Como a Guerra na Ucrânia pode impactar territórios indígenas e biodiversos

18 de abril de 2023

 

Por Ana Júlia Martins Dias Felizardo e

Bruna Muriel (Imagem: Pixabay)

 

 

A retomada das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a Venezuela, no contexto da Guerra na Ucrânia, anuncia o retorno do petróleo venezuelano ao mercado energético mundial. O episódio surge como uma oportunidade para que o país sul-americano saia da crise (política, econômica e social) em que se encontra, ao mesmo tempo que acende um alerta: o risco de uma nova onda de destruição de territórios indígenas e biodiversos. 

 

O conflito entre a Rússia e a Ucrânia e a aproximação entre os Estados Unidos e a Venezuela

A reaproximação entre os Estados Unidos da América e a República Bolivariana da Venezuela, no último ano, ganhou destaque nos debates acadêmicos e midiáticos como exemplo das mudanças geopolíticas resultantes da guerra na Ucrânia. Entre os antecedentes mais recentes do conflito destacam-se: a alegação russa da existência de zonas separatistas pró-Rússia em território ucraniano; a invasão e anexação da Criméia à Rússia em 2014 e os esforços da Ucrânia para se juntar à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), cuja expansão surge como uma ameaça às fronteiras do território nacional governado por Vladimir Putin. Este último caso foi o estopim para que, em fevereiro de 2022, a Rússia avançasse sobre o país liderado por Volodymyr Zelensky.

Um conjunto de sanções econômicas foram aplicadas por Joe Biden e aliados da Europa Ocidental ao governo invasor, com o intuito de esmorecer o conflito. Entre elas, está o boicote à importação de recursos energéticos fósseis da Rússia. A necessidade de encontrar novos mercados para suprir a demanda interna por petróleo bruto, deu fôlego para que a Casa Branca reestabelecesse as relações diplomáticas com a Venezuela. Embora suspensas apenas em 2019, estas relações estavam estremecidas desde 1999, quando Hugo Chávez ascendeu ao poder conclamando o socialismo do século XXI e dando o pontapé inicial ao ciclo progressista na região. 

O problema (ou a solução) para os EUA, é que o inimigo político-ideológico sul-americano possui a maior reserva do ouro negro do mundo. Como resultado das visitas diplomáticas e rodadas de negociação iniciadas em março de 2022, portanto, os Estados Unidos se comprometeram a afrouxar as sanções econômicas (endurecidas a partir de 2017)¹ e, em novembro passado, o governo de Maduro concedeu uma licença para que a Chevron (gigante da área de energia e a última empresa estadunidense operando em território venezuelano) reativasse as suas atividades no país, em aliança com a PDVSA (petrolífera estatal venezuelana). O contrato permite atividades de extração por seis meses (com possibilidade de renovação), período em que o lucro estará unicamente destinado à quitação das dívidas que a PDVSA possui com a Chevron. Em janeiro de 2013 a empresa estadunidense começou a enviar os primeiros barris de petróleo coletados para refinarias nos EUA, sendo que, em fevereiro de 2023, havia sido contabilizada a exportação de cerca de 3 milhões de barris²

Nos últimos anos, os bloqueios comerciais impulsionados pelos EUA com o objetivo de desestabilizar o governo de Maduro, considerado ditatorial e antidemocrático pelos EUA, dificultaram as atividades produtivas da PDVSA e impediram uma participação mais enfática da Venezuela no cenário energético internacional. Acontece que a economia venezuelana depende da exportação de petróleo, inclusive para a importação de bens básicos. Contraditoriamente, portanto, as sanções econômicas aplicadas com o suposto objetivo de reestabelecer a democracia e os direitos humanos, dificultaram o acesso da população aos produtos e serviços de saúde, alimentação e saneamento e, consequentemente, contribuíram para o aprofundamento da crise econômica, social e humanitária na Venezuela. Entre 2017 e 2018 houve o aumento de 31% da mortalidade geral no país³ e o deslocamento de mais de 5,4 milhões de pessoas4. Iniciado em 2014 e intensificado em 2017, este deslocamento concedeu ao país o pesaroso terceiro lugar no ranking mundial de migrantes e refugiados5.

Neoextrativismo e crescimento

O fim das sanções é fundamental para o término da crise política, econômica e social que assola o vizinho caribenho-andino-amazônico. Por sua vez, a exploração petrolífera como forma de atender a demanda estadunidense (no contexto do boicote à Rússia) pode, de fato, significar a melhora da qualidade de vida da população. Foi este, ao menos, o resultado da experiência neoextrativista6 implementada por vários governos durante o ciclo progressista na América Latina.  

Por extrativismo leia-se tanto o conjunto de atividades ligadas tanto à exploração (em grande escala) e à exportação de matéria prima (quase nunca processada), quanto aos empreendimentos necessários para que as mesmas aconteçam (a construção de hidrelétricas e portos, a abertura de estradas e ferrovias, a urbanização, etc.). No neoextrativismo progressista o Estado possui maior capacidade de controle e regulação da produção econômica, e utiliza os rendimentos para a formulação e implantação de políticas públicas diversas. Na Venezuela (como no Brasil, na Bolívia, no Equador, etc.), a melhora de todos os índices nacionais (IDH, PIB, PNB, Mortalidade, Alfabetização, etc.) durante a primeira década e meia do século XXI esteve ligada, de alguma maneira, à intensificação desta lógica produtiva diante do aumento do preço das commodities no mercado internacional. Muito diferente, portanto, do extrativismo neoliberal, que retém os benefícios das atividades nas mãos das elites e empresas nacionais e estrangeiras.

A manutenção do extrativismo como eixo dos programas de desenvolvimento nacionais e regionais, entretanto, perpetua o papel regional de periferia subordinada exportadora de bens primários para o centro, que segue definindo as regras do jogo mundialmente desigual. Além disso a atividade – fosse ela progressista ou neoliberal – trouxe, historicamente, efeitos nefastos para a natureza e as populações indígenas e tradicionais da região

Possíveis Impactos socioambientais  

A possibilidade de que um conflito que ocorre no Leste Europeu traga desdobramentos nos territórios indígenas e biodiversos da América do Sul parece ilustrar um dos efeitos perversos7 da Globalização neoliberal, o Globalismo Localizado8: quando experiências internacionais e transnacionais afetam negativamente as condições sociais, ambientais e culturais locais (especialmente nos países periféricos). 

Hoje, a mineração é um dos maiores problemas para a biodiversidade e para os povos indígenas da Venezuela. Seja ela legal, como aquela realizada no Arco Minero (uma zona de exploração criada em 2016 ao sul do rio Orinoco), ou ilegal, praticada no interior da floresta amazônica, ao sul da Venezuela (onde a atividade está proibida desde 1989). A possibilidade da nova onda de exploração petrolífera se somar aos estragos da mineração, é um risco real. Para compreendê-lo, basta deslocar o olhar do tempo presente para um passado recente, e das escalas mais amplas do internacional e do nacional para a escala do local9, através de uma breve visita à produção petrolífera no delta do rio Orinoco ao longo da década de 1990.  

Naquele período, o território do povo Warao, foi o mais afetado. Embora compartilhem o mesmo tronco linguístico, os Warao possuem diversas formas de organização social e correspondem, atualmente, a cerca de 49 mil indivíduos (o segundo maior grupo indígena da Venezuela)10. A tradução do nome para “Povo da canoa” ou “Povo da Água”, já revela a importância da relação deste povo com o rio, a navegação e as atividades de pesca. Estudos demonstram como os resíduos da perfuração de petróleo afetaram o PH dos rios, extinguindo espécies da fauna e da flora aquática e terrestre e, consequentemente, inviabilizando as atividades produtivas tradicionais. A exploração contaminou o ar, o solo e os corpos. Além disso, os empreendimentos trouxeram poluição sonora, avançaram sobre territórios ancestrais sagrados e contribuíram para a inserção de doenças exógenas, levando a processos de expropriação e expulsão das comunidades locais11

Obviamente os problemas da produção petrolífera não se restringem à América do Sul. São subjacentes à dependência global dos combustíveis fósseis não renováveis, cuja extração, industrialização e consumo devastam a natureza e os povos que, com ela, se relacionam de maneira integrada e vital. Não à toa, as organizações indígenas exigem a mudança do modelo de desenvolvimento hegemônico e da matriz energética mundial, com base em propostas contra hegemônicas como o Buen Vivir e os Direitos da Natureza. O deslocamento teórico da geopolítica para a cosmopolítica (que abarca a diversidade interpretações ontológicas sobre a natureza e o cosmos), assim como um breve exercício de tradução intercultural (SANTOS, 2007)12 com aqueles que são os sujeitos mais afetados pelas atividades extrativistas contribui para uma melhor compreensão das propostas. 

Em sua análise sobre as origens da crise ambiental global a partir da cosmologia Yanomami, Davi Kopenawa (KOPENAWA e ALBERT, 2015, p.484)13 considera que a interpretação utilitarista da natureza como commodities e o caráter predatório da sociabilidade hegemônica poderiam ser explicados, em parte, pelo desconhecimento do “povo da mercadoria” sobre a realidade do mundo natural, repleto de entes e fenômenos não captados pela racionalidade científica. No mesmo sentido, o sociólogo aimará Simón Yampara (2008) compartilha como muitas comunidades indígenas do altiplano andino concebem a existência, no subsolo do planeta, de uma energia/força composta por animidade/subjetividade14.  O petróleo é um elemento fundamental desta vida pulsante, denominada Manqhapacha, daí a sua extração ad infinitum ser uma prática inconcebível. 

O Buen Vivir é um projeto civilizatório intercultural, igualitário e ecológico. Os Direitos da Natureza inovam os direitos ambientais pelo seu caráter biocêntrico (e não antropocêntrico), que dificulta a objetificação/mercantilização da natureza15. São ferramentas político-jurídicas importantes para o estabelecimento de novas formas de sociabilidades e produtividade orientadas: (1) pela crítica aos princípios do lucro, do individualismo e do consumo desenfreado, (2) pelo projeto de transição energética, dos recursos fósseis para as energias limpas e renováveis, (3) pela migração produtiva rumo a um extrativismo absolutamente necessário e uma indústria ecologicamente viável (ambos altamente tecnológicos, de pequena escala, rigidamente fiscalizados e de baixo impacto socioambiental), e (4) pela exportação de produtos (orgânicos; agroflorestais, biodiversos) com alto valor agregado16

É fundamental que estas discussões sejam iniciadas e/ou retomadas o quanto antes, na Venezuela (e em toda a América do Sul). Diante dos novos cursos geopolíticos deste terrível conflito que, de maneira direta, já levou ao óbito cerca de 300 mil vidas (e que, de maneira indireta, poderá afetar outras tantas do lado de cá do globo)17.

  1. CNN, 2022. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/estados-unidos-vao-afrouxar-algumas-sancoes-energeticas-contra-a-venezuela/>. Acesso em: 12 abr. 2023.

  2.  KENNEDY, Charles. OILPRICE, 2023. Disponível em: <https://oilprice.com/Latest-Energy-News/World-News/Chevrons-Plan-To-Nearly-Double-Its-Oil-Exports-From-Venezuela.html>. Acesso em: 12 abr. 2023.

  3. SACHS, Jeffrey; WEISBROT Mark. CEPR, 2019. Disponível em:<https://cepr.net/report/sancoes-economicas-como-punicao-coletiva-o-caso-da-venezuela/>. Acesso em: 12 abr. 2023. 

  4. ACNUR, 2022. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/venezuela/>. Acesso em: 12 abr.2023.

  5. ACNUR. Ukraine refugee situation. UNHCR ACNUR, 2022. Disponível em: < https://data2.unhcr.org/en/situations/ukraine> Acesso em: 10 mai. 2022; ACNUR. Dados sobre refúgio. UNHCR ACNUR Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/ >. Acesso em: 10 mai. 2022.

  6. GUDYNAS. DIEZ TESIS URGENTES SOBRE EL NUEVO EXTRACTIVISMO – Contextos y demandas bajo el progresismo sudamericano actual. In: “Extractivismo, política y sociedad”. Quito, Ecuador: CAAP (Centro Andino de Acción Popular) e CLAES (Centro Latino Americano de Ecología Social), 2009.

  7. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

  8. SANTOS, 2001, p. 19)

  9. SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos da globalização. In: Santos, B. S. (org.), Globalização: fatalidade ou utopia?. Afrontamento, Porto, p. 31-106, 2001.

  10. DURAZZO, Leandro Marques. Os Warao: do Delta do Orinoco ao Rio Grande do Norte. Povos Indígenas do Rio Grande do Norte. 2020. Disponível em: < http://www.cchla.ufrn.br/povosindigenasdorn/warao.html>. Acesso em: 14 de abr. 2023; CARNEIRO, Cynthia S.; SILVEIRA, Marina C. P. A declaração das nações unidas sobre os direitos dos povos indígenas e os impactos da nova lei de migração brasileira sobre o direito de livre circulação do povo Warao. Périplos, Revista de Insvestigacíon sobre Migraciones, v.02, n.02, 2018. p. 69-94. 

  11. (CARNEIRO; SILVEIRO, 2018 apud MOREIRA; CAMARGO, 2017, p. 50-51); ACNUR. Os Warao no Brasil – Contribuições da antropologia para a proteção de indígenas refugiados e migrantes. UNHCR ACNUR Brasil, 2021. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/04/WEB-Os-Warao-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2022. 

  12. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n.78, pp. 03-46, abr. 2007.

  13. KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 729 p.484.

  14. YAMPARA, Simón. Empresa Ayllu óAylluQamaña? In: MEDINA, Javier (org.). Suma Qamaña: la comprensión Indígena de la vida buena. La Paz: GPI, 2008. pp.137 – 147.

  15. HUERTAS, BRUNA MURIEL FUSCALDO . A expansão das monoculturas: do global ao local, da China ao TIPNIS. MONÇÕES: REVISTA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UFGD , v. 9, p. 247-280,2020.

  16. Estas estratégias estão presentes, também, em outras experiências econômicas e correntes ecologistas críticas (como a economia solidária,o ecosocialismo, o decrescimento, etc.)

  17. CARTACAPITAL. O balanço terrível de um ano de guerra na Ucrânia. 2023. Disponível em: < https://www.cartacapital.com.br/mundo/o-balanco-terrivel-de-um-ano-de-guerra-na-ucrania/#:~:text=Quase%20180.000%20soldados%20russos%20mortos,guerra%20para%20os%20dois%20ex%C3%A9rcitos.>. Acesso em 12 abr. 2023.

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