Entre o Dragão e a Águia: a Nicarágua no centro do conflito Leste-Oeste

05 de outubro de 2023


Por Gabriel de Mello Rodrigues (Imagem: Pixabay)


“Sólo pueden venir a nuestra América Latina como huéspedes; 

pero nunca como amos y senõres, como pretenden hacerlo.”

Augusto César Sandino


Nicarágua no centro de uma disputa geopolítica: o impacto global do projeto de Canal e a complexa realidade política. Saiba como a Nicarágua se tornou um ponto de conflito entre EUA e China, o papel histórico e geopolítico do país e as complexidades de sua situação política interna. Descubra por que a construção de um canal bioceânico representa mais do que uma obra de infraestrutura, mas um desafio ao poder global.


Ao voltar os olhos para a Nicarágua através das lentes do discurso em voga na imprensa nacional e internacional, sobretudo a ocidental e americana, percebe-se em parte substancial das notícias, discursos e opiniões como o atual governante Daniel Ortega tem sido alvo de críticas e denúncias por parte da comunidade internacional por violações aos Direitos Humanos e por acabar com a continuidade democrática no país. Longe de não condenar tais ações, uma análise mais atenta revela que o país se encontra no centro de uma disputa entre EUA e China, por meio de um projeto de infraestrutura com peso histórico e geopolítico que tem o potencial para abalar a atual conformação de poder no mundo.


Existe no mundo hoje um conflito Leste-Oeste. As bases da globalização e alguns dos pilares do próprio poder dos EUA no plano internacional encontram-se em crise. Com a queda da URSS na década de 1990, assiste-se a um momento unipolar no globo sob a hegemonia dos EUA. O país expande seu poder militar sobre o mundo, expandindo a OTAN e realizando diversas operações e invasões militares, procurando consolidar seu papel de policial ou xerife do globo. Além disso, expande sobre o mundo seu poder econômico, político e ideológico por meio da globalização – com as cadeias globais de valor, aberturas comerciais e certo congelamento das relações de produção e das divisões internacionais do trabalho – e da suposta defesa da democracia.


A aplicação da cartilha neoliberal, porém, traz uma série de crises desde a década de 1990, com a mais forte delas em 2008, com a bolha imobiliária e a crise do subprime. Procurando socorrer as empresas, corporações, o mercado e suas ferramentas de poder hegemônico, mas não a população, o Estado avança para salvar a economia com injeções de investimentos, estatizações e perdão de dívidas. A crise abriu espaço, todavia, para a ascensão econômica da China que hoje está em aberta disputa com os EUA.


A forma com a qual se enfrentou, e ainda enfrenta, a pandemia de Covid-19, uma resposta com desunião, disputa e fragmentação, também abriu espaço para uma disputa diplomática e geopolítica por diversos temas, como o de patentes ou o de vacinas. Agravando conflitos entre o Sul e o Norte Global e entre o Leste e o Oeste.


A expansão da OTAN em direção à Rússia, muito criticada inclusive por importantes formuladores de política externa estadunidense, e a resposta da Rússia com a invasão da Ucrânia, colocam para o mundo um conflito que encontra precedentes apenas na Grande Guerra. Não só com repercussões globais como o aumento da inflação, por causa do suprimento de grãos, e a crise energética, devido ao embargo ao gás e petróleo russo, mas como um desafio direto ao papel de policial do mundo dos EUA, bem como o maior ou menor apoio de seus aliados mais próximos. Além disso, o risco de escalação ou das próprias consequências da solução do conflito colocam para o mundo possibilidades enormes de alteração na conformação do poder internacional.


Vale ressaltar, como Gilberto Maringoni de Oliveira aponta em seu livro, A volta do Estado Planejador: Neoliberalismo em Xeque, se o neoliberalismo tem por fundamento o afastamento da iniciativa e da interferência do Estado em diversos assuntos, as ações diante dessas crises, com o socorro do Estado para a economia, a ação do Estado para enfrentar a pandemia – com investimento em pesquisa e estatização de hospitais, compra de vacinas, remédios e equipamentos, etc – e a ação do Estado diante da guerra, o colocam em xeque e abrem uma oportunidade para o retorno de um Estado planejador.


Esse conflito coloca, então, em disputa aspectos centrais da globalização e do momento unipolar dos EUA, confrontando-o com aspirações chinesas e russas, principalmente. Na América Latina, os efeitos são sentidos na forma do desemprego, da precarização e da inflação. Mas também pelo avanço chinês sob o continente, tanto comercial, quanto na forma de investimentos, desafiando a zona de influência estadunidense.


Antes de entender mais a fundo o papel da Nicarágua neste conflito, faz-se necessário entender sua inserção internacional dependente, seu histórico com os EUA e um pouco de seu contexto nacional. A Nicarágua é um país na periferia do sistema capitalista, com uma economia voltada principalmente para a agroexportação de matérias-primas como o arroz. O país é marcado pela dependência tecnológica e de capitais e por uma burguesia subalterna ao centro capitalista. Adicionalmente, o país é historicamente marcado pela interferência estadunidense nos marcos da Doutrina Monroe e de seu imperialismo.


A Doutrina Monroe, estabelecida pelo presidente James Monroe em 1823, estabelece o continente como uma zona de influência dos EUA. Segundo essa política, quaisquer interferências no continente por parte de outras potências seriam consideradas atitudes hostis. Se por um lado, impediu aspirações de recolonização europeia do continente, por outro, jogou seus países na zona de poder dos EUA e nos braços do seu intervencionismo. O impacto disso foi sentido com mais força na América Central, com diversos golpes e operações militares.


A Nicarágua já foi invadida e ocupada pelos EUA várias vezes na história, a última delas em 1930. Conhecida como Guerra das Bananas, em alusão ao termo República das Bananas, as intervenções tiveram por objetivo proteger o investimento privado estadunidense na exploração de recursos naturais no país, bem como impedir, já naquela época, a construção de um canal no istmo por qualquer outra nação que não os EUA. A intervenção foi bem sucedida, garantindo também que os bancos estadunidenses emprestassem dinheiro ao governo da Nicarágua, efetivamente garantindo controle sobre as finanças do país.


Augusto César Sandino, um revolucionário que morre na luta neste período é quem vai dar nome a revolução da década de 1970, contra o governo de Somoza, apoiado pelos EUA. Trata-se de uma revolução popular, com apoio de setores democráticos internacionais e da igreja, com um projeto de transformação social, emancipação e melhoria na qualidade de vida. A fase da revolução, entre 1979 e 1989, se finaliza quando Ortega perde as eleições para a candidata apoiada pelos EUA, Violeta Chamorro, após uma intensa campanha de sabotagem ao governo revolucionário, com embargos e envio de armas e dinheiro para financiar uma guerra civil no país durante dez anos. O partido revolucionário tem a opção de permanecer no jogo democrático como oposição e o faz.


Em 2007, entretanto, quando Ortega é eleito novamente, a frente sandinista é descaracterizada e seu impulso popular é usada para montar um projeto de poder pessoal e familiar oligárquico, com aspirações de perpetuação no poder quase como uma dinastia, nos moldes de Somoza. Há 15 anos no poder, Ortega mudou a constituição garantindo sua reeleição quase que indefinidamente. Colocou sua esposa e filhos em cargos políticos e estratégicos. 


Muito se discutiu nos EUA na década de 1930 sobre o imperativo de construir e controlar um canal na Nicarágua. Entretanto, a iniciativa foi abandonada logo no início do século 20, após a compra das participações francesas no Canal do Panamá.


Um canal na região é absolutamente estratégico de todos os pontos de vista. É central para a diminuição no tempo do trajeto entre dois importantes oceanos no mundo, o Atlântico e o Pacífico. Central para o escoamento da produção, mas para a guerra também. Sendo, inclusive, um pilar importante do poder naval dos EUA. Esse aspecto ganha ainda mais relevância quando observado do ponto de vista geopolítico, em que o poder dos EUA e sua grande estratégia estão assentados de maneira vital sob sua superioridade naval e o uso dela para o controle territorial estratégico ao redor do mundo. Dessa maneira, controle sobre a Nicarágua, com ou sem canal, é uma prioridade absoluta.


O que se observa, porém, é a Nicarágua escorregando da esfera dos EUA. Em 2013 e 2014, a Nicarágua se aproxima da China, a qual propõe a construção de um canal bioceânico no país dentro das diretrizes da iniciativa da Nova Rota da Seda. O projeto busca utilizar a geografia do país, se aproveitando do imenso Lago interno, o qual funcionaria como centro do canal e ajudaria a diminuir o esforço e a magnitude da obra.

O canal conectaria o oceano Pacífico ao Atlântico, através do Mar do Caribe e representaria um aprofundamento das relações bilaterais entre os países. A iniciativa facilitaria o comércio, o escoamento da produção e o abastecimento chinês. Bem como deferiria um golpe geopolítico importante nos EUA.


Em 2014, o investimento estimado era de 50 bilhões de dólares. Geraria o emprego direto de 50 mil pessoas e o indireto de 200 mil. A extensão do canal chegaria a 278 quilômetros, 4 vezes o Canal do Panamá. Ao somar sua largura e profundidade, superaria a capacidade do Canal do Panamá duas vezes. O tempo previsto para a obra estava entre 5 e 10 anos, com uma concessão de 50 anos para a China pela construção, podendo se estender por mais 50 para administrá-lo. Pequim anunciou ainda que doaria um milhão de vacinas contra Covid-19 ao país que enfrentava dificuldades sérias na contenção da pandemia e no tratamento dos pacientes. Mais importante do que isso, Pequim e Manágua anunciaram que o projeto estaria inserido na Nova Rota da Seda e deveria abrigar dois portos, um aeroporto, um centro turístico e um parque industrial.


A Nova Rota da Seda é um projeto lançado em 2013 que investe bilhões em projetos de infraestrutura como portos, estradas, ferrovias, redes de telecomunicações e aeroportos em dezenas de países com o objetivo de escoar sua produção, garantindo sua centralidade no comércio e produção mundial, além de expandir sua influência global e consolidar sua nova inserção internacional. O canal ocuparia posição central na lógica da Rota, garantindo independência do Canal do Panamá, diminuindo o tempo de viagem que não precisaria dar a volta pela Terra do Fogo, no extremo da América do Sul, e expandindo suas possibilidades pela América Latina. Impulsionado, ainda, pelo Porto de Mariel em Cuba, construído com a participação do Brasil. Vale sempre notar que o impacto de uma obra dessa magnitude é imenso e sofre com resistências de ambientalistas e comunidades locais, impactando reservas naturais e o modo de vida dessas populações.


Além das desapropriações de terras com base na Lei 840, pouco progresso foi efetivamente realizado na construção do canal. Já na época do anúncio da concessão para a companhia chinesa HKND Group (Hong Kong Nicaragua Canal Develoment), a Nicarágua acusava Colombia e Costa Rica de tentarem impedir o andamento do projeto devido a reinvidações desses países sobre territórios que provavelmente seriam usados na construção da hidrovia. Entre 2015 e 2016, devido a crise no mercado de ações chinesa que afetou fortemente a HKND, foram levantadas dúvidas sobre a capacidade de financiar a construção do canal e a possibilidade de adiar ou cancelar o projeto. O início da construção estava planejado para o fim de 2016 e, apesar de forte insistência por parte da Nicaraguá e HKND de que a construção da hidrovia teria andamento, não foram observadas ações concretas. A partir de 2018, analistas consideravam como fracassada a iniciativa.. Porém, os dois países voltaram a se aproximar em 2022 e a possibilidade de continuição do projeto é recolocada à mesa. Aliada ao fato de a Nicarágua ter se retirado da OEA e deixado de reconhecer a independência de Taiwan, a percepção é de que o país realmente se distancia cada vez mais dos EUA e de sua esfera de poder e influência.


A importância do Canal para a China e EUA gira em torno do tabuleiro geopolítico, no qual o comércio marítimo tem sido uma grande fonte de riqueza e influência das nações e a qual exige o controle das rotas navegáveis e o território em seu entorno. A forma como os EUA parece ver o mundo, baseado em teorias como a do Heartland e do Rimland, parece reafirmar isso. A aproximação entre China e Nicarágua para a construção de um canal na região representa para os EUA mais do que uma presença extra-regional indesejada em sua área de influência, representaria um golpe ao seu exercício hegemônico sobre o comércio mundial que passa pelo Canal do Panamá e um desafio ao seu status e poder. Dessa forma, é possível compreender como para os EUA derrubar Ortega é um imperativo. O país tem usado e vai se usar de todos os seus meios para financiar sabotagens e uma mudança política ou de regime na Nicarágua. A guerra de propaganda é uma delas.


Isso não corresponde a negar a situação grave no país e denunciar o projeto de poder de Ortega. Apesar de defender que seu governo seria de esquerda ou alinhado com a revolução, Ortega adota medidas neoliberais e autoritárias. Reforma a previdência, retira autonomia das universidades públicas, persegue líderes populares que se opõem a seu governo, reprime violentamente manifestações nas capitais e exila opositores, privando-os de suas nacionalidades e direitos. As eleições da Nicarágua em 2021 apontam para uma baixa legitimidade de seu governo, com as abstenções alcançando 81%. Isso significa que a cada 5 pessoas, 4 não votaram.


Todavia, é necessário compreender que a defesa dos Direitos Humanos no plano internacional pode, por vezes, servir como instrumento de poder dos EUA, como foi feito durante a Guerra Fria para atacar a URSS. O historiador Chico Teixeira chama a atenção para como essa defesa dos Direitos Humanos serve para criticar e atacar a China, Nicarágua e Venezuela, mas não serve para criticar a situação dos imigrantes e refugiados na Europa, da população negra nos EUA ou do muro na fronteira dos EUA com o México e sua política violenta e desumana de migração. A tentativa de retirar Ortega do poder se configura como uma pretensão da comunidade internacional de garantir os Direitos Humanos, tanto quanto um movimento geopolítico dos EUA para tentar garantir a manutenção de seu poder no continente.

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