Subordinação pela adesão: o Brasil na OCDE

Por Diego Azzi *
Adaptado do texto originalmente publicado na
CartaCapital

A decisão dos Estados Unidos em apoiar (ou deixar de obstruir) o Brasil no seu pedido de adesão como membro pleno da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) foi celebrada pelo governo e alguns analistas como uma vitória da debutante diplomacia de Jair Bolsonaro – ainda que não traga garantia alguma de sucesso futuro do pleito brasileiro.

A OCDE é apresentada por seus entusiastas sob o cativante rótulo de “Clube dos Países Ricos”, ainda que hoje não seja composto apenas por países ricos e que haja países ricos fora da OCDE. Das dez maiores economias do mundo, três não fazem parte da OCDE: China, India e Brasil. Estados Unidos, Canadá, Japão, Reino Unido, Alemanha, França e Itália completam a lista. O Brasil se carateriza por ser já há muito tempo uma das dez maiores economias do mundo (chegando a ocupar a 5a posição em 2007) e, portanto, representa um ativo de grande interesse para a OCDE, de magnitude similar ou maior do que a atratividade que a Organização eventualmente possa representar para o Brasil.

De qualquer forma, sejam do governo, do setor privado ou da academia, há certo consenso entre os defensores da entrada na OCDE de que a membresia plena representa algo como “um selo de qualidade” que garantiria “um aumento de confiança dos investidores”. Para além da fragilidade e falta de garantias que subjazem tal raciocínio, pouco se tem debatido o que está por trás destes genéricos slogans; a qual projeto de Brasil a entrada na OCDE corresponde; quais os prós e contras desta importantíssima decisão do Estado brasileiro para os distintos setores da economia e da sociedade.

Antes de mais nada, é importante notar que o Brasil, ainda que não seja membro pleno, já desfruta de status privilegiado nesta Organização, de forma que as contrapartidas exigidas pelo presidente Donald Trump para um apoio dos EUA e o árduo processo de adesão a cumprir pela frente matizam os ganhos imediatos alegadamente obtidos na visita presidencial a Washington.

Recapitulando um pouco mais, desde a derrubada do governo Dilma Roussef (PT), é possível identificar uma reorientação político-econômica da PEB sob comando de Serra e Nunes Ferreira (PSDB), que já enfatizava uma visão predominantemente liberalizante da economia, do comércio e dos investimentos; e um abandono da estratégia de coalizões na OMC e da ênfase nos BRICS. É durante o governo Temer (MDB), em maio de 2017, que o Brasil submete formalmente seu pedido de adesão plena à OCDE.

Brasília -O ex-ministro José Serra e o novo ministro das Relações Exteriores, Aloysio Nunes Ferreira, durante a solenidade de transmissão de cargo, no Palácio Itamaraty (Valter Campanato/Agência Brasil)

No atual governo, contudo, é muito mais Paulo Guedes (Fazenda) do que Ernesto Araújo (Itamaraty) o responsável por liderar a agenda de choque que virá com a aposta na inserção via abertura radical, donde a necessidade de tornar o país mais “competitivo” rebaixando o custo do trabalho (reformas trabalhista e da previdência; Emenda Constitucional 95 de teto dos gastos públicos) e “atraente” ao capital estrangeiro (privatizações, liberalização da economia e ancoragem deste processo nos marcos regulatórios da OCDE).

Através de uma estratégia que remete aos idos dos anos 1990, quando também vigorou uma tentativa de busca por “selos de qualidade e confiança” alegadamente vindos da adesão a regimes e protocolos internacionais – a então chamada autonomia pela integração. No entanto, a decisão de tornar-se membro pleno da OCDE está longe de ser apenas um ato de “valor simbólico” para trazer credibilidade internacional” ao país. Qualquer analista estrangeiro sabe que ser membro pleno da OCDE representa muito mais do que isto e terá consequências significativas para o Brasil, resultando mais em uma explícita subordinação pela adesãoque viola o pragmatismo diplomático do país.

Segundo a própria OCDE, o processo de acesso de um membro pleno, “não é mera formalidade, mas sim o resultado de uma rigorosa etapa de revisão das práticas e políticas públicas nacionais”. Atualmente, outros países latino-americanos como a Colômbia (37a economia mundial pelo seu PIB, segundo o FMI) e a Costa Rica (78a economia mundial) por exemplo, buscam sua incorporação no grupo junto ao já membro Chile (41a economia mundial) e estão tendo suas políticas submetidas à análise por nada menos que 23 comitês temáticos da OCDE, que emitirão seu parecer não somente sobre Comércio e Investimentos, mas também sobre áreas como Agricultura, Pesca, Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia, Governança Corporativa, Meio Ambiente, Produtos Químicos, Seguros e Previdência, Desenvolvimento Territorial, dentre outras.

Nas suas origens, a OCDE foi fundada em 1960 após a adesão dos EUA e do Canadá à Organização para a Cooperação Econômica Europeia (OCEE), desativada a partir de então. A OCEE havia funcionado desde a sua fundação em 1948 como importante fórum de concertação europeia dos esforços de reconstrução do Plano Marshall no pós-II Guerra. O Japão se somou ao novo grupo em 1964 e hoje a OCDE conta com 35 países-membros.

Durante toda a sua existência, a OCDE tem defendido e promovido os interesses dos governos, mas principalmente do capital privado dos seus países membros. Já em 1967 esta organização apresentou às Nações Unidas (ONU) uma proposta de Convenção sobre a Proteção da Propriedade Estrangeira (Draft on the Convention on the Protection of Foreign Property), examinada sem consenso pela ONU naquela oportunidade.

Frustrada com os resultados das negociações sobre TRIMS, TRIPS e GATS no âmbito do GATT (que já beneficiavam os seus países membros em detrimento do mundo em desenvolvimento), entre 1995 e 1998 a OCDE se dedicou a elaborar uma nova proposta de acordo sobre investimentos – negociado com o envolvimento do setor privado e sem qualquer mecanismo de transparência: o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), que só chegou ao conhecimento público através de vazamentos de informações totalmente fora do script negociador.

Este acordo visava a profunda liberalização e a ampla proteção dos investimentos, prevendo efetivos mecanismos de solução de controvérsias entre investidores e Estados (Investor-State Dispute Settlement provisions – ISDS) em Cortes internacionais como o CIADI do Banco Mundial, evitando assim que empresas tivessem que se submeter aos tribunais dos países signatários. Além disso, outra característica marcante do AMI da OCDE era a obrigação dos signatários em aceitar que, uma vez iniciada, a liberalização não poderia ser revertida e as exceções concedidas seriam necessariamente removidas (stand still and roll back provisions).

Isto obviamente representava uma limitação drástica da autonomia política e do policy spacedos governos, do legislativo e do judiciário daqueles países; e também uma neutralização preventiva do risco de ocorrerem escolhas democráticas por mudanças de rumo na política doméstica em eleições futuras. Em meados de 1998, a pressão das ruas e da opinião pública levou à saída da França (país onde está a sede da OCDE) do acordo e fez com que em dezembro a Organização anunciasse que as negociações sobre o AMI haviam colapsado definitivamente.

Qualquer semelhança do AMI com os atuais acordos de comércio e de investimentos de nova geração que correm por fora da OMC como, por exemplo, o TISA (Trade In Services Agreement) não é mera coincidência. Antigos conteúdos vêm sendo reciclados nas novas propostas de acordos que reúnem assimetricamente países desenvolvidos e em desenvolvimento por fora da institucionalidade multilateral existente. No caso do governo Trump, ao abandonar iniciativas da gestão do Democrata Barack Obama (TPP e TTIP), os Estados Unidos se empenham em relações bilaterais por um lado e, por outro, na modificação estrutural de organismos como a OMC, na qual coalizões de países em desenvolvimento lograram frear em alguma medida a obtenção dos interesses das nações mais desenvolvidas.

As negociações de Washington para que o Brasil abra mão do tratamento especial e diferenciado que possui como país em desenvolvimento na OMC se enquadram nesta estratégia e removerão o país da posição de opositor aos principais interesses dos membros da OCDE em geral e dos EUA em particular, enfraquecendo ainda mais o poder de barganha dos países em desenvolvimento reunidos em torno do que já foi o G20 comercial. Segundo o chanceler Ernesto Araújo, com esta decisão, o Brasil se tornou “um grande país no decision-making da OMC” e não está mais condenado a ser “eternamente um país em desenvolvimento”.

Os números do comercio exterior brasileiro no próximo período mostrarão o resultado prático desta estratégia, mas, no plano político, ao alinhar-se automaticamente à administração Trump, o Brasil possivelmente gerará uma animosidade hoje inexistente por parte de importantes nações do mundo em desenvolvimento, e sobretudo com a China. Não é exagerado questionar se esta orientação política não estará levando o Brasil a embarcar em um eventual desentendimento comercial com a China, do qual não teríamos nada a ganhar, como já ficou claro no recente episódio do trigo em que os EUA se beneficiaram suprindo a demanda chinesa que antes se endereçava ao Brasil.

Frente a estas dificuldades encontradas pelas grandes potências no plano das negociações multilaterais das últimas duas décadas, a OCDE aparece então como um espaço institucional bastante propício para formular e firmar amplos acordos ad hoc, sempre “voluntários”, que buscam estabelecer novos padrões regulatórios e forçar os países que estão fora a se submeterem post facto à nova realidade das “boas práticas”, sob pena de sofrerem com desvio do fluxo de comércio e investimentos. Em suma, a OCDE é um instrumento de poder no sistema internacional que, como outros, não deve ser subestimado.

Neste quadro, a membresia plena teria ainda outras importantes consequências para o Brasil, uma vez que as Decisões da OCDE tem que ser acatadas por seus membros como atos vinculantes (binding acts). No que diz respeito à esfera financeira e aos fluxos de capital, a OCDE possui ainda uma série de Códigos de Liberalização (Codes of Liberalisation) aos quais os países devem se submeter, incluindo, por exemplo, o Código de Liberalização do Movimento de Capitais (o qual inclui também a liberalização dos fluxos de investimentos). Nunca é demais enfatizar o quanto países em desenvolvimento já sofreram nos anos 1990 e início dos 2000 com a volatilidade de capitais de curto prazo e ataques especulativos às suas moedas, uma vez afrouxados os controles de capital.

Um outro ângulo de análise sobre a história recente da organização nos mostra que, partindo da constatação de que até meados deste século terá ocorrido uma mudança dramática no equilíbrio de poder mundial”, com as economias emergentes representando uma parcela cada vez maior do PIB global, a partir de 2007 foi a própria OCDE que buscou se aproximar dos países dos BRICS e também da Indonésia, que passaram a ter um status diferenciado na organização, passando de observadores a key partners, “países não-membros com engajamento aprofundado”. Se a entrada do Brasil de fato se refletir no abandono dos diversos foros multilaterais em que o país se destaca por mediar e representar interesses mais amplos do mundo em desenvolvimento, como por exemplo na OMC, todo este capital político acumulado durante décadas será desalavancado imediatamente e, a partir de então, para saber as posições do Brasil bastará ouvir o que dizem os representantes dos EUA.

Na realidade, durante os últimos cerca de 15 anos foi a OCDE que esteve em busca de recuperar credibilidade e aprender com as boas práticas dos países emergentes. Contrariamente às acusações de que a política exterior dos treze anos de governos Lula-Dilma pecou por ser excessivamente ideológica, foi sob o governo Dilma Rousseff em 2015 que o Brasil estabeleceu uma relação mais intensa com a OCDE – mantendo pragmaticamente, contudo, uma distância segura das consequências negativas que a liberalização plena exigida pela adesão acarretaria.

A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, encontra o secretário-geral Angel Gurria em novembro 2015. O Secretário-Geral apresentou a Pesquisa Econômica do Brasil entre outros relatórios da OCDE. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR

Como key partner, o Brasil já tem acesso a todos os órgãos da OCDE; pode aderir voluntariamente a instrumentos da OCDE; está integrado nos seus sistemas de informação e estatísticas; participa de revisões sobre setores específicos; além de ter sido convidado para todas as reuniões ministeriais da OCDE desde 1999. Nota-se assim que o país – enquanto nação ainda em desenvolvimento e profundamente desigual que é – já desfruta de uma posição privilegiada no relacionamento com a OCDE e que teria ganhos questionáveis sendo um membro pleno do grupo. É preciso debater a fundo o projeto de nação por trás da adesão a OCDE, bem como a quais interesses e ideologias ela está a serviço.

Se algum tipo de “valor simbólico” ou obtenção de “credibilidade internacional” resultar desta movimentação tectônica na PEB, será apenas pelo fato de que os investidores internacionais – e sobretudo aqueles do “Ocidente” – comemorarão que o Brasil terá, enfim, aberto mão da sua autonomia política sobre comércio, investimentos e sobre ao menos outras 21 áreas de políticas públicas submetidas ao crivo da OCDE no processo de adesão de um membro pleno. O motor deste processo de subordinação pela adesão não é o Brasil entrando na OCDE, mas o seu contrário.

*Diego Azzi é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI e integrante do OPEB.