A guerra civil sudanesa e o futuro sombrio de um gigante africano

14 de junho de 2023

Por Wilson Gregório, Gabriel de Castro Soares, Flávio Thales, Carlos Sanches e Mohammed Nadir (Imagem: Pixabay)

 

Abordamos a situação instável e volátil do Sudão nos últimos anos, com conflitos armados, violência e crises humanitárias. Exploramos o contexto histórico do país, incluindo a divisão entre o Norte e o Sul, a independência, a guerra civil e a Revolução Sudanesa de 2019. Também destacamos a influência dos recursos naturais, como o petróleo, nas disputas territoriais e na instabilidade política. Além disso, discutimos a luta pelo poder entre as forças armadas e os impactos da guerra civil na região e na crise de refugiados.

 

A situação do Sudão nos últimos anos tem sido extremamente instável e volátil, conflitos armados e violência afetando muitas áreas do país, no entanto, para compreendermos o cenário atual, devemos levar em conta o contexto histórico e eventos importantes que moldaram o país ao longo dos anos.

O Sudão está localizado na região do Sahel, na África Oriental, tendo uma história rica e complexa, que remonta a mais de 5.000 anos, a região foi habitada por várias tribos e etnias, incluindo os núbios, os antigos egípcios, os axumitas da Etiópia e os árabes, sendo também influenciada pela religião cristã e islâmica. A chegada do cristianismo na região ocorreu no século VI durante o reinado axumita, com conversão ao cristianismo do rei Ezana, nesse período o reino Axum expandiu seu território para o sul e converteu muitos núbios ao cristianismo. O cristianismo coexistiu com as tradições religiosas locais até a chegada do islã que foi introduzido na região pelos árabes no século VII, e em 1504, os sultanatos islâmicos se estabeleceram no Sudão.

No final do século XIX, o Sudão foi dividido entre o Egito e a Grã-Bretanha, em um acordo conhecido como o “Acordo de Berlim”, a Grã-Bretanha assumiu o controle da região sul, enquanto o Egito governou a região norte, essa divisão acabou unindo e desestruturando grupos sociais opostos, trazendo consigo conflitos violentos entre as diferentes etnias e grupos religiosos na região. Em 1956, o Sudão conquistou sua independência, mas a instabilidade política e a guerra civil persistiram por décadas.

 

Os recursos naturais desempenharam um papel significativo na separação, pois muitos dos recursos petrolíferos estão localizados na fronteira entre os dois países, sendo a maioria dessas reservas petrolíferas localizadas no que se tornou o Sudão do Sul, enquanto as refinarias e a infraestrutura de exportação estão no Norte, que se tornou o Sudão. No entanto, a divisão dos recursos não foi clara ou fácil, e houve disputas sobre o pagamento de royalties e taxas de trânsito pelos dutos que atravessam o Sudão do Norte. Além do petróleo, outros recursos naturais, como ouro, cromo e urânio, também estão localizados nas áreas fronteiriças, levando a disputas adicionais, como conflitos étnicos e religiosos, deslocamento de pessoas e crises humanitárias.

 

Mas não foi apenas as disputas por uma distribuição justa das riquezas do país que condenou o Sudão a uma longa crise de união nacional visto que os dois líderes que sucederam no poder foram incapazes apesar de décadas na governança em edificar um Sudão coeso e democrático. Este diagnostico, aplica-se tanto a Jaafar al Nimeiri como a Omar al-Bachir. 

 

No caso de Jafar Nimeiry que chegou ao poder em 1969, através de um golpe de Estado e que encerrou um governo civil de cinco anos, que já era marcado por grandes escândalos de corrupção e pela má administração econômica, se viu perante a existência de conflitos étnicos e religiosos, principalmente entre o sul cristão e animista e o norte islâmico. 

De formação militar, Nimeiri quis repetir o modelo egípcio naserista, por meio da implementação de suas próprias políticas e reformas, que só seriam viabilizadas, segundo ele, através de governo forte e centralizado. Se inicialmente foram adotadas políticas tidas na época como “socialistas” (implementação de programas de redistribuição de terras e a nacionalização de indústrias e empresas), gradualmente colocou-se à direita na intenção de tornar-se aliado dos EUA.

Paradoxalmente a essa aproximação ao bloco americano, Jaafar al-Nimeiri construiu sua legitimidade interna sobre um identitarismo árabe-islâmico, muito influenciado pela Irmandade Muçulmana fato esse que o levou a impor a sharia (lei islâmica) em 1983. O ato foi um dos catalisadores para uma guerra-civil de 22 anos entre norte e sul do país. O governo de Cartum, na intenção de manter o controle sobre a região, optou pelo combate direto contra os exércitos opositores do sul. Frustrado, empreendeu uma série de embargos sobre a região, resultando em fome e a perda de apoio político para o regime,

O governo ditatorial foi deposto em 1985 por um levante popular, conhecido como a Revolução de Abril, liderado por uma coalizão de partidos e sindicatos. No entanto, em 1989 o tenente Omar al Bashir liderou um novo golpe. Durante os 30 anos que ocupou o poder, governou com mãos de ferro e empreendeu uma série de conflitos armados, como a guerra civil de Darfur. Em seu mandato, uma nova política de expansionismo islâmico ganhou força, a manutenção dos embargos, a decisão pela privação da entrada de ajuda humanitária no sul é um de seus maiores frutos.

Foi só em 2005 que a segunda guerra civil sudanesa teve seu fim. Com a assinatura do Tratado de Naivasha, um amplo acordo de paz convergiu pelo estabelecimento de uma administração autônoma para o Sul (de 6 anos) até a realização de um referendo em 2011 para a decisão da região do status futuro da região, de independência ou continuidade como integrante do Sudão. Com o parecer da consulta pública, a região optou pelo desligamento e tornou-se a República do Sudão do Sul, o país mais jovem do mundo.

A separação com o sul do país é sem dúvida um resultado da incapacidade dos líderes sudaneses de encontrar um meio caminho para um Estado em que poderiam coabitar tanto muçulmanos como cristãos. Este fracasso em manter a integridade territorial do Sudão uno, foi apenas um dos fatores que iam levar uma grande revolta popular no ano de 2019 acabando com a destituição do Omar al-Bashir em 11 de Abril daquele ano após uma série de manifestações que se prolongavam desde dezembro de 2018 em razão da alta dos preços do pão e dos combustíveis. Nesse ínterim, o processo de deposição foi marcado por protestos da população civil e atos de violência por parte das forças de segurança. Na esteira dos movimentos que compõem a Primavera Árabe, a Revolução Sudanesa se deu tardiamente e resultou na ascensão de chefes militares que compunham as forças de Bashir espalhadas pelo país lutando contra movimentos secessionistas, além de grupos e tribos rivais.

Após a deposição, os militares formaram o Conselho Militar de Transição a fim de estabelecer a ordem e organizar o país para eventuais eleições futuras, contudo a população ainda via com desconfiança esse processo e continuava a protestar por um governo civil. A situação seguiu com desenlaces internos no poder e demandas nas ruas, até que no dia 3 de

Junho as forças armadas iniciam um um processo de repressão na capital, o que ficou conhecido como Massacre de Cartum, com registros de mortes por armas de fogo e estupros coletivos.

Em 3 de Agosto, a oposição representada pelo coletivo Forças pela Liberdade e Mudança e a junta militar acordaram um projeto de Constituição para o país após novo massacre em El-Obeid. O artigo nono da nova lei previa a criação de um Conselho Soberano que de fato foi estabelecido para o período de transição. Desse momento em diante o país experimentou iniciativas consideráveis dentro daquilo que se esperava de um futuro governo civil, tal como a proibição da mutilação genital feminina e a disposição em apresentar Bashir ao Tribunal Penal Internacional para que respondesse por crimes de guerra em Darfur, contudo em 2021 o órgão foi novamente dissolvido pelos militares através de um novo golpe de Estado liderado pelos generais Abdel Fattah al-Burhan e Mohamed Hamdan Dagalo que partilharam o poder entre si. O primeiro-ministro Abdalla Hamdok foi preso, mas retornou ao cargo em novembro do mesmo ano. Acabou renunciando em Janeiro de 2022.

O general Burhan alegou que o autogolpe foi necessário para continuar a Revolução iniciada em 2019. A União Africana reagiu com a suspensão da filiação do Sudão.

As tais esperanças de uma transição pacífica para o governo civil nunca foram concretizadas por conta da obsessão das forças armadas que querem se perpetuar no poder tal como acontece no vizinho Egito.

Todavia, se as forças armadas egípcias sempre constituíram um corpo coeso e cuja lealdade é inquebrável, o Sudão não tem essa característica e, por conseguinte, a guerra civil atual é reflexo dos paradoxos e luta de interesses no seio das forças armadas. Pior ainda, o que está decorrendo é nada mais do que um confronto pelo domínio do país entre os dois comandantes militares, Abdel Fattah al-Burhan, e o comandante das Forças de Apoio Rápido (RSF, na siga em inglês) paramilitares, Mohamed Hamdan Dagalo.

Forças leais aos dois generais rivais estão competindo pelo controle do país numa luta existencial e por isso que toda a tentativa de cessar-fogo tem fracassado. Até agora o conflito fez, ainda, com que cerca de 200.000 civis fugissem para os países vizinhos e mais de 700.000 se deslocassem dentro do Sudão, desencadeando uma crise humanitária que ameaça desestabilizar a região, o que está a preocupar tanto os países vizinhos, como Sudão do Sul, Egito e Etiópia, mas também a Europa que teme a chegada de milhões de refugiados fugindo da guerra com todas os impactos que isso acarreta.

 

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