28 de junho de 2023
Por Dante Apolinario, Gabriel Horacio de Jesus Soprijo, Leonardo Poletto Di Giovanni,
Mariana Barboza Cerino e Nícolas de Paula¹ (Imagem: Unsplash)
Característica central da globalização, o processo de liberalização do comércio e internacionalização da produção está sendo repensado e até mesmo revertido. EUA, China e UE estão com fortes políticas de reindustrialização e realocação geográfica de setores considerados fundamentais, alterando a estruturação das cadeias produtivas globais. Existe espaço para o Brasil e a América Latina se aproveitarem deste novo contexto?
A Globalização e as cadeias produtivas
O neoliberalismo, a inserção da China nos fluxos globais de comércio, a queda do muro de Berlim ao fim da década de 1980 e as inovações tecnológicas gerais proporcionadas pela terceira revolução industrial, são os principais fatores que possibilitaram o que se entende por Globalização. Nas últimas quatro décadas o mundo viveu dentro deste contexto e o desenvolvimento (ou não-desenvolvimento) dos países esteve muito relacionado à forma como estes foram inseridos no processo de globalização.
Associada com grandes conquistas econômicas, as promessas que se reproduziam mundialmente por propagação das ideias e paradigmas neoliberais, vendiam um futuro de mundo de fronteiras abertas no qual o ganho seria gradativamente mais uniforme e global. A ascensão do liberalismo, com a diminuição da regulação das empresas e abertura das fronteiras, configurava toda uma conjuntura supostamente organizada para a maior eficiência em beneficio de todos. Mais do que nunca a produção de produtos variados, em países com menores custos produtivos, compunham as novas condições vantajosas do mercado internacional. E nesse contexto, então, constituíram-se as tal de cadeias globais de valor que tinha como consequência a interdependência, mas comandados por multinacionais ocidentais. Ou seja, a expansão de multinacionais, mercados e utilização do outsourcing – i.e. transferência de tarefas e/ou setores de uma empresa contratante à uma empresa contratada para realizá-los a menor custo possível.
Por certo período, essa configuração dinâmica ‘da globalização’ teve ótimos resultados, e retornos, para as multinacionais e os interesses financeiros envolvidos. A globalização seria até mesmo capaz de trazer a China de volta para o capitalismo. Dentro dos espaços de poder nos EUA e Europa, as críticas e alertas sobre os riscos que a interdependência irrestrita decorrente da exportação de manufaturas poderia trazer eram praticamente inexistentes.
A crise financeira de 2008, e os seus resultados em todos os outros âmbitos e setores em diversos países, foi o primeiro alerta de risco sobre o andar das coisas com a globalização. Como veremos a seguir, acontecimentos recentes – como a pandemia de COVID-19 e a Guerra na Ucrânia – que interromperam o fluxo de mercadorias, evidenciaram as fragilidades das estruturas produtivas nacionais e fizeram com que cada vez mais os países adotassem outras estratégias de internacionalização.
Para além do fator da fragilidade da interdependência, hoje um novo ator surgiu no tabuleiro da geopolítica das cadeias produtivas: a China. Recentemente, EUA e Europa perceberam que a China conseguiu utilizar a instalação de manufatura estrangeira no seu território para escalar as cadeias globais de valor e gerar capacidade industrial-tecnológica endógena. Com isso começou a ser visto um “rival estratégico” o que fez o Ocidente correr contra o relógio para tentar frear este processo. Se nos anos 1980 e 1990 era impensável apontar a China como um dos competidores globais, hoje é praticamente impossível apontar algum setor de ponta que a China não dispute ou tenha planos concretos de disputar.
À vista disso, nos últimos anos, o que se tem percebido é uma onda de relativa desintegração global – ao menos aos moldes anteriores. A cadeia de produção global tem demonstrado sinais de reordenamento, com as potências buscando reduzir sensibilidades e reforçar as suas presenças nas diferentes regiões. Novas políticas industriais de nearshoring e friendshoring, são indicativos definitivos dessa realidade, e apontam para certa regionalização da cadeia produtiva. Portanto, cabe neste momento a análise dessas novas condições. Esse pode representar uma abertura para aproveitamento estratégico dessas mudanças, sobretudo no que se refere a viabilizar – através da atração de capital estrangeiro – uma nova onda de reindustrialização no Brasil e na América Latina.
COVID-19, Guerra na Ucrânia e Canal de Suez
É possível destacar que dentro desses quarenta anos de neoliberalismo, ficou perceptível esse processo de outsourcing. A rivalidade geopolítica, que em muito derivada das guerras comerciais envolvendo especialmente nações como Estados Unidos, China e países da União Europeia, se intensificaram com o desencadear da pandemia de COVID-19. Iniciada no ano de 2020, o evento fez ficar claro que, em momentos de agravantes globais como esse, as vulnerabilidades adquiridas com o mundo globalizado e ‘liberalizado’, perpetuariam-se a níveis complexos de resolução. As condições amplificaram-se ainda mais a partir do início da da guerra na Ucrânia. A indisponibilidade de produtos, e/ou a inviabilidade de importá-los devido a esses eventos de amplitude global, resultou em uma escassez generalizada que, ao fim, resumiu-se a uma problemática essencial: baixa diversidade de fornecedores e/ou distância do país filial ou fornecedor. O conflito atingiu dois setores importantes da economia mundial: os de alimentos e energia. Exemplo disso, é o fato da Rússia ser o principal exportador de gás natural do mundo e grande player também no comércio de petróleo. Enquanto a Ucrânia representa 12% das exportações mundiais de trigo.
Outro exemplo dessa vulnerabilidade que existe no mundo, é o bloqueio do Canal de Suez que ocorreu no ano de 2021,com o porta contêineres Ever Given. O canal é uma rota importante para o comércio mundial e para o transporte de petróleo russo rumo à Ásia, além de ser uma artéria essencial para o transporte de bens e consumo de matéria-prima. Só com essa pausa de circulação devido ao bloqueio, estimou-se uma perda de US 9,5 bilhões de mercadorias, já que cerca de 10% do comércio marítimo e 30% da oferta mundial de petróleo o atravessam. Ou seja, “um simples bloqueio” temporário provoca um efeito cascata em decorrência da alta internacionalização do sistema produtivo, impactando diversos setores, como o preço dos produtos de consumo diário e insumos e componentes para setores da indústria.
Dois titãs econômicos em conflito
A reorientação das cadeias produtivas deve ser analisada também no seu contexto geopolítico. Sendo que a principal delas é a disputa entre China e Estados Unidos. Nesse sentido, planos são forjados com o intuito de diminuir uma possível vulnerabilidade econômica das economias nacionais, como por exemplo o plano Build Back Better dos Estados Unidos. Os investimentos bilionários do governo são justificados sempre com referência a ascenção chinesa.
O início da disputa aberta entre Estados Unidos e China se deu no governo de Donald Trump, que tinha como promessa reverter um suposto cenário desfavorável para os EUA em sua relação com a China, marcado pelo slogan de Make America Great Again. Em seu governo, se iniciou a tal da guerra comercial, que envolveu medidas como tarifas às importações e restrição a acesso de tecnologia. O presidente que assumiu depois de Trump, Joe Biden, também continuou com essa tendência de “reconstruir os Estados Unidos’’. No seu plano, Build Back Better, o papel do Estado ganha proeminência. Em 2021, houve um pacote de investimento em infraestrutura de cerca de 1 trilhão de dólares.
Já na China, há o plano ‘’Made in China 2025’’, que visa uma maior liderança chinesa na produção de produtos altamente tecnológicos. Além disso, a China busca uma reorientação das cadeias produtivas em toda a África, Ásia e Europa de forma a se beneficiar, garantindo, assim, o seu próprio crescimento. A partir de 2010, o crescimento do PIB da China para de ser tão grande se comparado à décadas anteriores, como pode ser visto nos dados do Banco Mundial
Ao analisar as taxas de crescimento chinesas das últimas quatro décadas, é possível ver uma diminuição no ritmo – embora este período de crescimento chinês tenha sido um dos maiores da história econômica mundial. A diminuição para a casa de modestos 7,6% ao ano entre 2010 e 2019 reflete também uma transformação qualitativa no crescimento Chinês. A presença chinesa no mundo hoje, seja pelos seus produtos, empresas, parcerias ou todos os três juntos é impossível de se ignorar em qualquer país do mundo. Cada vez mais a China tem se colocado no topo das cadeias globais de valor de uma série de bens, com foco muito grande nas diferentes fronteiras tecnológicas.
Tendo isso em vista, a políticas conhecidas como Cinturão Econômico da Rota da Seda e a Rota da Seda Marítima do Século XXI (que formam a Belt and Road Initiative) visam justamente uma maior integração da economia chinesa com praticamente o restante do mundo. Além disso, há outros espaços de articulação política e integração econômica que a China utiliza, como a Organização de Cooperação de Xangai (OCX), a União Econômica Eurasiática (EAEU) e o BRICS. Um caso mais recente é o aumento da dependência da Rússia com a China como forma de ‘’contornar’’ as sanções europeias.
Para além da China e dos Estados Unidos, outros países também buscam uma reorganização das suas cadeias produtivas, é o caso dos membros da União Europeia. Por conta da guerra na Ucrânia, busca se distanciar cada vez mais da Rússia. Um dos exemplos disso, é o aumento da importação de gás natural de outros países que não sejam a Rússia. Além disso, há também outras movimentações de inserção econômica, como o acordo comercial entre o Mercosul-União Europeia. Por mais que ainda haja pontos a serem discutidos.
Reorganização e mudanças
Frente ao novo cenário geopolítico, surge a necessidade, por parte dos próprios países do capitalismo avançado, de ser revisada a visão neoliberal de globalização em cena desde os anos 1990, visando a segurança de fornecimento e uma reconstrução econômica com novas bases. Ainda se mantém a sensibilidade que ambos os atores sentem com crises internacionais, mas o grau de vulnerabilidade, ou seja, a capacidade que eles têm de lidar com tais adversidades, é a nova preocupação tanto das empresas quanto dos Estados. Estratégias de rearranjo das cadeias produtivas vêm sendo adotadas com esse objetivo, dentre elas a reshoring, nearshoring e a friendshoring.
O primeiro diz respeito a um retorno das cadeias de produção aos seus países de origem; o segundo a uma reaproximação à países próximos, tanto a sede das empresas como os próprios mercados consumidores, com canais de comércio e comunicação fortes e, o terceiro, a reorganização entre Estados “amigos”, com interesses e valores compartilhados e confiança mútua – para evitar casos como o corte do fornecimento de gás da Rússia para a Europa.
Esse processo pode ser influenciado pelos Estados por meio de incentivos, mas depende majoritariamente das decisões das empresas e sua vontade de diversificação de investimentos e fornecedores, em uma conjuntura neoliberal e um afastamento do modelo das Cadeias Globais de Valor (GVLs) que têm sido a base do comércio internacional desde os anos 90 e que consiste na “fragmentação da produção e das estratégias nas empresas”.
Posição do Brasil e América Latina neste cenário
Esta reorganização das cadeias produtivas globais e estratégias tanto dos Estados quanto das empresas multinacionais para as suas formas de internacionalização abrem possibilidades para os países periféricos como o Brasil.
Um beneficiado evidente deste processo de reorganização é o México, que atraiu diversas multinacionais de olho no mercado estadunidense, como a Tesla, BMW, Audi e Lenovo, a fabricarem seus produtos em seu território, em alternativa à China – que, após a pandemia de COVID-19, demonstrou a vulnerabilidade que existe em a produção ser tão concentrada em um único lugar. O México possui uma vantagem territorial por fazer fronteira com um grande mercado consumidor, os EUA, e tem sido favorecido com as últimas mudanças internacionais.
Não são apenas empresas dos EUA, cada vez mais empresas chinesas também tem se instalado no território mexicano visando o mercado consumidor dos EUA.
O Brasil- embora não esteja na sua melhor posição comparada em relação às outras regiões do mundo – ainda é um mercado consumidor muito importante, rico de recursos naturais e humanas. Isso significa que pode, com intenção, planejamento e atuação do Estado, criar condições, neste contexto de reorganização das cadeias globais de valor para recuperar, sob outros moldes, a industrialização visando construir capacidade industrial-tecnológica endógena e empregos de qualidade.
Durante o auge do neoliberalismo, o Brasil não tinha poder para negociar a qualidade dos investimentos de multinacionais nos seus territórios, a não ser a privatização dos seus bens e empresas públicas ou abertura total e irrestrita – ambas com efeitos de desenvolvimento e industrialização marginalmente nulos. Hoje, no cenário de competição entre dois grandes blocos, EUA e China, com a Europa como um 3º ator – ainda que mais próximo dos EUA – são abertas oportunidades para uma política ousada de atração de investimentos de qualidade para os países latino-americanos. Mas é necessária uma atuação planejada e estratégica para poder se aproveitar deste contexto.
¹ Agradecimentos ao professor Giorgio Romano Schutte pela colaboração.