul-Americanas é uma organização intergovernamental, fundada em 2008 sob forte liderança do Brasil. A Unasul tinha a integração econômica secundarizada diante da função de se constituir como um fórum de governança regional, priorizando o diálogo político, políticas sociais, educação, energia, infraestrutura, etc.

Apesar das diferenças políticas, vários programas de cooperação foram realizados, entre os quais se destaca a IIRSA, Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana. O Conselho de Defesa Sul-Americano também foi bem-sucedido. O papel em que a Unasul mais se destacou foi na gestão de diversas crises no continente, o que a tornou a interlocutora válida para a região, deslocando a OEA desse papel.

A Unasul foi enfraquecida pela chegada de diversos governos de direita ao continente. O fim do boom das commodities e a mudança do ciclo político na América Latina reduziram o alcance da UNASUL. Nesse contexto, entende-se a decisão de Bolsonaro de deixar o bloco em março de 2019, no mesmo dia em que o governo boliviano anunciou que lhe dava a presidência interina da entidade.

O Brasil faz fronteira com dez países do continente. Segundo o chanceler Mauro Vieira, “Não podemos parar de falar porque este ou aquele governo tem esta ou aquela orientação ideológica”.


A volta à CELAC 


A CELAC surgiu em 2011 como um mecanismo de articulação para toda a América Latina e o Caribe. O Brasil integra o organismo desde a sua fundação. Em janeiro de 2020 Jair Bolsonaro decide retirar o Brasil da entidade sob a alegação de que “dava destaque a regimes não democráticos”. 

Lula tem a clara intenção de fortalecer organismos multilaterais regionais, tentando superar as diferenças ideológicas que levaram ao isolamento diplomático do país durante a presidência anterior.


Acordo Mercosul-União Europeia 


No dia 30 janeiro, o presidente Lula se reuniu com o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, em Brasília. Após o encontro, o presidente apontou modificações no acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE).  

Da forma como está redigido, o acordo é lesivo aos interesses dos países do Mercosul. A queda de barreiras alfandegárias pode relegar os membros a uma condição desvantajosa em relação à UE, tornando-os permanentes exportadores de commodities e abrindo seus mercados à importação de produtos industrializados e semi-industrializados. Essa situação pode incluir até mesmo compras governamentais. De outra parte, países europeus que contam com forte produção agrícola – caso, entre outros, de França, Irlanda e Polônia – expressam contrariedades com a competição vinda do sul.

O acordo abrange cerca de 25% da economia mundial e prevê a redução para zero as tarifas de importação de mais 90% de produtos de cada lado. E pela estimativa do Itamaraty os ganhos chegarão a quase US $100 bilhões para as exportações brasileiras até 2035.

Apesar de já estar finalizado, ainda precisa ser ratificado por cada país dos blocos econômicos integrantes, o que pode levar anos, pelas resistências existentes. Um dos entraves foi a política ambiental brasileira no governo de Jair Bolsonaro. 

No final de março, novas exigências no âmbito de direitos humanos e meio ambiente por parte da União Europeia foram vistas como descabidas pelos países-membros do Mercosul, o que pode atrasar mais um acordo já complicado.


Meio ambiente: a pauta convergente 


Lula busca retomar a liderança do Brasil em temas de governança ambiental. Na América Latina, isso significou a articulação de uma cúpula sobre a Amazônia com os membros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), organismo esvaziado nos últimos anos.

A proposta não é nova. Ainda no período eleitoral, o atual assessor especial do presidente, Celso Amorim, havia comentado a possibilidade de realização da reunião entre os nove chefes de Estados que compõem a OTCA para 2023.A cúpula está prevista para os dias 8 e 9 de agosto, em Belém. Além do Brasil, deve contar com representantes da Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Guiana, Suriname e Venezuela. O presidente da França, Emmanuel Macron, deve estar presente para representar a Guiana Francesa. John Kerry, enviado especial do clima dos Estados Unidos, também deve participar. 

Em seu discurso de posse, o chanceler Mauro Vieira classificou o fortalecimento da OTCA como fundamental para reativar a cooperação dos países amazônicos em temas diversos e coordenar suas posições em foros mundiais. A posição alinhada deve ser destacada no discurso do presidente brasileiro na abertura da Assembleia-Geral das Nações Unidas, em setembro, na qual as mudanças climáticas devem ser uma das principais pautas levantadas. 

Na última segunda-feira (10), o Ministério das Relações Exteriores (MRE) iniciou uma série de diálogos internos no âmbito do governo federal como parte da preparação para a organização da cúpula; o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) foi a primeira das pastas a ser consultada pelo Itamaraty para debater a inserção de agendas para o evento.

No contexto regional, a política ambiental se apresenta como um novo ponto de convergência para a integração. Para Giorgio Romano, coordenador do GT de Inserção Internacional do OPEB, a tendência da pauta ambiental de se constituir como o carro-chefe da nova tentativa de integração regional, incluindo questões socioeconômicas e tecnológicas. 


O chavismo sob nova direção 


Bolsonaro rompeu relações diplomáticas com a Venezuela em 2019, criando uma crise artificial, a partir de pressões do governo Trump. Uma das primeiras tarefas do novo governo foi reatar essas relações. 

Vale mencionar aqui uma trapalhada governamental, logo de saída. O chanceler Mauro Vieira tem uma carreira de quase meio século no Itamaraty, mas em várias ocasiões demonstra limitada capacidade política e inabilidade surpreendente para o desempenho do cargo. Ainda em janeiro, em entrevista ao Clarín, jornal conservador argentino, afirmou que o presidente venezuelano Nicolás Maduro seria um “ditador”. O fato criou sérios embaraços nos canais diplomáticos entre os dois países. A entrevista levou o ex-chanceler e atual assessor presidencial, Celso Amorim, a assumir as tratativas de reaproximação diplomática. No início de março, Amorim viajou a Caracas e se reuniu com Maduro e com membros da oposição. 

No início de fevereiro, a embaixada do Brasil em Caracas foi reaberta após quase três anos de inoperância. 


A redução do espaço democrático na Nicarágua


Outro ponto quente da América Latina neste início de 2023 é a Nicarágua, ambiente de arbitrariedades postas em prática por Daniel Ortega. Importante líder sandinista na Revolução contra a ditadura da família Somoza, Ortega passou de libertador e defensor da democracia para um autoritário, que cooptou o legislativo e o judiciário e, dessa forma, vem reduzindo o espaço democrático no país e infringindo os Direitos Humanos em uma série de aspectos. 


Pode-se dizer que o regime de Ortega é um dos tendões de Aquiles da política externa brasileira. A vitória sandinista, em 1979, foi um movimento anti-imperialista, com o intuito de estabelecer a democracia em um país solapado por uma ditadura apoiada pelos EUA. 

Entretanto, pode-se dizer que a figura de Ortega se desvirtuou ao longo dos anos: eleito presidente da Nicarágua pela primeira vez em 1985, Ortega seria escolhido pelo povo para um segundo mandato quase 20 anos depois, em 2007. De lá para cá, nota-se sua tentativa de se perpetuar no poder, acumulando quatro mandatos consecutivos, que levantam dúvidas acerca da transparência do processo eleitoral. 

A imagem que o presidente Lula e o PT possuem sobre Ortega, entretanto, não acompanharam essa mudança de rota do presidente nicaraguense, uma vez que há grande resistência por parte dos petistas em condenar suas práticas atuais.

 

Nos primeiros meses do governo Lula III, duas situações acerca da Nicarágua no âmbito do Conselho de Direitos Humanos da ONU chamaram atenção e revelaram certa ambiguidade da política externa brasileira sobre o tema. A priori, o Brasil ficou de fora do grupo de 55 países – entre eles o Chile de Gabriel Boric e a Colômbia de Gustavo Petro – que  fizeram uma declaração conjunta na qual denunciaram possíveis crimes cometidos por Daniel Ortega; neste episódio, os representantes brasileiros negociam a redação de um texto final que preservasse espaço para o diálogo, posição que saiu derrotada e fez com que o Brasil considerasse a versão vencedora como inadequada. 

Na semana seguinte, o representante brasileiro em Genebra, Tovar Nunes, expressou a preocupação do Brasil com as violações de Direitos Humanos praticadas na Nicarágua. Além disso, o Brasil abriu as portas para opositores que tiveram sua cidadania retirada por Ortega, em um movimento que abarcou outros países da região – coincidência ou não, após estes episódios, a embaixadora da Nicarágua em Brasília foi destituída por Ortega.  


Considerações finais


Como citado no presente artigo, os 100 primeiros dias do governo Lula foram marcados por alguns desafios e relevantes acontecimentos para a participação do Brasil na política externa latino-americana. Para o início do governo, é possível observar promissoras ações referente às políticas específicas direcionadas à América Latina, até então abandonadas pela antiga gestão.


A política do governo Lula aparenta ter ações favoráveis que podem avançar com acordos do Mercosul e impulsionar a participação e liderança do Brasil na organização. Os temas sobre democracia, pluralidade e presença política, econômica e social se destacam no cenário internacional. É inegável a importância do fortalecimento das relações políticas e econômicas com os países da América Latina e a fuga do isolamento anteriormente instaurado. Uma política externa que retorne com uma integração no plano internacional, abraçando os parâmetros sociais, políticos e econômicos, pode fornecer consideráveis retornos ao decorrer da volta do Brasil ao sistema internacional e a busca de um protagonismo na região latino-americana e nas políticas do Sul Global.  


Deste modo, espera-se para o terceiro mandato presidencial de Lula, novas perspectivas do papel do Brasil na política externa, recuperando a liderança do país na região e se reaproximando cada vez mais da América Latina.

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