O Brasil, o Gasbol e a integração energética latinoamericana

02 de maio de 2023

 

Por Dante Apolinario, Gabriel Horacio de Jesus Soprijo, Leonardo Poletto Di Giovanni, Lívia Romano e Lucas Santiago Portari[1] (Imagem: Divulgação/TBG)

 

O gás natural vem ganhando destaque nos últimos anos devido a seu potencial menos poluidor, sendo apontado como uma fonte de transição pela menor emissão de CO2 e bom custo-benefício.

 

Introdução

Nos últimos anos, o gás natural vem ganhando importância dentro da matriz energética do Brasil. Seu uso não se restringe às termelétricas a gás. Ele é também uma importante matéria prima no ramo da petroquímica e setores químicos, é utilizado na produção de metanol, de fertilizantes, ureia, amônia, como também no ramo da siderurgia para a produção do aço. Uma de suas principais vantagens está atrelada ao meio ambiente, já que é considerado menos poluidor que as outras duas fontes fósseis (petróleo e carvão). Por isso é apontado como uma fonte de transição, principalmente por emitir pequena emissão de CO2 e possuir custos competitivos.

Historicamente o Brasil não tinha produção de gás natural, mas a criação do Gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol) – de julho de 1999 –, significou um passo importante para a sua oferta e participação na matriz energética brasileira. Para a Bolívia, se tratava de uma saída muito vantajosa para sua economia, muito fragilizada.

Com a crescente disponibilidade de gás associada ao Pré-sal, a produção nacional aumentou muito, embora a sua utilização dependa da infraestrutura de gasodutos que liga os campos do Pré-sal à costa. O consumo cresceu mais ainda nos últimos anos, em parte devido à crise hídrica de 2020/2021. Com os reservatórios das hidrelétricas baixos, entram em operação as termelétricas a gás. Assim, o país continua dependendo das importações, em particular da Bolívia. Com o aumento do preço do Gás Natural Liquefeito (GNL), devido à Guerra na Ucrânia, e aumento da demanda na Ásia, aumenta também o interesse do Brasil em garantir a ampliação da oferta na Bolívia e explorar o potencial de oferta da Argentina. Com isso, a integração energética sul-americana entra de novo em pauta.

A Demanda por gás natural no cenário brasileiro

Desde a construção do Gasbol, houve um crescimento significativo da demanda por gás natural no Brasil. A partir de 2000, projetos como o Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT) viabilizaram a construção de gasodutos conforme o aumento da demanda nacional, permitindo não só o escoamento dos gasodutos estrangeiros pelo território brasileiro, mas também terminais de regaseificação do GNL ao longo da costa.

Essa crescente demanda brasileira pode ser dividida de duas formas: não-termelétrica e termelétrica. Enquanto a termelétrica se refere à utilização para produção de energia elétrica e à cogeração, a não-termelétrica se refere aos demais setores como industrial, comercial, automotivo e residencial. Sendo um importante insumo como matéria-prima para desenvolvimento de diversos produtos, a utilização no setor industrial é a predominante. Em 2020, representou 50% do consumo total (36,1 milhões de m³ por dia). Em seguida, vem a utilização para geração de energia elétrica, que apenas se sobressaiu ao industrial no período entre 2013 e 2015, com a acentuação da crise hídrica e baixa geração de usinas hidrelétricas, resultando em maior demanda por outras fontes energéticas, como o gás. Em 2020/2021 o Brasil passou de novo por uma grave crise hídrica, mesmo assim o uso industrial continuou à frente.

No setor industrial, o gás tem importante função na produção de fertilizantes nitrogenados, cuja importação da matéria-prima representa 80% dos custos totais. Para isso, o gás é utilizado na produção de amônia e ureia, elementos importantes na composição do fertilizante. Entretanto, a demanda brasileira por fertilizantes não é suprida por produção nacional, tornando a indústria dependente de importação – que ocorre, especialmente, envolvendo a Rússia e Belarus – e também, suscetível à flutuações econômicas decorrentes de instabilidades geopolíticas. O Brasil importa 85% dos fertilizantes que utiliza, anteriormente produzidos por FAFENs (Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados) localizadas em Sergipe, na Bahia e no Paraná. Se a FAFEN-PR encontra-se parada, após tentativas malsucedidas de venda durante 2022, a de Sergipe e da Bahia foram arrendadas ao setor privado. A UFN III (Unidade de Fertilizantes Nitrogenados III) em Três Lagoas (MS) teve sua construção interrompida em 2015 após 80% já terem sido concluídos, e atualmente está em negociação com a Acron, empresa russa. As vendas são decorrentes de um processo de desindustrialização, com leilões públicos de diversos setores da petrolífera.

Por sorte, a descoberta do Pré-sal no Brasil tem trazido um novo horizonte para a indústria, já que as reservas de gás natural estão intimamente associadas às de petróleo. Essa descoberta pode viabilizar a produção de fertilizantes e possibilitar a reindustrialização desse setor sem a dependência externa atual. De acordo com o  Boletim Mensal de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural, do Ministério de Minas e Energia – MME, entre 2016 e 2020, a produção de gás associada ao petróleo aumentou significativamente, passando de 75% para 84% do total de gás produzido no Brasil.

Ainda na questão da sustentabilidade, o gás natural é amplamente reconhecido como um importante pilar para a transição energética global, já que é considerado uma fonte de energia mais limpa em comparação com outras fontes de combustíveis fósseis. O setor automotivo brasileiro, por exemplo, apresenta potencial aumento na utilização do gás natural como combustível em veículos pesados, substituindo o uso de diesel e gasolina pelo uso do GNV. Além disso, a produção de hidrogênio também está ganhando destaque no setor energético brasileiro, especialmente com as metas estabelecidas pela COP 21 na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, podendo impulsionar ainda mais o setor de gás natural no Brasil.

Entre janeiro e final de abril deste ano, a Petobras já baixou os preços do gás, acumulam queda de 19,2%, o que deve também estimular o consumo dessa fonte. 

Oferta de Gás Natural – Esfera doméstica e Esfera Externa

Pela ótica da oferta, a produção de Gás Natural anual cresceu de 28,3 bilhões m³ em 2013 para 59,6 bilhões m³ em 2022, de acordo com os dados disponíveis da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) – o órgão regulador da indústria de petróleo e gás no Brasil. Ou seja, em um período de menos de dez anos, a produção mais do que dobrou. É possível observar que esse aumento de produção foi principalmente motivado pela bacia de Campos, localizada entre os estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, e pela bacia de Santos, localizada, majoritariamente, no estado de São Paulo. No mesmo período analisado, a produção total acumulada, a Bacia de Campos cresceu de 165.222,1 para 238.306,9 milhões de m³ (um aumento de cerca de 44%); a produção de Santos, por sua vez, cresceu de 19.891,7 para 222.754,7 milhões de m³. No caso de Santos, esse expressivo aumento foi em decorrência do aumento da exploração da camada de Pré-Sal pela principal empresa na região, a Petrobrás.

Em relação  à quantidade total de Gás Natural importado para o Brasil, a análise pode ser feita a partir dos dados fornecidos pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), estatal responsável por planejar e coordenar a expansão da matriz energética brasileira, por meio da plataforma interativa ‘’BEN interativo’’. Entre 2013 e 2021, houve o decrescimento de 14.926,2 para 14.833,0 em 10³ tep (Tonelada equivalente de petróleo). O gás proveniente da Bolívia ainda representa a maior parte das importações de gás natural para o Brasil, apesar da queda considerável nos últimos anos. De acordo com os dados do MME, as importações via GASBOL diminuíram de 22,11 milhões de m³ por dia em 2018 para 17,51 milhões de m³ por dia em 2022. No entanto, a importação de gás da Bolívia representa 73% das importações de gás brasileiras e 24,5% da oferta total de gás no país.

Contudo, de 2020 para 2021, houve um aumento de cerca de 70% das importações gerais de Gás Natural. Nesse caso específico, podemos apontar o aumento da demanda em decorrência das secas que ocorreram ao longo de 2020, que, evidentemente, impactaram no fornecimento de energia hidrelétrica. Observa-se que grande parte dessa oferta foi feita mediante o Gás Natural Liquefeito (GNL), de países de fora da América do Sul, como a Nigéria e o Qatar. Para evitar a dependência de GNL, que ainda é mais caro que o GN por ter uma oferta muito voltada para a Europa, pode-se optar por soluções regionais. No Brasil, há uma relação direta entre oferta e demanda. Se há um aumento de oferta, há um aumento de demanda. Assim, se há a preocupação em atender a demanda de gás, é essencial optar pelas a soluções mais baratas possíveis. Nesse sentido, a integração energética com outros países da região, como Bolívia e Argentina, surge como uma das alternativas. Isso pode ocorrer por meio de investimentos em projetos já tradicionais na região, como Gasbol, ou via financiamento de novos gasodutos, como o Gasoduto Uruguaiana-Porto Alegre.

Cabe lembrar que nos últimos seis anos os governos Temer e Bolsonaro implementaram uma política de priorizar os interesses financeiros de curto prazo. Isso atingiu a Petrobrás, que se desfez de vários ativos, inclusive de investimentos no gás. No caso, a política foi a saída integral da petroleira dos negócios de distribuição e transporte de gás natural, o que incluía a sua participação de 51% da Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil (TBG), que opera, justamente, o Gasoduto Brasil-Bolívia (Gasbol). Desde 2019, tentou privatizar a TBG, o que não ocorreu. Agora, no novo governo, a Petrobras deve rever esse tipo de política. Recentemente Jean-Paul Prates, novo presidente da Petrobras, defendeu o fim da venda da TBG e anunciou que a Petrobras avalia a possibilidade de voltar a investir na Bolívia para aumentar a produção. Ao mesmo tempo, há uma intenção declarada por parte da nova direção da Petrobras de trocar o petróleo do Pré-sal, que pela Partilha cabe a União, por gás, sempre no intuito de aumentar a oferta interna a preços competitivos. 

BNDES e integração regional

Em paralelo à dita conjuntura, Lula fez um discurso durante sua recente viagem para Argentina apontando o BNDES como financiador de projetos dos países vizinhos, defendendo o financiamento do gasoduto Néstor Kirchner, que deve ligar o campo de gás não convencional Vaca Muerta, situado no sul, aos centros urbanos no Norte, até a fronteira com o Brasil.

Existem diversos motivos para justificar a iniciativa de investir na rede de gasodutos sul-americana. Em primeiro lugar, como o presidente mesmo disse, a interligação dos gasodutos da Argentina com o Brasil, no Rio Grande do Sul, pode ampliar o fornecimento de gás para o nosso mercado interno. Em especial em uma região com uma demanda relevante e que ainda não está ligada ao restante da rede de gasodutos da região Sudeste.

 Além do aumento da demanda, a diversificação de fornecedores é de extrema importância. Em um cenário em que a Europa aumenta cada vez mais a importação de GNL (aumentando, assim, o preço desse produto), uma crise pontual pode colocar o Brasil em uma situação extremamente vulnerável energeticamente. A atual situação europeia, com o fim das importações do gás russo, não é o primeiro exemplo da importância de possuir mais de um fornecedor. Nesse sentido, o gás argentino cairia bem para a soberania energética, petroquímica e industrial brasileira.

 A ideia de que o BNDES seja o responsável por financiar o projeto, diferente do que alguns tentam fazer crer, não é nenhum absurdo. Ao contrário, é uma ótima oportunidade de voltar a exportar serviços de engenharia brasileiros, gerando emprego e renda no Brasil. Uma das formas de financiamento internacional do BNDES é o empréstimo em reais para a empresa brasileira contratada para realizar o serviço. Portanto, o banco não está realizando o empréstimo para outro país, mas para uma empresa brasileira que vai atuar no exterior. Outra crítica feita sobre os empréstimos do BNDES é de que as taxas de juros do banco são baixas e de que ele poderia ser mais rentável. Sobre essa questão, não se pode esquecer que o BNDES é um banco de desenvolvimento. É natural que as suas taxas de juros não sejam tão altas quanto as dos bancos privados. Os seus benefícios não se limitam aos seus retornos financeiros, que deverão ser garantidos também.

Cooperação, integração e soberania

 Em síntese, as novas tratativas relacionadas ao Gasbol desafiam o status quo dos países envolvidos ao exigir um planejamento que acople as dinâmicas de oferta e demanda do gás natural a um cenário de desenvolvimento econômico estrutural, não passível de ser analisado por uma lógica de curto prazo. A região precisa de um amplo apoio político e diplomático para integração energética em gás natural, não limitando-se com trocas bilaterais entre os países. É necessária uma efetiva harmonização regulatória, com mecanismos de precificação, além de uma certa previsibilidade entre os Estados. É mais que desejável trabalhar para um aumento da coordenação regional, dos investimentos em áreas estratégicas e uma disponibilidade do gás em momentos de necessidade.

Para além da questão estritamente comercial, é preciso ressaltar a importância estratégica e geopolítica do Cone Sul que poderia vir a ser. Não se pode enxergar, hoje, a questão energética desacoplada de explícitas relações de poder. Tampouco que o movimento de cooperação entre economias do Sul global seja caracterizado como ‘anômalo’.  Isto é, diversas regiões do mundo apostam em  redes de gasodutos transnacionais. Não é um absurdo que a América do Sul invista na sua própria rede, muito menos que seja o Brasil o país a impulsionar essa infraestrutura regional, tendo a Petrobras e o BNDES como peças centrais para essa política.

[1] Agradecimentos ao professor Giorgio Romano Schutte

 

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