Desafios do Narcotráfico na América do Sul: Conflitos Irregulares, Segurança Regional e Cooperação Estratégica

14 de dezembro de 2023

 

Por Gabriela Dias Silva, Gabrielly Provenzzano da Silva, Geovanna Mirian Raimundo, Vinicius Silva Santos (Imagem: Unsplash)

 

A relação entre ex-membros da FARC com facções criminosas brasileiras na fronteira amazônica vêm criando novas formas de integração regional do crime e demonstram a ineficácia da atuação estatal na região das fronteiras e no combate a novos atores que ameaçam a defesa e soberania nacional.

 

No dia 6 de novembro de 2023 o UOL traz a tona uma notícia que relata o fato de que ex-membros das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) estão sob investigação das autoridades colombianas, brasileiras e norte-americanas por suspeita de controlar uma rota do tráfico internacional na região amazônica e negociar cocaína com as facções criminosas PCC (Primeiro Comando da Capital) e CV (Comando Vermelho) no Brasil.

Esses ex-guerrilheiros das FARC, que também abrigaram Fernandinho Beira-Mar – considerado um dos maiores traficantes da América Latina e ex-líder do CV – no passado, motivo da suspeita de ligação com as facções brasileiras, agora são suspeitos de liderar uma rota de tráfico que começa na Colômbia, passa pela Amazônia e chega a Manaus, no Brasil, de onde a cocaína é distribuída para outros destinos, incluindo países europeus.

 

Há evidências indicando que o CV e o PCC se associaram a ex-guerrilheiros colombianos para transportar drogas por rios na região da fronteira entre Colômbia e Brasil. Documentos de inteligência mencionam que o CV tem a função de “recuperar rotas no Amazonas”, enquanto o PCC é citado como aliado de narcotraficantes no sul da Colômbia e disputa território com o CV.

 

Além disso, a notícia destaca a presença desses ex-membros das FARC no Brasil há mais de 15 anos, e sua intenção atual parece ser expandir o tráfico de cocaína para o Sudeste do país, particularmente no Rio de Janeiro e São Paulo. Essa conexão entre ex-guerrilheiros colombianos e facções criminosas brasileiras é indicativa de uma aliança no transporte de drogas por meio fluvial, e há relatos de apreensões de grandes carregamentos de drogas e armas, evidenciando a atuação desses grupos criminosos ao longo da fronteira entre os dois países.

 

Narcotráfico e Conflitos Irregulares na América do Sul

 

Como adjetivo, o uso termo irregular remete à existência, em contrapartida, de algo regular. No caso dos conflitos, os conflitos ou guerras irregulares ou híbridos são a contraparte dos conflitos ou guerras regulares ou convencionais. Para analisar o narcotráfico na América do Sul, nos valemos, principalmente, do trabalho de Mary Kaldor sobre as novas guerras, em diálogo com as contribuições de Clausewitz e alguns comentaristas de sua obra.

 

Isso porque, ao transcender barreiras fronteiriças, um dos elementos constituintes dos Estados, é natural que a atuação – e eventual combate – do narcotráfico entre na mira dos Estados. Assim, enquanto atores não-estatais em conflito com atores estatais (COUTINHO & GOMES, 2016, p. 173), os conflitos que envolvem o narcotráfico e o Estado podem ser entendidos como conflitos irregulares – isto é, não tradicionais. 

 

Nestes, em oposição ao que propõe Clausewitz, o duelo não é mais a essência da guerra, travada para incapacitar o adversário através da violência. Segundo Kaldor (2001), as guerras da atualidade possuem outros atores, objetivos, métodos e formas de financiamento. Para a autora, as novas guerras devem ser contextualizadas na era da globalização e do desmantelamento dos Estados (e não mais de sua construção), o que implica em conflitos travados em nome da identidade (e não mais da submissão do adversário, embora permaneça algum grau de intencionalidade política), através do controle da população distribuída em determinado território (e não mais por grandes batalhas).

 

No limite, os componentes listados por Kaldor apontam não só para um tipo ideal outro de guerra, mas também para uma distorção da trindade clássica de Estado, Forças Armadas e povo, que é a base do trabalho de Clausewitz. As FARC, por exemplo, apesar de não serem um Estado, possuem características próprias de instituições militares e tomaram territórios pelo estabelecimento de controle de civis de forma que, embora elementos tradicionais sejam identificados nos novos conflitos, a inserção de novos atores, como o narcotráfico, leva a uma nova dinâmica entre estes e os Estados – mais imprevisível, brutal e sangrenta que as guerras antigas.

 

Segurança Internacional, Defesa e Estratégia na América do Sul

 

Quando se inicia o tema de segurança internacional, defesa e estratégia na América do Sul, no primeiro momento, pode parecer até estranho ou incompatível, afinal não somos alvo de guerras comuns como na Ásia e no Oriente Médio, por exemplo, e no geral agimos diplomaticamente frente o sistema internacional, mas afinal só por esses motivos podemos considerar a América Latina um território pacífico?

 

Especialmente na América do Sul, quando analisamos historicamente, temos uma zona de não guerra, mas isso não significa que nos tornamos uma zona de paz (LIMA, p.55), isto porque, além de ser uma zona geopolítica importante para as relações entre Estados Unidos e Europa, e para conflitos políticos ligados ao minério e riqueza natural deste território, as próprias tensões territoriais constantes dos países que constituem a América do Sul abrem caminho para necessidade de um processo de segurança regional travado a partir de uma comunidade plural.

 

O Brasil, por sua vez, é o país da América Latina com mais vizinhos fronteiriços, o que torna esse desafio da Segurança Internacional através de uma comunidade plural ainda maior e mais complexo. Dada a extensão e diversidade da fronteira brasileira, estamos diretamente sujeitos a mais intercalços ligados a essa interconexão com outros Estados, tanto de entrada de narcotráfico e pirataria, por exemplo, como a própria exportação de problemas sociais e legais internos para outros países, como as facções. Além disso, “dos cerca de 16 mil quilômetros da fronteira brasileira, aproximadamente 12 mil correspondem à Amazônia” (LIMA, 2017, p.52) e isso torna a vigilância desse território uma das prioridades no que diz respeito ao controle de fronteiras, mas também um dos maiores desafios no mesmo âmbito. Além disso, os investimentos em defesa e cooperação regional nesse território, apesar de serem expressivos em proporção do orçamento nacional de defesa, ainda são muito aquém do tamanho e da importância desse território para o Brasil e para os vizinhos. Esses desafios, combinados, são a síntese perfeita para o caso de iniciação de ex-guerrilheiros da FARC para o PCC e CV.

 

Nos últimos anos, enquanto a cooperação militar bilateral foi se intensificando no Cone Sul, os países andinos, dos quais enfatizamos aqui a Colômbia, tem as tensões político-militares agravadas pelos efeitos do conflito político, econômico, social e militar ligadas fortemente a permanência e ascensão do narcotráfico dentro do país e por terem os Estados Unidos como principal parceiro em cooperação militar através do Plano Colômbia (LIMA, 2017, p.59) dificultando as relações de cooperação mútua com os países fronteiriços como, por exemplo, o Brasil. Ainda para Lima, dentre todos “os desafios à defesa da região, a biopirataria e a presença de redes de tráfico são certamente os problemas que ameaçam a soberania nacional de forma mais silenciosa e que colocam dificuldades de controle sobre o território” (id, p.63).

 

No caso da relação de antigos membros da FARC (Colômbia) com as facções PCC (São Paulo) e CV (Rio de Janeiro) podemos traçar um paralelo direto no desafio e limite das forças armadas em tratar crimes internacionais nas fronteiras amazônicas. O pesquisador especialista Aiala Couto afirma que, além da sua extensão, a fronteira amazônica é vulnerável por ter predomínio “de comunidades ribeirinhas e pouca presença do Estado […] afinal, essa dinâmica facilita o avanço de grupos colombianos que têm atravessado a fronteira” (apud FILHO, 2023). Apesar de ser um agravante importante e legítimo para intensificar e facilitar esse intercâmbio do tráfico colombiano com o brasileiro, devemos tomar cuidado com esse tipo de perspectiva, para que reforce a necessidade de cooperação civil-militar no enfrentamento de desafios para crimes cometidos na fronteira (LIMA, 2017, p.83) e que leve esse embate para além dos grupos tradicionais de defesa e segurança e não para um aumento de repressão contra comunidades ribeirinhas, muitas vezes vistas indevidamente como coniventes nesse tipo de crime.

 

Em síntese, esse tipo de embate não pode, de maneira alguma, caminhar para réplicas do enfrentamento brasileiro ao narcotráfico que se mostrou ineficiente ao ser repressivo. Podemos exemplificar a ineficiência desse tipo de abordagem com o próprio caso das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro que buscavam enfrentamento contra, por exemplo, o Comando Vermelho, mas que se mostraram ineficientes em seu objetivo, dado a continuidade da facção e do intenso crime organizado na cidade carioca, e responsáveis ainda pela morte de diversos civis (BETIM, 2018). Portanto, casos como o da reportagem devem nos levar para a busca de colaboração regional no âmbito de defesa e segurança evitando que as fronteiras se tornem uma forma de misturar e intensificar o crime organizado dos países latino-americanos, mas também tendo em mente o limite de atuação das Forças Armadas e a necessidade de cooperação e colaboração com a sociedade civil para essa atuação.

 

Considerações Finais

 

O aumento do narcotráfico na região sul-americana vem ocasionando uma série de discussões sobre a natureza dos conflitos regionais. Como fora visto, redes de comunicação entre facções criminosas conseguem atuar através de fronteiras, criando um aumento de conflitos irregulares em diferentes pontos, principalmente na Colômbia e no Brasil. Esta natureza conflitiva trás consigo a necessidade de repensar estratégias de segurança na região, desde a repensar a proteção das fronteiras, até a que tipo de defesa deve ser utilizado para evitar envolver atores inocentes dentro de uma guerra entre estado e grupos armados

 

Para o Brasil,  como já foi dito, a preocupação de defesa se dá na extensão e diversidade da fronteira com outros países, principalmente na região da floresta amazônica. Segundo Saint-Pierre (2019) entre as principais preocupações apontadas pela política de defesa nacional (PND) de 2005, o problema amazônico é tratado como um tópico especialmente sensível, mas mesmo que esta região esteja no radar dos órgãos de defesa como um dos principais problemas (p. 54), os gastos com defesa na região estão muito aquém do necessário para uma cobertura eficiente do território (LIMA, 2023, p. 62). Esse descaso somado com dado as recentes interligações entre relação de antigos membros da FARC (Colômbia) com as facções PCC (São Paulo) e CV (Rio de Janeiro) faz com que a presença de redes de tráfico sejam certamente um dos principais problemas que ameaçam a soberania nacional de forma mais silenciosa (LIMA, 2023).

 

Urge desta forma, vide a falta de capacidade de uma política nacional, a criação de um debate regional sobre defesa e segurança. No âmbito da Unasul há uma consideração de que a questão das drogas seja um problema de saúde pública (LIMA, p. 47) neste sentido, uma estratégia regional para o combate ao narcotráfico dentro do Conselho de Defesa Sul-Americano deve ser acionado, e a partir do  Centro Sul-americano de Estudos Estratégicos para Defesa que busca criar um maior monitoramento e análise de cenários prospectivos para a defesa entre os países (SAINT-PIERRE, 2019, p.66), criar estratégias para o enfrentamento das redes de comunicação e tráfico entre facções na região. Porém, como fora falado anteriormente, esse processo deve ser feito à luz de um debate que entenda os limites de atuação das Forças Armadas e que traga a cooperação e colaboração da sociedade civil. 

 

Por fim, deve-se ter em mente que o combate ao narcotráfico deve ser feito em âmbito regional, preservando sim as necessidades de cada país, mas tomando de nota que a segurança e a estratégia de defesa regionais fazem parte de um processo de promoção da paz. 

 

Referências Bibliográficas

 

BETIM, Felipe. UPPs, mais uma história de esperança e fracasso na segurança pública do Rio. El País, 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/11/politica/1520769227_645322.html>. Acesso em 24 nov. 2023. 

FILHO, Herculano Barreto. Colombianos que abrigaram Beira-Mar se aliam a PCC e CV em rota amazônica. Uol, 2023. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/11/06/rota-do-trafico-da-colombia-para-o-brasil-amazonia.htm>. Acesso em: 23 nov. 2023.

KALDOR, Mary. Las nuevas guerras: La violencia organizada en la era global. Espanha: Kriterios Tusquets Editores, 2001. 

LIMA, M.; et all. (2017). Atlas da Política de Defesa Brasileira. Capítulo 3: Geopolítica da América do Sul. pp. 50-69. Disponível em: <https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20170515113254/Atlas_da_Politica_Brasileira_de_Defesa.pdf>. . Acesso em: 23 nov. 2023.

LIMA, M.; et all. (2017). Atlas da Política de Defesa Brasileira. Capítulo 4: Cooperação e Desenvolvimento. pp. 70-87. Disponível em: <https://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20170515113254/Atlas_da_Politica_Brasileira_de_Defesa.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2023.

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