50 anos das Relações Brasil e China: Política Externa, Mídia e Ideologia

26 de setembro de 2024

 

Por Diana Dias, Gabriel Gesteira, Ismara Izepe de Souza, Mônica Almeida Peña e Tiago Amadei (Imagem: Ricardo Stuckert/PR)

 

As relações entre Brasil e China, que completam 50 anos em 2024, evoluíram de um pragmatismo inicial durante o governo Geisel para uma parceria estratégica que abrange comércio, ciência e tecnologia. Enquanto a imprensa brasileira tem historicamente refletido diferentes visões ideológicas sobre essa relação, a China se consolidou como um parceiro fundamental para o Brasil, especialmente na economia e na cooperação multilateral. Contudo, estereótipos negativos e desconfianças permanecem entre setores mais conservadores.

 

Histórico das Relações

 

As Relações Brasil-China, apesar de serem marcadas por  eventos do passado, como a imigração chinesa ainda em tempos imperiais e a polêmica visita do presidente João Goulart ao país asiático  na década de 1960, começaram oficialmente em 1974. Neste ano, o governo Geisel (1974-1979) reconheceu a República Popular da China, ação que corroborava a sua  política externa pragmática.  Em 1964, João Goulart foi  deposto por um golpe militar  sob a acusação de ser comunista, devido às reformas que seu governo propunha ao país. Geisel, o quarto a assumir o comando da ditadura militar que perdurou 21 anos,  seguiu por uma linha diferente na política externa, se comparada à praticada pelo  primeiro governo militar, qual seja, a de Castelo Branco, inaugurando o “Pragmatismo Responsável”, que buscava autonomia nas relações internacionais brasileiras através da diversificação dos laços com outras nações. Esse movimento era visto como essencial para o desenvolvimento nacional. 

 

Um dos princípios que o governo Geisel  utilizou para abstrair as diferenças ideológicas em sua condução da política externa foi o de “não interferência em assuntos domésticos”. Por trás disso, havia o descontentamento com a oposição dos EUA ao programa nuclear brasileiro e um alerta no sentido da necessidade de se desvencilhar da excessiva dependência econômica que o Brasil tinha do capital norte-americano. Mesmo mantendo boas relações com os EUA, Geisel se aproximou da China, pois havia o entendimento que ambos os países poderiam buscar maior  autonomia externa, cooperando  para alcançar uma ordem internacional multipolar.  Inicialmente o ritmo dos contatos não acompanhou as expectativas,  pois na década de 1980 o Brasil passava pela crise da Dívida e a China ainda enfrentava o problema da pobreza. Com o retorno da democracia no Brasil e a abertura econômica da China, as relações progrediram ainda mais, culminando em um acordo de cooperação na área de  ciência e tecnologia, que abriu espaço para o Programa de Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (CBERS). Esse acordo foi assinado em 1988 quando o presidente José Sarney visitou a China e se encontrou com o líder do país, Deng Xiaoping.

 

Em 1993, as relações Brasil-China foram elevadas ao patamar de Parceria Estratégica, a primeira desse tipo entre países em desenvolvimento, que depois se tornaria Parceria Estratégica Global. Isso passou a significar que as relações entre os dois países são importantes em vários setores, e implica numa cooperação a longo prazo. Em 1999 o primeiro satélite do CBERS  foi lançado com sucesso e mais cinco seriam lançados no futuro, tudo isso demonstrando a força dos laços entre os dois países.

 

Séc XXI: De Lula I ao momento atual

 

A partir da ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência, em 2003, as relações diplomáticas entre o Brasil e a China passaram a se destacar no cenário global. Ao assumir seu primeiro governo, Lula buscou expandir os laços econômicos e diplomáticos do Brasil, com o objetivo de reduzir a dependência histórica dos Estados Unidos e da Europa. Nesse contexto, a China se consolidou como um parceiro fundamental, especialmente nas áreas comercial e estratégica.

O comércio bilateral entre Brasil e China cresceu de forma significativa durante o primeiro mandato de Lula. A China rapidamente se tornou o maior destino das exportações brasileiras, sobretudo de commodities como soja, minério de ferro e petróleo. Essas relações foram marcadas por uma intensa complementaridade econômica: o Brasil, com sua vasta base agrícola e de recursos naturais, atendia à crescente demanda chinesa por matérias-primas, ao passo que importava da China produtos manufaturados, principalmente eletrônicos e bens industriais.

Em 2004, Lula e o então presidente chinês, Hu Jintao, selaram uma “parceria estratégica” entre os dois países, reafirmando o compromisso com a cooperação em áreas como ciência e tecnologia, infraestrutura e energia. As relações entre Brasil e China também se fortaleceram no campo da diplomacia multilateral, com ambos defendendo reformas nas instituições internacionais, para que essas melhor refletissem as novas realidades geopolíticas do século XXI. Esse movimento diplomático foi ainda reforçado pela criação dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), um bloco em que Brasil e China compartilham interesses, como a cooperação Sul-Sul e a criação de alternativas ao sistema financeiro global dominado pelo Ocidente.

Ao longo do segundo governo Lula (2007-2010) os investimentos chineses no Brasil continuaram a crescer substancialmente, especialmente em setores estratégicos como infraestrutura, energia e telecomunicações. A China passou a investir em grandes projetos no Brasil, como usinas de energia, ferrovias e portos, além de se consolidar como o principal comprador de produtos agrícolas brasileiros, particularmente a soja.

Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), as relações entre Brasil e China oscilaram entre tensões políticas e pragmatismo econômico. No início, Bolsonaro adotou uma postura crítica em relação à China, alinhando-se a Donald Trump e acusando o país asiático de ameaçar a soberania brasileira por meio de investimentos em setores estratégicos. A retórica anti-China, exacerbada durante a pandemia de COVID-19 por membros do governo, gerou atritos diplomáticos, como a fala do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub sobre a alimentação chinesa, que, segundo ele, não demoraria a trazer uma “nova pandemia”. A declaração repercutiu internacionalmente e foi veementemente condenada pelo governo chinês que a apontou como racista. 

Apesar das tensões, a China permaneceu como o principal parceiro comercial do Brasil, especialmente no setor de exportações de commodities como soja e carne. A dependência brasileira da demanda chinesa, somada ao papel crucial da China no fornecimento de insumos para vacinas contra a COVID-19, forçou um ajuste na postura de Bolsonaro. Com o tempo, o governo adotou uma abordagem mais pragmática, reconhecendo a importância estratégica da relação econômica com a China, apesar das divergências ideológicas e dos conflitos iniciais.

No terceiro mandato de Lula, iniciado em 2023, as relações com a China permanecem uma prioridade estratégica para o Brasil. A relação bilateral continua evoluindo, agora com novos desafios e oportunidades, como a transição para uma economia mais sustentável e a crescente presença da China em setores de alta tecnologia e energia limpa no Brasil. O desenvolvimento das relações Brasil-China reflete a visão de Lula de alinhar o Brasil com as principais potências emergentes, fortalecendo sua posição global e promovendo a diversificação de suas parcerias comerciais e diplomáticas.

A visão da imprensa no passado 

Quando observamos a consolidação das relações entre Brasil e China no século XXI, mal cogitamos as mais diversas opiniões que a imprensa  tinha sobre esse tema no passado.  No período que corresponde ao fim do Império e início da República, na segunda metade do século XIX, de acordo com artigo da BBC Brasil, houve a tentativa de trazer imigrantes chineses para substituir a mão de obra escravizada. As elites políticas e econômicas, influenciadas pelas ideias do darwinismo social e outras em voga na Europa acerca das raças, avaliavam  que as populações negras (nacionais e africanas) se constituíam em  trabalhadores indolentes e indisciplinados. Isso levou à sugestão do uso dos trabalhadores chineses como uma segunda opção aos  brancos europeus (que preferiram migrar para os EUA e Argentina devido ao clima). Em 1879, foi elaborado um projeto na Assembleia da Província de São Paulo acerca do  emprego de chineses na lavoura de café como solução intermediária do trabalho escravo para o livre. O projeto foi pautado também na Câmara dos Deputados, onde encontrou resistência. Tanto apoiadores como detratores da ideia usavam argumentos racializados, de que os chineses seriam “trabalhadores disciplinados” e serviriam de mão de obra barata, ou por oposição, de que eles seriam responsáveis por “espalhar vícios e degradar as raças nacionais”.

 

Podemos ver o reflexo dessas opiniões políticas através de charges da época, como a  estampada na capa da Revista Illustrada de 1881, cuja  legenda afirma: “Preto e amarelo. É possível que haja quem entenda que a nossa lavoura só pode ser sustentada por essas duas raças tão feias. Mau gosto!”.

 

Fonte: Ângelo Agostini – Biblioteca Nacional/ BBC

 

E outra, em resposta ao mesmo projeto, mostrando a lavoura brasileira, representada por uma mulher branca, ameaçada por outros grupos étnicos:

 

Fonte: Ângelo Agostini – Biblioteca Nacional/ BBC

 

As charges acima derrubam o mito da cordialidade brasileira em relação ao imigrante. Havia correntes dentro da sociedade brasileira que resistiam à imigração chinesa a partir de uma argumentação repleta de estereótipos e preconceitos. Em outros momentos da história brasileira os chineses foram retratados pela imprensa de maneira negativa, com menções e mensagens repletas de paranóia e xenofobia. Quando da renúncia de Jânio Quadros, em 24 de agosto de 1961, seu vice estava em missão comercial à China. Para além das suspeitas que pairavam sobre João Goulart, identificado com o trabalhismo varguista e com setores da esquerda, o fato de estar realizando uma viagem por países asiáticos, dentre eles a China, de regime comunista, gerou uma série de reações da sociedade brasileira, inclusive da mídia, nacional e internacional. O jornal americano  do The New York Times, conforme relatado em artigo publicado no portal do MST, classificou Jango, como Goulart era popularmente conhecido, como um admirador de Mao Tse Tung. Depois do golpe que retirou Goulart do poder, o mesmo jornal, em 3 de abril de 1964, noticiou em sua primeira página que a deposição de Jango havia sido “a remoção de uma ameaça comunista imediata”, mostrando o apoio desse veículo de mídia ao golpe.

 

No Brasil, o jornal O Globo, no contexto da volta de Jango da China para assumir a presidência em agosto de 1961, pediu para o povo aguardar o retorno à normalidade republicana, afirmando que os militares tinham tudo sobre controle. Em um futuro próximo eles passariam a ponderar sobre a ameaça representada por Jango. Já o jornal O Estado de S. Paulo, mais radical, apoiava abertamente um golpe militar contra a posse de Jango, para evitar algum “golpe subversivo” por parte dele. Apesar de haver alguns jornais defensores da legalidade, é nítido que a viagem de Jango à China causava desconforto e servia de combustível para veículos de mídia criticarem a sua posse. 

 

Como a imprensa avalia essa relação, 50 anos depois?

 

Após esse breve panorama, a seguir analisamos a forma pela qual alguns expoentes da mídia brasileira enxergam aspectos diversos das relações entre Brasil e China. Mais especificamente, apresentaremos aqui os olhares da Revista Veja, da Revista Oeste, do jornal Folha de S. Paulo e do site Brasil 247, que oferecem diferentes perspectivas e visões sobre as relações sino-brasileiras. 

Revistas Veja e Oeste

Em maio de 2024, a Revista Veja divulgou uma matéria curta sobre o encontro em comemoração aos 50 anos das relações diplomáticas Brasil-China realizado em maio de 2024, em Brasília, pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI). De acordo com a notícia, participaram do evento autoridades e nomes do setor privado, especialistas dos dois países, além do vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, do embaixador Eduardo Paes Saboia, do Itamaraty, e de Zhu Qingqiao, embaixador da China no Brasil.

Outra notícia, também pequena, abordou  a ascensão do comércio bilateral no ano em que se comemoram os 50 anos das relações entre os Brasil e China. A Veja incidiu sobre dados econômicos, afirmando que, de acordo com o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), foi registrado um aumento de 12,7% nas importações brasileiras da China no primeiro trimestre de 2024 em comparação ao mesmo período do ano anterior. Houve aumento, também, nas exportações brasileiras para a China, que representaram um aumento médio de 9,8%.

A Revista Oeste dedicou pouco espaço às comemorações dos 50 anos das relações sino-brasileiras, noticiando que a parceria, iniciada em 15 de agosto de 1974, faz da China, atualmente, o principal parceiro comercial do Brasil. E se limitou a apresentar dados da balança comercial. Segundo dados da Secretaria de Comércio e Relações Internacionais do Ministério de Relações Exteriores, a China foi o principal importador do agronegócio no período de julho de 2023 a julho de 2024 (principais produtos: soja, milho, açúcar, carnes bovina, de frango e suína, celulose e algodão). O país exportou para o Brasil produtos florestais e têxteis, com valor total em torno de US$1,18 bilhão. Em junho de 2024, quando da  visita à China do ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, e do vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, o governo brasileiro promoveu o café nacional  na maior rede de cafeterias chinesa, que resultou na venda de aproximadamente 120 mil toneladas de café.

A Revista Oeste  noticiou a vinda do chanceler chinês, Wang Yi, ao Brasil, em janeiro de 2024, e seu encontro com o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, no Itamaraty. O encontro marcou mais uma edição do Diálogo Estratégico Global Brasil–China. Após, os dois países assinaram acordo que estendeu o prazo máximo dos vistos entre os dois países de cinco para dez anos, além de terem conversado sobre as comemorações dos 50 anos de relações diplomáticas entre Brasil e China.

Pelo que se observa, não houve posicionamento editorial de nenhuma das duas revistas sobre a efeméride. As notícias veiculadas se restringiram a mostrar dados objetivos sobre as relações comerciais entre os dois países. Não houve abordagem sobre os 50 anos de relações diplomáticas sob perspectivas positivas e/ou negativas, apesar de mencionarem, e dos números demonstrarem, o aumento bilateral das transações comerciais Brasil-China.

Para além das notícias sobre as comemorações relativas aos 50 anos das relações diplomáticas entre Brasil e China, as matérias sobre a China na Revista Oeste , em outros momentos, procuram transmitir uma imagem negativa do país, mesmo que indireta e veladamente. Exemplares disso são as notícias sobre o vírus da Covid-19 e a responsabilidade chinesa sobre a pandemia, veiculadas em períodos distintos.  Trazemos aqui duas notícias que explicitam tal orientação: uma notícia da Revista Veja  publicada em abril de 2023, e outra da Revista Oeste, publicada em janeiro de 2024, portanto, em período recente, quando a pandemia já havia se encerrado.

Com o título “A China produziu vacina contra Covid antes de revelar epidemia ao mundo?”, a Revista Veja, noticiou que, em 24 de fevereiro de 2020, ou seja, no início da pandemia do Covid-19,  Yusen Zhou, professor da Academia Militar de Ciências Médicas, registrou a patente de uma vacina contra a Covid-19. Segundo informações da revista, para que fosse registrada, qualquer vacina necessitaria de no mínimo dois a três meses para ser desenvolvida ou adaptada. Assim, o processo teria que ter começado em novembro de 2019. A epidemia só foi anunciada ao mundo em dezembro do mesmo ano. Tudo de acordo com relatório que a Subcomissão de Saúde do Senado americano produziu. Isso configuraria um indício de que o governo chinês ocultou o início da epidemia. Ainda de acordo com a notícia, foram dois vazamentos acidentais no Instituto de Virologia de Wuhan que provocaram a morte de 6,8 milhões de pessoas ao redor do mundo. Além do fato do instituto vender animais para abate em mercados que teriam sido usados no laboratório. As informações que constaram no relatório dão conta de que, em média, 29 gatos civetas, hospedeiros confirmados da epidemia de Sars em 2003 e usados em pesquisas no instituto, foram vendidos nos dezessete mercados de Wuhan. Porém, as evidências de que os animais eram mesmo do laboratório eram indiretas. 

A revista Veja trouxe o depoimento do senador republicano Roger Marshall, que participou da investigação. Segundo o senador, um professor da Universidade Agrícola da China, em Pequim, foi condenado por corrupção decorrente da venda de animais usados em experiências de laboratório. Ainda de acordo com o senador, a China teve oportunidades de desmentir os relatórios referentes à origem da Covid-19, porém não o fez. O país estava respondendo ao vírus meses antes do mundo saber de sua existência. Sabia e não informou ao mundo. São acusações graves que a revista publicou, porém em nenhuma oportunidade procurou ouvir o que representantes chineses tinham a dizer.

A notícia na Revista Oeste, com título “Laboratório chinês isolou covid-19 duas semanas antes de anúncio oficial de Pequim, diz WSJ”, semelhante à Revista Veja, abordou  o isolamento e mapeamento do vírus por pesquisadores chineses em dezembro de 2019. A notícia tem como base a reportagem realizada pelo The Wall Street Journal, sobre investigação realizada pelo Congresso dos Estados Unidos. A reportagem segue relatando  que documentos obtidos do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA por um comitê da Câmara demonstram os atos de um pesquisador chinês em Pequim que carregou uma sequência quase completa da estrutura do vírus em um banco de dados administrado pelo governo dos EUA em 28 de dezembro de 2019. Mas não mencionam   qual pesquisador, e em que banco de dados a sequência foi carregada. Sem esclarecer se a Covid-19 surgiu de um animal infectado ou de eventual fuga de laboratório, a reportagem finaliza afirmando  que duas semanas a mais seriam essenciais para o mundo.

Outro exemplo que pode demonstrar a visão das duas revistas em relação à China diz respeito à economia. A Revista Veja visitou o país antes da chegada do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ocorreu em 24 de março de 2023.  Em matéria especial, Veja  registrou o otimismo do país em relação à recuperação da economia pós-pandemia. O texto enfatiza o clima de euforia existente nas principais cidades e aborda o aumento das vendas no varejo em 3,5%, em comparação com os índices negativos dos três meses anteriores. Aborda também o aumento da produção industrial de 2,4% no mesmo período e o aumento nos investimentos em manufatura e infraestrutura em 8% e 9%, respectivamente. Além de mencionar meta cautelosa do governo chinês que estabeleceu 5% de crescimento do PIB para 2023. Menciona, ainda, o fato de que o presidente Lula chegaria à China em um cenário de expectativas em alta e com o propósito de fortalecer o lugar de destaque do Brasil na reaceleração do seu principal parceiro comercial. A reportagem não critica a visita do presidente brasileiro, sendo bastante elucidativa da dinâmica econômica chinesa. Veja, no que se refere ao encontro político, apresenta o reconhecimento da importância chinesa para o Brasil e para o mundo. O fato de ter enviado seus jornalistas para a China indica a valorização do tema pela referida revista.

No que tange às questões comerciais, a Revista Veja, em agosto de 2023, deu visibilidade aos efeitos da  redução da taxa de juros diante de “crescentes tensões econômicas no gigante asiático”. A Revista informou que o governo de Xi Jinping estava focado na reanimação do setor econômico sem a necessidade de recorrer a estímulos massivos. A reportagem dá voz tanto às autoridades chinesas, como ao porta-voz do ministério das Relações Exteriores, Wang Wenbin, que afirma que as críticas e temores ocidentais “estão equivocados”, fazendo alusão a Joe Biden, que alega “que os crescentes problemas do país asiático constituem uma ‘bomba-relógio’”.

Em um tom extremamente crítico, em abril de 2023, a Revista Oeste fez um balanço negativo sobre os resultados da visita do presidente brasileiro à China. Na matéria “Lula põe o Brasil em risco ao assinar 15 acordos comerciais com a China’, Oeste consultou “especialistas”, sendo um deles   o ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, que afirmou que os acordos entre Brasil e China sempre têm objetivos políticos, nunca objetivos unicamente comerciais, avaliando que os acordos reforçam a ideia chinesa de consolidar sua hegemonia no mundo. Araújo também comentou possíveis danos ao agronegócio brasileiro. De acordo com o ex-ministro, “É errado pensar que a China é importante para o agronegócio, por ser o nosso principal mercado, na verdade, é o contrário. Não é o Brasil que está produzindo e a China que está lá, passivamente, comprando. Não. O agronegócio brasileiro é importante apenas porque está inserido na estratégia do PCC de se firmar como fonte prioritária de alimentos para a sua população. A China vem e ‘manda’ o agronegócio brasileiro produzir o que ela quer, quando quer, como quer.”

Pode-se exemplificar a visão pessimista que a Revista Oeste deseja transmitir da China pela matéria que aborda a possibilidade da pandemia do Covid-19 ter se tornado o início do declínio da potência. A reportagem ressalta a falta de transparência interna chinesa, o controle centralizado no Partido Comunista como ônus à manutenção do crescimento chinês. O recado principal que a reportagem transmite é que a China pode estar revertendo seu crescimento e sua capacidade de atrair investimentos, podendo declinar como potência. Como a Revista Veja, a Oeste demonstrou preocupação com a taxa de juros chinesa que, em agosto de 2022, foi reduzida para 2,75% ao ano para estimular a economia. As matérias da Revista Oeste apontam para dados negativos sobre a economia chinesa, afirmando que  os índices da indústria e do comércio em julho de 2022 tinham ficado abaixo das expectativas. A produção industrial chinesa, segundo a matéria, havia subido  quase 4% em julho, tendo resultados abaixo do esperado, segundo  o Escritório Nacional de Estatísticas. Já o comércio varejista cresceu 3% em ritmo anual, contra 3,1% em junho. O desemprego urbano caiu para 5,4%, mas o desemprego entre os jovens subiu para um recorde de cerca de 20%, segundo o departamento de estatísticas.

Em outubro de 2023, a Revista Oeste direcionou o olhar do leitor para a fraca atividade industrial chinesa. Cabe observar  que,  apesar desses fatos, o PIB do país cresceu 4,9% no terceiro trimestre, bem acima das expectativas.

A visão que a revista estimula é a de pessimismo, dando ênfase em dados do comércio e do varejo que seriam decepcionantes, como o crescimento econômico estabelecido pelo governo chinês para 2023 de 5%, o menor em décadas.

A matéria mais recente da Oeste, de julho de 2024, reproduziu a preocupação da revista inglesa The Economist em relação à expansão chinesa na América Latina. De acordo com a matéria, líderes da região não levam em consideração os riscos crescentes de dependência. De acordo com a reportagem, o comércio bilateral entre China e América Latina cresceu de US$18 bilhões para US$450 bilhões em 20 anos (de 2002 a 2022). Isso faz da China o maior parceiro comercial de Brasil, Chile e Peru, superando os Estados Unidos, na América do Sul.

Folha de S. Paulo e Brasil 247

Apesar de não abordar o tema através dos editoriais, a Folha de S. Paulo publicou uma série de matérias denominada “Brasil-China, 50”, que  oferece uma análise do passado e perspectivas sobre o futuro das relações entre os dois países, discutindo tanto a importância econômica quanto geopolítica dessa parceria. Assim, o artigo Pragmatismo, recado aos EUA e café levaram ditadura brasileira a reatar com a China traz observações sobre a retomada das relações diplomáticas em 1974 em plena ditadura militar, e como essa reaproximação foi fruto da “política externa pragmática, responsável e ecumênica” adotada pelo Brasil. Em Brasil e China completam 50 anos de relações diplomáticas de olho em visita de Xi o foco maior está nos acordos a serem assinados, durante a visita de Xi Jinping, prevista para ocorrer em novembro de 2024. O presidente Lula, que inicialmente resistiu à ideia de aderir à Iniciativa Cinturão e Rota da China, começou a considerar a possibilidade no último mês. Em entrevista à agência Xinhua, ele afirmou que o Brasil quer entender sua posição nesse programa, sugerindo que o país pretende ter um papel central. Em resposta, a porta-voz chinesa Mao Ning indicou que a China está ansiosa pela participação do Brasil. Lula deseja expandir a parceria estratégica além das commodities, focando em áreas como ciência, tecnologia, e produção de chips. Celso Amorim, assessor especial de política externa de Lula, prevê uma cooperação tecnológica forte, incluindo projetos de impacto, como a produção de baterias para carros elétricos no Brasil. Embora haja certa resistência burocrática à entrada na Iniciativa, Amorim acredita que o importante é negociar projetos que tragam benefícios concretos para o Brasil.

 

A Folha de S. Paulo também deu voz em dois dos seus artigos de opinião para o ministro das Relações Exteriores da República Popular da China, Wang Yi, e para o cônsul-geral da China em São Paulo, Yu Peng. Em seu texto, 50 anos das relações Brasil-China, o ministro festeja o cinquentenário de relações entre os dois países, citando diversos exemplos e momentos em que ambos cooperaram de forma significativa para o desenvolvimento. Faz ainda menção ao Programa Sino-Brasileiro de Satélites de Recursos Terrestres (CBERS), às linhas de transmissão em ultra-alta tensão da usina hidrelétrica Belo Monte e à cooperação da China com o Brasil para o desenvolvimento das vacinas durante a pandemia de Covid-19, como exemplos de “cooperação Sul-Sul em alta tecnologia” (YI, 2024). Se referindo aos dois países como “representantes das economias emergentes”, Yi destaca ao longo de seu artigo o bom relacionamento e colaboração estratégica de ambas as nações nos últimos 50 anos. É interessante que um dia depois essa publicação (16/08/2024), o artigo Dilema entre interesses e valores ditará os próximos 50 anos de Brasil-China critica um termo usado por Wang Yi. O termo em questão foi traduzido do chinês pelo chanceler como “mandato dos céus” e utilizado para descrever que uma pessoa de 50 anos já sabe o que quer da vida, mas o jornalista Igor Patrick, mestre em estudos da China, analisa que uma tradução mais adequada seria “destino”. E discorda da afirmação. Além disso, o artigo é um dos únicos encontrados na Folha a esboçar um ttom negativo sobre a China. O jornalista discorre sobre o pragmatismo que marca o engajamento da China com o mundo, criticando  a forma pela qual o país levou suas relações internacionais: fazendo negócios e preservando seus interesses, deixando de lado valores como direitos humanos, democracia e liberdades individuais. Diferentemente das outras matérias publicadas pela Folha de S. Paulo, há também um tom mais cético sobre os possíveis ganhos para o Brasil nas trocas com a China. 

 

Por outro lado, o Brasil 247 comemorou os 50 anos de relações diplomáticas entre Brasil e China de forma mais veemente. É destacada uma abordagem otimista e de celebração mútua, enfatizando que a relação entre Brasil e China se construiu com base na confiança, cooperação e no desenvolvimento mútuo ao longo das últimas décadas. O portal ressalta que a parceria estratégica estabelecida entre os dois países em 1993, e a elevação do status para uma Parceria Estratégica Global em 2012, foram marcos significativos, e que a China se consolidou como o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009. Além disso, a cooperação se expandiu para áreas como infraestrutura, ciência e tecnologia, e a defesa de interesses comuns no cenário internacional, como no BRICS e nas Nações Unidas.

 

A visão do jornal sobre as comemorações destaca a importância estratégica e histórica dessa parceria, enfatizando os benefícios econômicos e políticos que surgiram ao longo desse período. Segundo a matéria Há 50 anos, Brasil e China cultivam uma relação de amizade e prosperidade comum, a aliança entre os dois países foi marcada pela crescente cooperação econômica, especialmente nas áreas de comércio e investimento. O texto ressalta que essa parceria foi benéfica para ambas as nações, com a China se tornando o principal parceiro comercial do Brasil, particularmente no setor de commodities, como soja e minério de ferro.

 

Em 50 anos da diplomacia socialista da China com o Brasil: agora rumo a um futuro de desenvolvimento econômico compartilhado, escrita por um membro do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB), da UFABC,  Marlon de Souza, é explorado o aspecto político-econômico da relação. A China é retratada como uma potência que oferece uma alternativa ao modelo ocidental, tanto em termos de economia quanto de diplomacia. Um ponto importante abordado é a noção de “desenvolvimento econômico compartilhado”, que, segundo o artigo, é uma proposta que visa equilibrar os interesses comerciais e industriais de ambas as nações. A China tem investido massivamente em setores estratégicos no Brasil, como infraestrutura e tecnologia, e o Brasil, por sua vez, exporta uma vasta gama de produtos, especialmente commodities. Essa interdependência, segundo a análise, reflete uma forma de cooperação internacional que visa a equidade, diferentemente do histórico de relações desiguais com o Ocidente. A matéria do Brasil 247 defende que essa parceria promove um modelo de desenvolvimento sustentável, com foco na cooperação multilateral e na soberania nacional, contrastando com a influência das potências ocidentais.

 

Ainda, o artigo Bodas de ouro: há 50 anos, Brasil e China desafiam o Ocidente no quesito produção sublinha momentos da duradoura relação Brasil-China, retomando o que foi dito por especialistas no podcast Mundioka, da Sputnik Brasil.  Assim, a China é apresentada como um exemplo de como o planejamento estatal pode impulsionar o desenvolvimento, sendo uma fonte de inspiração para o Brasil em sua busca por maior independência econômica, pontos com os quais o Brasil 247 concorda. Dessa forma, essas matérias refletem a visão positiva do Brasil 247 sobre a relação Brasil-China, enaltecendo a parceria como um pilar para o futuro de ambos os países, promovendo o desenvolvimento econômico compartilhado e uma alternativa viável à hegemonia ocidental.

 

Considerações finais

 

As relações entre Brasil e China não escapam da atenção dos veículos midiáticos, que apresentam visões distintas sobre o seu significado. Os 50 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países se constituem em um marco importante, afinal, trata-se da parceria brasileira com uma potência mundial, que pode apresentar vantagens ao Brasil não só no aspecto comercial, mas em outras dimensões. No Brasil, as visões negativas sobre a China não são recentes. Como foi abordado anteriormente, desde o século passado, parte das elites utilizaram a imprensa sob seu domínio para propagar a ideia de que o povo chinês não seria bem-vindo na sociedade brasileira. Após a Revolução Chinesa, que levou Mao Tse Tung ao poder, a “ameaça comunista” se somou  ao discurso sobre a indesejabilidade da raça.  

 

Passadas tantas décadas, alguns estereótipos sobre a presença chinesa no Brasil se mantém nos discursos da extrema-direita. A essas visões negativas sobre a China e seu povo são acrescidas as preocupações e críticas acerca do fortalecimento das relações diplomáticas e econômicas sino-brasileiras. Os  laços bilaterais de cooperação e comércio são vistos por alguns setores mais conservadores como uma tentativa de dominação do Brasil por parte da China. A Revista Oeste segue essa linha, avaliando a parceria Brasil e China como negativa para os interesses brasileiros. Já a Revista Veja e o jornal  Folha de S. Paulo, que apresentam  um perfil de direita moderada e liberal, reconhecem a importância da China na configuração da política externa brasileira. A Veja, a despeito de suas constantes críticas à condução da política externa por parte dos governos petistas, por exemplo, demonstrou o reconhecimento da importância da parceria sino-brasileira ao dedicar matérias especiais sobre a China antes mesmo da visita oficial de Lula ao gigante econômico. A Folha, por sua vez,  abriu espaço para setores pró-China expressarem sua opinião. Por fim, o  portal Brasil 247, com seu alinhamento mais à esquerda do espectro político, ressaltou de forma mais ampla os valores positivos que guiam as relações Brasil-China para um futuro promissor. Afinal, para a imprensa não hegemônica o pêndulo das relações internacionais brasileiras deve se orientar para a diversificação de parcerias e para a diminuição da influência estadunidense no país. Assim, a Revista Oeste foi o único veículo midiático pesquisado que apresentou críticas exacerbadas às relações entre Brasil e China, algo esperado, dado o seu comprometimento com setores bolsonaristas, que insistem em negar a relevância chinesa para o Brasil e para o mundo. 

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