Forças Armadas e Política Externa no Governo Bolsonaro

Publicado em 11 de outubro de 2019

 
Flávio Rocha de Oliveira, Bruno Venâncio, Lucas Macchia, Pedro Versolato, Tarcizio Rodrigo de S. Melo
Texto apresentado em workshop

Durante o Governo Michel Temer, os militares retornam explicitamente para o centro dos eventos políticos no Brasil após o Golpe de 2016. No ano de 2018, o então presidente decreta a intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, cujo comando institucional passa para as mãos dos generais. Ainda nesse ano, o General Luna e Silva é indicado como Ministro da Defesa.

A chefia do ministério por Luna e Silva sinaliza uma mudança no caráter político da pasta da Defesa: pela primeira vez desde sua criação, um oficial general assumiu esse ministério. Uma das lógicas desse tipo de instituição é sinalizar que há um controle civil sobre as Forças Armadas. Considerando-se que a intervenção no Rio de Janeiro e o controle do ministério por parte dos militares  ocorreu praticamente ao mesmo tempo, podemos supor que foi um preço cobrado pelos generais para apoiar as medidas do governo Temer.

Ainda em 2018, o alto comando embarca na candidatura de Jair Bolsonaro. Quando assume o governo, o novo presidente indica outro general, Fernando Azevedo e Silva, para a pasta da Defesa. Novamente, podemos inferir que faz parte do preço político cobrado pelo alto oficialato para integrar e apoiar o governo.

Em termos de política externa, os militares tem um conjunto de interesses relacionados com o exercício da sua função básica: segurança e defesa contra ameaças externas. Pode-se acrescentar uma outra característica própria das Forças Armadas brasileiras, e que sempre complica qualquer análise: um recorrente histórico de intervenções políticas diretas e indiretas no governo do Estado Nacional Brasileiro, seja através de golpes ou se colocando como o fiel da balança em relação a governos eleitos. Desses interesses, brotam um conjunto de visões acerca da política externa. Eles podem ser elencados da seguinte maneira: economia, estabilidade regional, missões de paz, modernização de equipamentos e relacionamento com os Estados Unidos.

Nesse trabalho, buscou-se apresentar um panorama conjunto das três forças, de forma a torná-lo um ponto de partida para futuros estudos envolvendo as relações entre o poder militar e a política externa durante o governo Bolsonaro. Certamente existem diferenças de visões e necessidades entre Força Aérea, Marinha e Exército, tanto em termos “técnicos” como em relação a participação direta no governo Bolsonaro, mas elas não serão exploradas nesse texto. Parte-se do pressuposto, corroborado por uma observação da conjuntura atual, de que o Exército é o principal protagonista desse processo.

Há uma convenção quanto a necessidade de se estabelecer uma diferenciação entre militares da ativa e da reserva. Neste trabalho, parte-se da ideia de que essa separação deve ser superada tendo em vista que há pouca ou quase nenhuma correção por parte dos militares da ativa sobre aquilo que a reserva fala. Outro indício de que há uma disciplina que enfatiza um clima de consenso, é que os três grupos de militares que convivem hoje (ativa, reserva e participantes do governo) não se contradizem nem demonstram terem visões opostas sobre quaisquer temas, e em especial sobre aqueles que serão discutidos no presente texto.

ECONOMIA

Militares são treinados a controlar a circulação da informação. Os que ocupam cargos na administração Bolsonaro não fogem a essa regra quando tratam de temas econômicos. Em geral, quando se manifestam defendem a adoção das medidas liberais capitaneadas pelo governo.

Quanto às privatizações, elas são talvez o traço mais coeso da administração federal, e desde a pré-campanha o general Mourão já se mostrava favorável à venda da Embraer. Em entrevista à Globonews, Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Jr., Ministro das Minas e Energias e Almirante-de-Esquadra, declarou que não sente que a soberania nacional será afetada pela venda de estatais. O essencial, para ele, é que o Estado consiga manter ingerência sobre os setores através das agências reguladoras, o que, curiosamente,  não combina com a linha de atuação setorial defendida pelo governo. Uma semana depois, porém, ao anunciar o plano de privatização da Eletrobrás, ficou-se acordado que existirá um número máximo de ações que grupos estrangeiros poderão adquirir e que a União não irá se desfazer de todo seu estoque acionário, só deixará de ser majoritária, o que pode ser visto como a modelagem que o ministério deseja para o setor: privatização das empresas públicas, critério rígido para a aquisição de participação por atores estrangeiros e agências reguladoras fortes. .O tom privatista está de acordo com a orientação econômica governista, porém , a preocupação do ministro com a regulação que o Estado pode ter sobre o setor se contrapõe ao clima anti-regulação que o governo tenta colocar em prática em várias áreas, como a agricultura.

Tarcísio Freitas, Ministro da Infraestrutura e oriundo do Exército, anunciou, na Globonews, o que ele chamou de “maior programa de concessão de infraestrutura do mundo” com a oferta, entre outros, de 41 aeroportos de uma única vez, com presença extensiva do capital internacional, citando o fundo OPIC (Overseas Private Investment Corporation). O OPIC é um fundo que visa investir capital privado norte-americano em projetos de infraestrutura em economias emergentes com parceiros políticos estratégicos para os EUA, e conta com um portfólio de 60 bilhões de dólares em obras, onde  US$ 1 bilhão destes encontra-se aplicado no Brasil. Seu foco é o apoio a fundos de investimento, seguros e financiamento de dividas com aporte máximo de 350 milhões por projeto. O mais significativo no Brasil, hoje, é a construção de uma estrutura para transporte de óleo no porto do Rio de Janeiro.  Indagado sobre o espaço que grandes construtoras nacionais implicadas em escândalos de corrupção teriam nesse ambicioso projeto, ele defendeu o uso das mesmas como PSC (prestadoras de serviço de construção) para os operadores de infraestrutura que vençam os leilões. As PSC’s são empresas autorizadas a construírem as obras, mas que estão impossibilitadas de concorrer em licitações públicas, como por exemplo a Odebrecht.  Não existe nenhuma preocupação em entregar as obras de infra-estrutura a grupos externos em detrimento de empresas brasileiras.

O General Heleno, do Gabinete de Segurança Insitucional, celebrou a minuta do acordo entre Mercosul  e a UE como um “renascer econômico” para o país.  É importante ressaltar que o GSI tem como uma de suas funções exercer a posição de autoridade nacional de segurança em tratados e acordos internacionais que envolvam troca de informação sigilosa, o que explica a presença constante de Heleno nas tratativas publicas internacionais do presidente.

ESTABILIDADE REGIONAL

A visão de política externa dos militares para a América do Sul tem como preocupação principal a manutenção da estabilidade regional. Desde o início do governo Bolsonaro, os militares se posicionaram algumas vezes em relação a posturas públicas do presidente e do chanceler Ernesto Araújo. Por exemplo, no dia 30 de abril de 2019, Bolsonaro anunciou que a possibilidade de uma intervenção militar na Venezuela era “próxima” de zero, mas que não estava completamente descartada. O vice-presidente Mourão, por sua vez,  entra em cena articulando para manter o equilíbrio regional, dizendo que não havia possibilidade de intervenção militar e que o problema com o presidente Maduro deveria ser resolvido pelos próprios venezuelanos. Ele também foi enfático ao dizer que em nenhuma hipótese o Brasil permitiria o uso do seu território por parte dos EUA para uma ação militar contra a Venezuela. Também é simbólico do interesse dos militares, e especialmente do Exército, na situação venezuelana o fato de que Mourão termina chefiando a delegação brasileira que foi a Bogotá, na reunião do chamado Grupo de Lima que discutiu a situação do país vizinho.

Vale lembrar que o Ministério da Defesa, especialmente a partir do segundo mandato do Governo Lula, foi estruturado para exercer um papel na política externa brasileira: trabalhar para a integração regional sul-americana e, ao mesmo tempo, colaborar para a criação de uma indústria de defesa integrada num projeto nacional de desenvolvimento econômico brasileiro. Nesse sentido, no próprio site do MD constam declarações enfatizando a importância da estabilidade regional e a participação articulada dos militares, juntamente com os diplomatas, em fóruns multilaterais, como o Conselho de Defesa Sul-Americano (que foi, originalmente, criado junto com a UNASUL, e que o governo Bolsonaro ajuda a sepultar atualmente).

MISSÕES DE PAZ

O Brasil tem um histórico relevante de atuação internacional em Missões de Paz, promovidas pela ONU ou pela OEA. O país passou a exercer cada vez maior protagonismo no que tange a essas missões, saltando da participação de três, nos anos 2000, para dez em 2015, de um total de 16 missões promovidas pelas Nações Unidas no período.

Vale destacar a tentativa de criação de uma zona de influência geográfica e/ou cultural com o emprego de tais meios, visto que as Missões de Paz que mais contaram com a participação brasileira foram aquelas geograficamente próximas – com destaque para o Haiti, que recebeu sozinho ⅔ de toda força militar e policial brasileira cedida a ONU – ou com laços histórico-culturais, caso da atuação em países de colonização portuguesa como Angola, Moçambique e Timor Leste. Por último, as missões de paz com atuação do Brasil também serviram de instrumento para maior integração regional e cooperação, principalmente com países ligados ao Mercosul. Desde 1995 existe uma relação de atuação conjunta, em que brasileiros compuseram o contingente argentino enviado à missão de paz no Chipre, assim como argentinos fizeram o mesmo nas missões com brasileiros em Angola e no Timor Leste. Na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH), militares peruanos, paraguaios e bolivianos atuaram no contingente nacional brasileiro.

Desde o golpe de 2016, a atuação internacional brasileira nas missões de paz sofreu uma retração devido aos crescentes problemas políticos e financeiros internos. Com o encerramento da Missão de Paz no Haiti, em 2017, a de maior participação brasileira, o Secretariado Geral das Nações Unidas convidou o Brasil para integrar a missão de paz na República Centro-Africana (MINUSCA). O então presidente, Michel Temer, recusou, argumentando sobre as dificuldades orçamentárias e de efetivos gerados pela intervenção federal no Rio de Janeiro que deslocou cerca de 30 mil militares do Comando Militar Leste e custou R$ 1,2 bilhões aos cofres públicos, além dos R$ 190 milhões transferidos para apoiar as operações humanitárias em Roraima por conta do fluxo migratório de venezuelanos. No meio militar,  a participação na MINUSCA também gerou cisões entre aqueles que gostariam de abraçar essa oportunidade, e aqueles preocupados em lidar primeiro com os problemas internos do país.

No atual governo, pelo menos pelo que foi visto nesses primeiros seis meses, pode-se esperar a continuidade dessa inflexão brasileira no protagonismo em Missões de Paz, principalmente pela retração da política externa e de defesa do governo Bolsonaro que: (a) não visa priorizar zonas de influência no continente e nem com os países africanos membros da CPLP, que costumeiramente foram o foco das principais atuações brasileiras; (b) não tem como objetivo uma integração política mais intensa com o Mercosul ou qualquer outro fórum/organização regional restrita ao sul, a qual era possível por meio das Missões de Paz; (c) pouco valoriza organismos multilaterais como as Nações Unidas; (d) aplica restrições orçamentárias que inviabilizam a sustentação de tais missões e (e) no que tange a OEA, não pretende fazer um contrapeso aos estadunidenses. Por outro lado, não se pode descartar a possibilidade de o Brasil, por seu alinhamento atual aos EUA, poder participar de Missões de Paz de interesse desse país no esquema habitual de fornecer efetivos, enquanto os mesmos forneceriam aportes financeiros para tais missões. Também não  se pode descartar a possibilidade de uma missão da OEA em território venezuelano. As Forças Armadas percebem esse movimento, mas, no presente momento, seus interesses em termos de participação estão reféns da falta de uma orientação de política externa mais coesa por parte do governo.

MODERNIZAÇÃO DE EQUIPAMENTOS

No segundo governo Lula, houve o estabelecimento de uma política declatória de defesa. Estava dada a possibilidade de que o país buscaria o status de potência militar média, que se alinharia com as pretensões brasileiras em se tornar membro permanente do CSONU e ter alguma capacidade de projeção de poder, tal qual os países centrais. Diversos programas complexos foram iniciados. Entretanto, o orçamento de defesa sofreu cortes contínuos por causa da deterioração da economia. Como resultado, para as Forças Armadas o objetivo mudou:  da ambição em  ser uma potência militar, passou a ser a busca por manter algum Poder Militar.

Com a eleição de Bolsonaro e seu discurso de exaltação nacional, havia uma grande expectativa por parte das Forças Armadas no que tange a área de defesa. A percepção era de que o MD cresceria em importância e no orçamento, e caso persistissem a dificuldades econômicas do país, pelo menos o setor militar não sofreria o que viam como pesados e irresponsáveis cortes, impactando diretamente nos processos de aquisição e modernização de equipamentos das forças. Nada mais distante da realidade:  Bolsonaro continuou uma política de descaso com a defesa apesar de seu discurso pró-FAs, e já no quinto mês do novo governo a pasta de sofreu o contingenciamento de 44% de seu orçamento discricionário –  R$ 5,8 bilhões. 

Investimentos vultosos em equipamentos, com quais as FAs já se comprometeram, foram prejudicados. Consequentemente, os investimentos futuros também foram impactados. O número de programas é demasiado grande, e será feita uma exposição sintética deles. Começando pela Marinha, o anúncio  do vencedor da concorrência que visa construir 4 Navios Classe Tamandaré (NCT), no valor de U$ 1,6 bilhões – o  maior contrato de compra de material de defesa pelo Brasil desde o anúncio da aquisição dos caças Gripen-NG em 2013 – ocorreu dois meses antes do anúncio do contingenciamento que suspendeu o aporte inicial de R$ 2,5 bilhões. Aliado a isso a MB tem tido dificuldades para investir na renovação de outros meios navais – muitos estão próximos do limite de sua vida útil – e se preocupa com a continuidade de rapasses para o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB) – a prioridade da força. O financiamento é feito também através de bancos estrangeiros e o principal parceiro estratégico do  programa é a França, que junto da Alemanha (país parceiro na Classe Tamandaré), compõe o rol de Estados com problemas diplomáticos provocados pelo governo Bolsonaro, que não parece levar em consideração os interesses da marinha nesses casos.

Quanto ao Exército Brasileiro (EB) foi recentemente decidida a redução do escopo de seus projetos estratégicos – devido aos cortes de investimento e sucessivos atrasos – para não prolongar ainda mais os programas ao ponto de ficarem defasados tecnologicamente. Isso afeta o desenvolvimento da nova família de blindados Guarani em parceria com a Iveco do Brasil. Já o Sistema de Monitoramento de Fronteiras (SISFRON) orçado em 2012 em R$ 12 bilhões, recebeu até o momento pouco mais de R$  1 bilhão. O programa Astros 2020 – um sistema de lançadores múltiplos de foguetes – sofrerá um “pequeno” atraso de 3 anos.

A Força Aérea Brasileira também reduziu drasticamente o alcance de modernização de suas aeronaves nos últimos anos, concentrando recursos em seus novos vetores, que entraram em serviço no governo Bolsonaro: os cargueiros KC-390 e os caças Gripen. Quanto aos caças, esses demandam armas que os caracterizam como “caçadores”. Tais armas são caras. Existe um míssil de curto alcance sendo desenvolvido em parceira com a África do Sul, o Darter. Também foi noticiado, sem confirmação oficial, que o Brasil pode comprar os mísseis europeus Meteor no valor de € 200 milhões, e outros armamentos também deverão ser importados. Há duvidas se o governo brasileiro irá arcar com esses valores no presente momento.

Nesses primeiros seis meses de governo, algumas coisas vão ficando evidentes para os militares. Primeiro, a continuidade do baixo investimento por parte do governo. Todavia, há uma certa mudança no discurso oficial das forças com relação aos contingenciamento, evidenciado a diferença entre as FA se entenderem como parte do Estado e se entenderem como parte do Estado e do governo. Em 2017, ao comentar o contingenciamento do governo Temer, o General Villas-Bôas assumiu uma postura reivindicatória de quem precisa dos recursos. Em 2019, houve um alinhamento ao discurso do governo por parte dos comandantes, justificando a necessidade dos cortes. Enquanto há um estremecimento com Alemanha e França, há uma aproximação no âmbito da defesa com os EUA, tendo o Brasil sido alçado por parte dos americanos ao status de Major non-NATO Ally.

O RELACIONAMENTO COM OS EUA

Em relação aos Estados Unidos, a visão das Forças Armadas brasileiras pode ser sintetizada da seguinte forma: 

A) Pragmatismo. Os militares brasileiros reconhecem a necessidade de um bom relacionamento com os Estados Unidos dada a sua centralidade nos cenários hemisférico e global. Considerando-se que o governo Bolsonaro repete um problema pervasivo nas elites dirigentes brasileiras – a falta de um projeto de país que conceba um papel de defesa externa para o estamento militar as FAs terminam atuando como um ator relativamente autônomo que estabelece uma missão e uma visão orientadora de sua própria atuação em temas de defesa e política externa.

Ao analisar o cenário internacional e, especialmente, o regional, o alto comando das FAs percebe que uma aproximação pragmática com os EUA é do seu interesse, pois pode significar o acesso a treinamentos, doutrinas e certas tecnologias (temos o recebimento de material bélico usado estadunidense, a visita recíproca de oficiais generais entre Brasília e Washington, a participação do General Alcides V. Faria Jr como integrante do Comando Sul, o acordo de Alcântara). Ao mesmo tempo, também podemos supor que essa aproximação tem um componente político: exercer alguma influência nos debates e decisões dos Estados Unidos em relação a problemas diplomáticos de interesse brasileiro, como a Venezuela, ou, pelo menos, acompanhar in loco discussões e decisões político-militares que interessam às Forças Armadas. Todavia, percebe-se, também, a assimetria de poder entre Washington e Brasília.

B) A percepção de assimetria de poder entre EUA e Brasil é real. Por exemplo, ela diz respeito ao desenvolvimento econômico dos dois países – tecnologia e produtos industriais como o centro do poderio econômico norte-americano – e dependência brasileira da exportação de Some-se a isso o fato de que o grande comprador dos produtos primários brasileiros, a China, está em guerra comercial com os EUA, o que pode aumentar a nossa vulnerabilidade em relação aos estadunidenses.

Em termos bélicos, a percepção é ainda mais aguda. Na comparação, são menos poderosos militarmente do que seus congêneres norte-americanos. E a questão não é só de quantidade (orçamento, tropas), mas principalmente da qualidade de equipamento. A título de exemplo, podemos pensar em forças armadas de países europeus que são sensivelmente menores do que a dos EUA, mas que são detentoras de tecnologias que rivalizam com aquelas produzidas pelo complexo industrial-militar americano.

Essa percepção de assimetria ajuda a entender porque os militares buscam uma cooperação atual com os EUA, mas com cautela política. A percepção é histórica, e tem sido agravada nos últimos dois anos, com a sensível perda de protagonismo brasileiro no cenário internacional.

C) Soberania Territorial . A cautela, derivada da assimetria, está presente na percepção que eles têm sobre a soberania territorial brasileira. Vale a pena mencionar o horizonte geográfico das preocupações territoriais das Forças Armadas, em especial do Exército: a Amazônia. O artigo do cientista político Stephen Walt provocou uma comoção em diversos setores da sociedade. Nas FAs o artigo pode ter servido para acender o alerta na visão que vinha sendo construída desde o final da Guerra Fria: interesses estrangeiros mirando a Amazônia brasileira, e escudados pelos argumentos da defesa do meio-ambiente e da integridade cultural e física dos povos indígenas. Esses interesses seriam executados por ONGs ambientais internacionais, apoiadas explícita ou veladamente por Estados do mundo desenvolvido.

Nesse combinado (assimetria, pragmatismo e cautela), a visão dos EUA também resulta numa postura do estamento militar que não deseja, em nenhuma hipótese, a existência de uma base estadunidense na região amazônica, em visão diametralmente oposta ao que defenderam o chanceler Ernesto Araújo e o presidente Bolsonaro. Os militares brasileiros também não estão interessados em que o território amazônico seja um ponto de entrada de ajuda militar aos opositores do governo Maduro. E pode-se especular que as FAs estão cientes de que os vazios demográficos e atuação da economia ilícita (drogas, armas, etc) podem significar um argumento a mais para que os EUA se instalem no território amazônico do mesmo modo que já fizeram no auge do conflito interno colombiano.

CONCLUSÃO

Detentores de uma visão de mundo conservadora, os militares apoiaram a eleição do ex-capitão  Bolsonaro não por considerá-lo um dos seus, dado o seu histórico no Exército e no parlamento, mas porque vislumbraram uma possibilidade de voltar a atuar diretamente no governo brasileiro. Além das óbvias considerações corporativas – soldos, previdência, os militares possuem um conjunto de interesses em termos de política externa, que terminam alimentando a sua visão de mundo em relação as relações exteriores brasileiras.

Os militares vêem reforçada a sua postura tradicional de ter um alto grau de autonomia em matérias de seu interesse, e especialmente em questões de defesa. Ao mesmo tempo, são parte de um governo que funciona de um modo que eles não conseguem entender e controlar/influenciar completamente, e que carece de uma concepção mais ampla de política exterior.

Todavia, emergem problemas do funcionamento do governo Bolsonaro que colocam as Forças Armadas em situação contraditória, mesmo considerando-se o caráter conservador da instituição – ou, por vezes, simplesmente reacionário de alguns de seus membros. Em relação aos EUA, a posição de alinhamento automático projeta um caráter de submissão que colide com a visão do Exército em relação ao território amazônico. Do ponto de vista da economia, a absoluta ausência da proteção de empresas estratégicas, como a Embraer, entra em contradição com um discurso que defende a autonomia tecnológica no setor de defesa: as FAs sabem que os países avançados do bloco capitalista defendem suas empresas, inclusive com participação do Estado. No setor econômico, pode-se indagar até que ponto as Forças Armadas, enquanto instituição, mantém a expectativa de que são parte do planejamento das políticas de governo, ou se devem ser vistas como meras operadoras e garantidoras de projetos de privatizações e concessões que interessam ao mercado financeiro, e em especial a investidores internacionais.

O maior paradoxo, contudo, talvez esteja na própria noção de Estado e de Política Externa. Quando se observa a história recente, fica evidente que o momento em que as FAs foram realmente integradas num projeto de país e que tinha, como uma das suas razões, o aumento do protagonismo externo do Brasil começou justamente durante um governo de centro-esquerda. Ainda que imperfeitamente, foi durante as administrações petistas que eles tiveram a esperança de conseguir um poder militar ancorado no desenvolvimento econômico brasileiro.

Ao fim e ao cabo, optaram por apoiar um processo de impeachment que provocou um descarrilamento no país. O resultado foi um processo de estagnação econômica e desestruturação política que refletiu intensamente sobre os seus orçamentos e suas aspirações. A tentativa de retomar o protagonismo atuando diretamente no novo governo esbarra na falta de um mínimo projeto de país pela coalizão de extrema-direita que assumiu o poder. Fica difícil ver como os interesses em termos de política externa das Forças Armadas podem ser atendidos nos próximos anos sob a presidência Bolsonaro. É de se perguntar se essa situação de fraqueza crônica não terá um impacto na organização e funcionamento do setor militar, tendo como resultado a sua transformação numa força meramente auxiliar de interesses externos…