O embate da opinião pública brasileira no conflito Israel-Palestina

09 de maio de 2024

 

Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva, Diana Dias da Silva, Giulia Monfredini, Joyce Cipriano Victurino, Lucca León Franco, Luiza Rodrigues Oliveira, Tiago Amadei Navarro Barbiellini e Ismara Izepe de Souza (Imagem: Unsplash)

 

A mídia hegemônica brasileira, ao reivindicar a posição de porta-voz da “opinião pública”, oculta sua verdadeira natureza: os meios de comunicação no Brasil funcionam mais como veículos de opiniões publicadas do que como representantes legítimos da “opinião pública”. Nesse sentido, é fundamental reconhecer que a mídia se estabeleceu como um instrumento das elites dominantes, majoritariamente promovendo ideias liberais.

 

Numa era em que a informação flui incessantemente pelos canais digitais e tradicionais, moldando opiniões e influenciando perspectivas, surge a necessidade premente de analisar e compreender a diversidade de vozes que ecoam na esfera pública. Diante desse panorama multifacetado, propomo-nos a realizar uma análise  da forma pela qual expoentes da mídia brasileira, tanto alinhados à esquerda quanto à extrema-direita, têm abordado a guerra entre Israel e Palestina e o posicionamento brasileiro diante do conflito.

 

Uma observação inicial é indispensável para compreendermos o conceito complexo e multifacetado de opinião pública, uma vez que as mídias se arrogam a missão de representá-la. Há uma profusão de estudos no campo da comunicação e das ciências sociais que, em linhas gerais, tentam conceituar o que é a opinião pública. Em termos gerais, ela seria a expressão coletiva das percepções, crenças e atitudes de uma sociedade em relação a questões políticas, sociais, econômicas e culturais. Ela é influenciada por diversos fatores, como mídia, governo, líderes políticos e interações sociais, e está em constante evolução em resposta a eventos e mudanças sociais. Analisá-la requer uma abordagem meticulosa para compreender as tendências e padrões que moldam o comportamento coletivo. É necessário ter em mente que os meios de comunicação no Brasil se constituem em opiniões publicadas e não necessariamente são representativos de uma “opinião pública”. A imprensa no Brasil se constituiu  enquanto braço das elites dominantes se firmando majoritariamente enquanto espaço de defesa das ideias liberais. Projetos desenvolvimentistas, nacionalistas e de esquerda receberam críticas contundentes dos órgãos de imprensa, vide o seu papel na derrubada de presidentes de épocas e contextos tão distintos quanto Getúlio Vargas, em 1954, e Dilma Rousseff, em 2016. A imprensa não necessariamente é sinônimo de opinião pública, mas ambas se influenciam mutuamente, por isso que nesse texto nos permitiremos utilizar a expressão “opinião pública” de forma mais generalizada. A partir dessa rápida explanação é essencial destrinchar os elementos fundamentais que permeiam o nosso objeto de análise: o conflito israel-palestina, uma das questões mais intrincadas da geopolítica contemporânea. Desde a sua origem, marcada pelo fim do mandato britânico na Palestina e a subsequente criação do Estado de Israel em 1948, até os desdobramentos mais recentes, este conflito tem sido palco de tensões persistentes e confrontos acirrados, culminando no genocídio atual.

 

Antecedentes históricos

 

A ideia de dois Estados, defendida desde os primórdios do conflito e ratificada pela Resolução 181 da ONU em 1947, representa um ponto central nessa análise. A proposta de partilha da Palestina, que designava cerca de 56% do território para os judeus e 44% para os árabes, foi um marco histórico que delineou as bases para a criação de dois Estados independentes. A resolução, aprovada em 29 de novembro de 1947 com 33 votos a favor, 13 contra, 10 abstenções e uma ausência, foi aceita pelos judeus, mas rejeitada pelos árabes na Palestina e pelos estados árabes. Nesse contexto, a figura do brasileiro Oswaldo Aranha, presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas na época da aprovação da resolução, ganha destaque, tendo desempenhado um papel crucial na condução desse processo diplomático. Embora a decisão não tenha sido acatada na época, devido à iminente criação do Estado judeu e à discordância dos líderes árabes com a divisão, isso acabou por desencadear a Guerra árabe-israelense de 1948 e a Nakba (catástrofe), resultando no deslocamento de cerca de 750 mil palestinos de seus lares.

 

Durante as décadas de 1960 e 1970, o Brasil vivenciava um período conturbado, caracterizado por um regime autoritário que adotou uma política externa que, no contexto da Guerra Fria, adotou posturas diplomáticas alinhadas com diferentes atores internacionais. Quando do golpe militar de 1964 o país tendeu a alinhar-se com os Estados Unidos, apoiando Israel devido a laços políticos e comerciais. No entanto, também buscou manter relações com os países árabes, importantes parceiros comerciais, o que o levou a adotar uma posição mais equilibrada com o passar dos anos. No período da presidência de Ernesto Geisel (1974-1979), o Brasil adotou uma postura que, se para o governo representava uma expressão de sua autonomia, para outros segmentos foi vista como de provocação ao Estado de Israel, ao votar a favor da resolução 3.379 da Assembleia Geral da ONU, que caracterizava o sionismo como uma forma de racismo. Essa postura refletiu a busca do Brasil por uma política externa que conciliasse interesses econômicos e geopolíticos, enquanto navegava em um contexto internacional polarizado pela Guerra Fria.

 

Nesse cenário de análise, não podemos deixar de considerar o papel desempenhado por líderes políticos no contexto internacional. Em particular, a visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Israel, em 2010, marca um ponto de inflexão significativo. Ao tornar-se o primeiro presidente brasileiro a visitar o Estado judeu, Lula abriu portas para um diálogo mais profundo e uma cooperação mais ampla entre as duas nações, promovendo uma nova dinâmica nas relações bilaterais.

 

Diante dessas considerações iniciais e com olhos atentos nos propomos a realizar essa análise de opinião pública, mergulhando nas narrativas divergentes que permeiam as diferentes correntes ideológicas presentes na mídia brasileira. Da esquerda à extrema-direita, das visões históricas às perspectivas contemporâneas, buscamos entender os múltiplos matizes que compõem o panorama midiático e político em torno do conflito israelense-palestino.

 

A eclosão do conflito e a posição do Brasil no Conselho de Segurança

 

Em 07 de outubro de 2023, o grupo islâmico Hamas lançou ataques na região sul de Israel, sob a reivindicação de uma grande operação de retomada de território, causando a morte de 1.139 pessoas. Desde então, Israel tem levantado uma brutal ofensiva à Palestina, por meio de ataques, deslocamento forçado, sequestros e o bloqueio de itens básicos para a subsistência. O saldo de mortes na Palestina é de cerca de 30 mil pessoas, segundo o Ministério da Saúde  de Gaza, sendo a maioria mulheres e crianças.

 

A escalada do conflito é reflexo do longo histórico de tensões na região. Se a motivação do Hamas estaria centrada  em retomar as atenções globais  para a Causa Palestina,  Israel, por sua vez, aproveitaria a resposta aos ataques para impulsionar a expulsão de palestinos e a eliminação do Hamas.

 

Vale ressaltar que desde a criação do Estado de Israel em 1948, a Palestina tem perdido o controle da maior parte de seu território. O deslocamento forçado tem levado à expansão dos assentamentos israelenses em território palestino, acelerando a ocupação. Nesse contexto, a motivação de Israel se refletiu no discurso de Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro israelense, na Assembleia Geral da ONU em 22 de setembro de 2023, que incidiu sobre como ele  enxerga o Oriente Médio, em um mapa que não constava a Palestina. Isso mostra como todo o movimento de segregação e conservadorismo radical de Israel remonta às últimas décadas e marca a ação do dia 07 de outubro de 2023.

 

Frente à escalada do conflito, foram propostas resoluções no Conselho de Segurança da ONU, que buscaram o fim das hostilidades na Faixa de Gaza. No entanto, todas foram vetadas pelos EUA, grande apoiador de Israel. Apesar do presidente Joe Biden acenar para uma mudança de postura, especialmente após os ataques de Israel a Rafah (cidade no sul da Faixa de Gaza que se tornou abrigo para palestinos que fugiram da guerra),  os EUA não interromperam o fornecimento de assistência militar ao país.

 

A Comunidade Internacional tem um papel fundamental para a resolução do conflito. Não somente para facilitar acordos de paz, mas também prover apoio econômico, social e político. Contudo,  o que vemos no momento são grandes potências, como China e Rússia aproveitando a ocasião  para focar em seus conflitos regionais  (Taiwan e Ucrânia, respectivamente), que deixam de ter evidência ou apoio dos Estados Unidos.

 

Em paralelo, Netanyahu observa as possibilidades para se desviar das acusações sofridas pelos ataques à Palestina. O mais recente desdobramento do conflito foi o ataque do Irã ao território israelense, após Israel estrategicamente atingir a embaixada iraniana em Damasco. A ação de Israel foi desenhada para que houvesse a contraofensiva e os olhares se voltassem para Israel e não mais para o massacre em Gaza.

 

Caberia agora um olhar atento à postura brasileira diante do conflito no âmbito multilateral. O Brasil, um dos membros não permanentes mais ativos do Conselho de Segurança da ONU, com 11 mandatos exercidos desde a criação do órgão em 1948, ficando atrás apenas do Japão, realizou seu último mandato na presidência rotativa do Conselho durante o mês de outubro de 2023, reforçando os princípios tradicionais de soberania, autonomia e não-intervenção de sua política externa, ao se colocar como possível mediador do conflito Israel-Palestina.

 

A representação brasileira na presidência do colegiado aconteceu no primeiro mês do atual conflito israelense-palestino, no bojo da mais brutal escalada de violência em 75 anos, com o Hamas realizando ataques inesperados e sincronizados por terra, ar e mar, deixando centenas de civis israelenses e de outras nacionalidades mortos ou feridos, além de fazer mais de 200 reféns, dando início a uma feroz ofensiva do Estado de Israel que tem, desde então, promovido intensos bombardeios à Faixa de Gaza. Sob alegação de desmantelar as bases do Hamas, os ataques tem atingido também hospitais, escolas e abrigos de refugiados, causando a morte de civis em maior vulnerabilidade, como mulheres e crianças além de exigir que a população local, em sua maioria palestinos, deixe a região norte de Gaza e se desloquem para o sul para, somente então, advir um suposto cessar-fogo. 

 

Foi nesse momento de tensão na política internacional que o Brasil liderou as tentativas de acordo, mantendo o foco na resolução do conflito através de propostas de cessar-fogo que privilegiaram o equilíbrio ao tecer críticas a ambas as partes, condenando veementemente os ataques do Hamas, considerando-os um ato terrorista, e pedindo que a organização libertasse todos os reféns em sua posse, porém, de outro lado, solicitando que Israel permitisse a entrada de ajuda humanitária e realizasse a revogação da ordem de retirada de civis do norte de Gaza, apontando as responsabilidades de cada uma das partes para obtenção e manutenção da paz e observando a equidade na tratativa do conflito, bem como no trato de todos os impactados por ele.     

 

Vemos como o posicionamento do Brasil está alinhado com o pensamento da comunidade internacional, ao analisarmos o resultado da votação da proposta, que contou com 12 votos favoráveis dos 15 possíveis, além de duas abstenções, obtendo, inclusive, apoio de quatro, dos cinco membros permanentes do Conselho e não sendo aprovada unicamente pelo veto dos Estados Unidos, país membro que detém esse poder juntamente com os os quatro outros membros permanentes (China, Rússia, Reino Unido e França). Por esse dispositivo, o veto norte- americano fez com que a proposta do Brasil fosse rejeitada.

 

O  Itamaraty lamentou o veto norte-americano, apontando como o uso do instrumento impede a manutenção da paz e o combate à crise humanitária na região, ressaltando ainda a necessidade de tomada de ações efetivas e urgentes por parte da comunidade internacional para o cessar-fogo. Já os Estados Unidos, aliado histórico de Israel, se disseram desapontados devido a resolução brasileira não mencionar o direito israelense de autodefesa, alegando ser esse o motivo para a não aprovação, porém, a decisão avoluma o número de propostas vetadas pelo país, que repetidamente tem barrado moções que não permitam uma margem de manobra plena ao Estado de Israel. 

 

A ampla adesão à proposta do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, mostra como o posicionamento do país frente ao conflito é visto com bons olhos pela comunidade internacional, além de trazer protagonismo à diplomacia brasileira em um momento geopolíticamente conturbado, reafirmando seu posicionamento pacifista historicamente construído, além de reabrir a discussão sobre a reforma do Conselho de Segurança e fortalecer o pleito do país a um assento como membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.   

 

A escalada recente das tensões entre Irã e Israel e a posição brasileira 

 

A rivalidade entre Israel e Irã está sendo intensificada devido ao conflito em Gaza, se constituindo em uma das principais fontes de instabilidade no Oriente Médio. A intensidade do conflito entre os dois países varia de acordo com o momento geopolítico em que o mundo se encontra, sendo que ambos os países contam com aliados ou adversários  importantes no cenário político e militar global.  

 

O Irã lidera o que conhecemos como o eixo da resistência no Oriente Médio. Quando o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, classificou Irã, Iraque e Coreia do Norte como o “eixo do mal”, a resposta iraniana foi uma aliança informal de países que se opõem aos interesses americanos e das antigas colônias europeias na região. Nesse contexto, o Irã, à frente do eixo da resistência, vê Israel como seu principal adversário. Na disputa por território com os palestinos, Israel conta com o apoio dos Estados Unidos. Diante das lutas e esforços pela paz na região, os Iranianos estabeleceram a Guarda Revolucionária como um elemento central do eixo da resistência.

 

A Guarda Revolucionária, com suas atribuições condicionadas pelo governo iraniano, é vista como mentora ideológica e financiadora de vários grupos extremistas, entre eles o Hamas em Gaza, o Hezbollah no Líbano, os Houthis no Iêmen e outros grupos armados na Síria, Iraque e Barém.

 

O Irã é acusado de apoiar o Hamas e a Jihad Islâmica em Gaza, o segundo maior grupo extremista na região, que reivindica um Estado próprio para a Palestina. Há questionamentos por parte do governo israelense e seus aliados sobre o envolvimento do Irã no ataque realizado em 7 de outubro de 2023 contra Israel pelo Hamas, no entanto, o governo iraniano negou qualquer participação, e não foram encontradas evidências para confirmar tais especulações. No Líbano, há rumores sobre a ligação iraniana com o grupo Hezbollah, considerado um grupo armado e um partido político relevante no país, enquanto os Estados Unidos, Israel e outros países árabes consideram o Hezbollah uma organização terrorista, o grupo nega essas acusações. Desde sua criação, o Hezbollah tem sido acusado de realizar diversos ataques contra alvos judeus e israelenses.

 

No contexto dos atores estatais, a Síria emerge como uma das principais aliadas do Irã no Oriente Médio. A guerra civil na Síria, que teve início em 2011 como protestos contra o então presidente Bashar al-Assad, rapidamente se intensificou dentro do país. Embora o Irã negue envolvimento direto na guerra síria, há indícios de que membros da Guarda Civil iraniana foram enviados para Damasco. Acredita-se que a Guarda Revolucionária Iraniana financie o Hezbollah, distribuindo mísseis e armamentos através do território sírio. Por outro lado, Israel é acusado de realizar ataques em territórios sírios, visando alvos iranianos. Não obstante, o conflito entre Israel e Irã está se intensificando e assumindo diversas proporções nos territórios israelenses. A ação militar realizada pelo Irã contra Israel, no último dia 13 de abril, foi uma retaliação à destruição de seu consulado em Damasco, na Síria, e a tensão no Oriente Médio está preocupando as autoridades internacionais. O Irã lançou mais de 300 drones e mísseis em direção ao território israelense, resultando em várias explosões e feridos. 

 

Cerca de 99% dos ataques foram interceptados pelas forças de defesa de Israel, Estados Unidos, Reino Unido e  Jordânia antes de chegarem ao espaço aéreo israelense, não resultando em grandes destruições, tendo o governo israelense caracterizado a ofensiva como “danos mínimos”. Em 15 de abril, uma reunião foi convocada pelo Conselho de Segurança da ONU a pedido de Israel, que prometeu uma contraofensiva. Durante essa reunião, os estados envolvidos cobraram sanções e trocaram acusações, mas não chegaram a um acordo. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, afirmou ao primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que o país americano não apoiará uma possível contraofensiva.

 

Diante do ataque do Irã a Israel, o governo brasileiro, em linha com sua postura cautelosa, demonstrou preocupação com a possível escalada da violência no Oriente Médio. Desde o conflito iniciado em outubro de 2023, o Brasil teme a entrada de outros países ou grupos militares no embate, prevendo  um cenário de agravamento. Os recentes ataques com drones e mísseis, em resposta ao bombardeio israelense à embaixada do Irã na Síria, só aumentam essa apreensão. O governo brasileiro, consciente das sensibilidades da região, optou por pedir “máxima contenção” a todas as partes envolvidas, evitando uma condenação taxativa ao Irã. Assim como no conflito Israel-Palestina, o Brasil busca o fim das hostilidades, enfatizando a necessidade de uma solução pacífica para evitar um desastre ainda maior na região.

 

A posição da grande imprensa brasileira sobre o conflito

 

Desde o início do conflito, a chamada grande imprensa – em especial os grandes veículos midiáticos do país, como Folha de S. Paulo, Grupo Globo e O Estado de S. Paulo, – têm adotado uma ação clara de cobrança ao governo brasileiro por uma posição anti-Hamas. Nesse contexto, foram diversos conteúdos, considerando desde reportagens jornalísticas à colunas de opinião e editoriais, que abordaram, em uma perspectiva crítica e de cobrança, a necessidade de uma posição definida do governo federal, mais especificamente do Presidente Lula e do Itamaraty, acerca de uma oposição ao grupo islâmico Hamas, criando uma espécie de dicotomia forçada entre Israel e Hamas, identificando este com o povo palestino e àquele com o povo judaico, de modo inseparável.

 

Situação essa que foi intensificada após o discurso do Presidente Lula, em uma coletiva de imprensa no encerramento de sua viagem à Etiópia, quando abordou que “o que está acontecendo na Faixa de Gaza não é uma guerra, mas um genocídio”, referindo-se também  às ações do ditador nazista Adolf Hitler contra os judeus. A fala ocasionou um reforço na cobrança por uma posição anti-Hamas, além de inúmeros conteúdos repudiando esse episódio. Como exemplo, pode-se citar algumas reportagens como “Lula compara ataques de Israel na Faixa de Gaza à morte de judeus por Hitler” do jornal O Globo, no qual o título é acompanhado, logo abaixo, por um repúdio da Confederação Israelita do Brasil: ‘distorção perversa da realidade’ que ‘ofende a memória das vítimas do Holocausto e de seus descendentes’. Com o passar dos dias , as críticas e cobranças tornam-se ainda mais claras: o jornal Folha de S. Paulo, em seu editorial (“O que a Folha pensa?”), nominou  o episódio como um “vexame diplomático”, concluindo que o Itamaraty se “opõe a princípios humanistas e civilizatórios”. O Estado de S. Paulo, por sua vez, em “Lula, o irredutível”, descreve o presidente como intelectualmente desonesto, concluindo  que “como a voz do povo brasileiro […], a Lula se impõe alguma retratação”.

 

Ademais, houve um reforço à dicotomia citada anteriormente, como na entrevista feita pela Folha ao jornalista britânico Jake Wallis Simons sob o título “Lula é um idiota útil do Hamas, diz autor de livro sobre antissemitismo”, na perspectiva de atribuir antissemitismo ao Hamas e, consequentemente, ao presidente brasileiro. Tentativa que também é reforçada com os diversos conteúdos que buscam relacionar Lula ao Movimento de Resistência Islâmica, como na menção ao agradecimento do Hamas ao presidente: “Líder do Hamas agradece declarações de Lula em apoio à Palestina”. Outro exemplo são nas reportagens que buscam retomar, de forma sistemática, a suposta isenção do governo brasileiro contra este Movimento: “Cinco vezes em que Lula e o governo não foram veementes ao condenar o terrorismo do Hamas” e “Após comparação com Holocausto, relembre todas as declarações de Lula sobre Israel e Hamas”. Nesse contexto, há uma tentativa de colocar o mandatário em uma ‘saia justa’, impondo que a não-oposição clara ao Hamas significaria uma posição antissemitista do governo brasileiro. 

 

Com o acirramento do conflito, a grande imprensa também intensificou suas críticas ao mandatário brasileiro. O Estado de S. Paulo, em um de seus editoriais, abordou “Lula e a má-fé da esquerda”, sem poupar palavras para o que caracterizam como “[episódios] que envergonham o Brasil perante a comunidade internacional”. Dizendo, ainda, que para Lula a “barbárie [do Hamas] é plenamente justificada se for realizada em nome das causas que seu partido [o PT] e a esquerda defendem”, finalizando com uma clara tentativa de associação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Hamas, além de atribuir que “Lula se empenha com denodo, desprezando cruelmente a dor dos judeus massacrados em Israel”. A coluna de Hélio Schwartsman, sob o título de “Onde foi parar a esquerda?”, sintetiza o que ele entende por contraste: “o que mais marca Lula hoje como um governante ‘de esquerda’ é que ele ganha elogios do Hamas. Não é por ser judeu, mas não penso que receber o selo de aprovação de uma organização terrorista conte como ponto positivo”

 

Conteúdos de críticas contundentes à posição do governo também são vistos na grande imprensa, principalmente com o apoio de entidades e entrevistas, como em “Presidente da Conib relata frustração com governo brasileiro após viagem a Israel”, citando, logo de início, que o “sentimento predominante é o de frustração com o posicionamento do governo brasileiro em relação ao conflito na Faixa de Gaza e que ameaça se espalhar pelo Oriente Médio”, e buscando demonstrar que é um sentimento compartilhado entre diversos brasileiros. Sem dúvidas, esse esforço em comum da grande imprensa possui resultado, muitas vezes influenciando em discursos presidenciais e posicionamentos governamentais, como visto nas tentativas do Itamaraty em apaziguar os episódios criticados ou no início das críticas ao Hamas, pelo Presidente Lula.

 

As críticas à postura do Brasil no conflito também foram publicadas pela Revista Veja, em especial no mês de fevereiro de 2024. Nesse sentido, no dia 21 de fevereiro, a revista publicou uma matéria com o título “Lula fica, a cada dia, mais descontrolado”, no qual discorre sobre um suposto “antissemitismo” ´presente no discurso de Lula que, de acordo com a Veja, defendia o grupo Hamas e comparavau os judeus a Hitler. Além de expor que o discurso de Lula decorria do fato de que o presidente havia passado dois anos preso e se julgava “acima do bem e do mal”, a matéria insinua que o presidente deveria se calar diante da possibilidade de Israel cortar as relações diplomáticas com o Brasil. 

 

Esse não é o único veículo de mídia a publicar matérias desse viés, a Revista Oeste – ideologicamente de extrema direita – é enfática quando coloca em sua manchete que “Terroristas do Hamas agradecem Lula por ataque a Israel”, dando a entender que o presidente Lula seria, de alguma forma, responsável pelo conflito. O que foi publicado pelo Hamas, como já citado anteriormente, foi que apreciavam a declaração do presidente que reconhecia o genocídio que o povo palestino estava sofrendo em Gaza. 

 

As declarações de Lula também repercutiram no cenário internacional e obtiveram resposta do Ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, que publicou em seu perfil do X (antigo Twitter) que ninguém prejudicaria o direito de Israel de se defender e que as palavras de Lula seriam graves e vergonhosas.  A Veja intitulou a reportagem como “O duro ataque do chanceler israelense a Lula: ‘Cuspiu no rosto dos judeus’”.

 

Analisando a Folha de S. Paulo, percebe-se um tom mais comedido para condenar as falas do Presidente Lula sobre o conflito entre Israel e Hamas. Mas, como já exposto, o jornal faz parte da mídia tradicional brasileira, compondo a chamada grande imprensa e não foge muito de seguir o tom prioritariamente crítico ao governo em seus principais posicionamentos.

 

É importante destacar, primeiramente, que em 21 de outubro de 2023 o grupo Folha publicou um editorial em que defende a criação de dois Estados, um judeu e um palestino, e condenou tanto os ataques terroristas do Hamas, quanto a reação exacerbada de Israel. O texto ainda promove o Brasil como um importante ator na condenação da violência. Mas, como será visto adiante, a postura do jornal muda após as falas de Lula e passa a ser mais critico ao termo “genocídio” do que aos próprios atos genocidas cometidos por Israel.

 

Em 18 de fevereiro de 2024 o jornal Folha de S. Paulo publica a seguinte manchete: “Lula compara ação de Israel em Gaza à de Hitler contra judeus”. A matéria se refere às declarações de Lula como uma crise diplomática com o governo de Israel e não deixa de fora as opiniões do Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu. Porém, não há um tom acusatório tão forte à Lula como nos veículos mais à  direita citados acima. Em diversos momentos, a primeira matéria do dia abre espaço às falas de Lula que apontam o fato de ser um conflito desigual, não havendo críticas quanto a isso. 

 

Já na segunda matéria publicada neste mesmo dia, isso começa a mudar: é exposto de forma repetitiva as impressões e críticas dos governantes de Israel, que vão desde a repreensão do ministro das Relações Exteriores, Israel Katz, ao embaixador brasileiro em Tel Aviv, até a mensagem publicada pelo presidente israelense, Isaac Herzog, que, sem mencionar Lula, condenou a distorção imoral da história

 

Diante desse cenário, a Folha publicou um editorial de título “Desvarios de Lula”, deixando claro que não é a favor das declarações do Presidente Lula, se referindo a ele como ignorante. De forma objetiva, essa é a opinião expressa em grande parte dos artigos publicados pela Folha de S. Paulo, como por exemplo “Palpite de Lula sobre Holocausto é para lá de infeliz” de Dora Kramer. É curioso, contudo, a forma com que alguns colunistas escrevem sobre o mesmo fato, se distanciando da posição do jornal em alguns momentos. Isso pode ser visto na coluna de Glenn Greenwald, que em vez de condenar, defendeu Lula. O jornalista  citou intelectuais judias que vão contra a ideologia sionista extremista e a truculência do governo de Israel, e se utilizou disso para construir seus argumentos e criticar a visão do jornalista William Waack, que afirmou que Lula “ofende judeus no mundo inteiro”

 

Entretanto, as ideias de Glenn Greenwald são diretamente opostas às de  Arnaldo Bloch em “Lula ofende judeus que votaram nele”, matéria cujo título dispensa interpretações. Assim, há uma diferença nítida de opiniões nas colunas publicadas pela Folha, ainda que seu editorial deixe clara a posição do jornal. 

 

Como pôde ser visto, a discussão feita pelos jornalistas da Folha pode apresentar algumas diferenças, mas não escapa de um consenso geral na visão do jornal: Lula faz bem em reconhecer a violência contra os palestinos, mas suas declarações são mais do que problemáticas. Essa posição está em consonância com a autoimagem do jornal, que faz da sua pluralidade um elemento de propaganda. O jornal que defende princípios liberais tem um histórico de críticas à política externa dos dois primeiros mandatos de Lula, mas, por vezes, tem um tom mais moderado em suas avaliações. No caso do conflito Israel-Palestina a Folha tende a criticar os meios – no caso o tom da Fala de Lula – mas não os fins,que poderíamos associar à tentativa de chamar a atenção da comunidade internacional para o genocídio na Palestina.

 

Após analisar a posição de veículos midiáticos desde a extrema-direita até a centro-direita, se faz necessário refletir sobre uma visão voltada para a esquerda política, que é o caso da linha editorial do portal de notícias Brasil 247.

 

Assim como todos os meios de comunicação brasileiros que buscaram noticiar o episódio citado acima, em 18 de fevereiro deste ano o Brasil 247 publicou a notícia de que Lula teria comparado a ação de Israel em Gaza ao massacre de Hitler contra os judeus na Segunda Guerra Mundial. Contudo, diferentemente da mídia tradicional brasileira, o portal de notícias não realizou críticas às falas do Presidente. É visto que num primeiro momento, o fato é apenas noticiado, sem haver o exercício de opinião na primeira publicação sobre o acontecimento. Mas horas depois e nos dias que se seguiram não faltaram matérias defendendo e elogiando as declarações de Lula.

 

Ao contrário da visão da Folha, que vê as falas de Lula como um ataque ao povo judeu, o Brasil 247 as enxerga como um posicionamento pela paz e pelo fim do massacre ao povo palestino. A denúncia dos crimes de Israel e a tentativa de evitar ataques em Rafah são algumas questões que o portal discute em suas matérias. O portal tende a exaltar as falas de Lula e adjetivos como forte” e “corajoso são utilizados para descrever o posicionamento do estadista. O portal  ainda abriu espaço para a Articulação Judaica de Esquerda, que publicou nota em que defende o posicionamento de Lula e para a Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), que definiu como uma honra Lula ter recebido o status de “persona non grata” em Israel. Críticas à Netanyahu também não faltam, como pode ser visto no texto de Valter Pomar, historiador e docente da Universidade Federal do ABC, que define as falas de Lula como verdades que precisavam ter sido ditas.

 

Portanto, é visível como os colunistas do Brasil 247 possuem as mesmas visões do governo brasileiro acerca do que vêm sendo cometido por Israel desde outubro do ano passado e não medem esforços em demonstrar isso em seus textos. A posição do portal é bem clara quanto a isso também e traz uma nova abordagem para o conflito e para as declarações de Lula que ainda não haviam sido vistas neste artigo. Essa diferença de posição não apenas manifesta uma visão mais de esquerda, mas também representa o pensamento de segmentos da sociedade civil  que não é contemplado pela mídia tradicional brasileira. 

 

Entre o dito e o não dito

 

As diferentes abordagens da mídia e da opinião pública tanto no Brasil quanto no mundo sobre o conflito entre Israel e Palestina  refletem a complexidade e as sensibilidades envolvidas na situação do Oriente Médio. Enquanto alguns veículos de comunicação destacam a necessidade de contenção e diplomacia para evitar uma escalada ainda maior de violência, outros adotam posturas mais incisivas, condenando diretamente as ações de um dos lados do conflito. Da mesma forma, a opinião pública se divide entre aqueles que buscam uma compreensão mais ampla e equilibrada do contexto geopolítico e histórico da região e aqueles que tendem a adotar posicionamentos mais polarizados, apoiando de forma incondicional uma das partes envolvidas.

 

A mídia tradicional brasileira tende a reverberar o posicionamento de segmentos políticos e sociais comprometidos com a defesa de Israel, mesmo que para isso seja necessário fechar os olhos ao genocídio perpetrado pelo governo de Benjamin Netanyahu. As opiniões publicadas pela Revista Oeste, porta-voz da extrema-direita brasileira, se constituem em peças publicitárias do bolsonarismo, não havendo esforço por qualquer análise mais séria sobre o que vem ocorrendo no Oriente Médio. Essa posição, no entanto, gera preocupações aos que têm compromisso com a verdade, pois as explicações simplistas e sensacionalistas tendem a inflamar os ânimos das bases bolsonaristas, projetando ideias deturpadas sobre o conflito e a política externa brasileira. A distorsão do significado da fala do presidente Lula foi estrategicamente instrumentalizada e contribuiu para uma visão errônea de que o governo brasileiro é contra o povo judeu. A intenção desses meios é aproveitar esses episódios para atacar o governo e especialmente a figura de Lula. Já a Folha, o maior jornal do Brasil, embora tenha tecido críticas contundentes à postura do Brasil frente ao conflito, por vezes deu espaço a análises mais moderadas. No episódio referente à fala de Lula e toda a polêmica que se criou em torno dela, pouco espaço se abriu para as suas repercussões positivas pelo mundo. Ao alertar e chamar de genocídio o que ocorre na Palestina, Lula fez o papel que se espera de um líder do Sul Global que não é indiferente ao que ocorre no mundo, tendo recebido apoio de várias lideranças mundiais.

 

A forma como a grande mídia brasileira tem abordado o conflito, exaltando polêmicas infundadas, não tem contribuído para que a sociedade brasileira tenha maior conhecimento do jogo de forças políticas presentes no Oriente Médio. E sabemos que uma das bases da democracia é ter uma população que possa contar com informações assentadas na ética e no pluralismo de perspectivas. Nesse sentido, plataformas da chamada “imprensa alternativa”, que apresentam uma visão distinta dos principais meios de comunicação no Brasil são essenciais para qualificar o debate. A questão é encontrar formas desses canais, plataformas e meios crescerem em visibilidade junto ao público.

 

Em meio a essas diferentes perspectivas, torna-se evidente a necessidade de um diálogo aberto e construtivo, tanto a nível nacional quanto internacional, para encontrar soluções que promovam a paz e a estabilidade no Oriente Médio.

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