Política Externa da Saúde: como o Brasil lida com as patentes?

16 de novembro de 2021

Por Gustavo Rocha, Felipe Lelli e Kayque Ferraz
(Foto: Conectas)

Num contexto no qual o número de mortos por Covid-19 no Brasil já ultrapassou 600 mil óbitos (out/21), o projeto de lei para quebra de patentes parece ter justificativa e relevância óbvias, ainda mais quando considera-se o histórico de protagonismo externo do Estado brasileiro. Contudo, esse não parece ser o entendimento do presidente da república.

Breve histórico da PEB

A chamada política externa brasileira para a saúde tem sido alvo de constantes ataques no governo Bolsonaro, especialmente a partir do surgimento da pandemia de coronavírus, que demandou esforços mundiais em matéria de governança global em saúde.

Apesar da postura negacionista do atual governo, que desprestigia o país internacionalmente, o Brasil já foi visto como exemplo de nação emergente comprometida com os interesses do Sul Global no âmbito das negociações na Organização Mundial do Comércio (OMC). Atuou conjuntamente com a Índia e uma coalizão de países em desenvolvimento na formulação da Declaração de Doha, que eximia medicamentos essenciais das regras de propriedade intelectual da OMC previstas no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPs) no ano de 2001, após ser acusado pelos Estados Unidos de violar o TRIPs.

Nesse episódio, o Brasil se mostrou crítico ao Acordo TRIPs e defendeu sua flexibilização de modo a assegurar aos países em desenvolvimento o acesso à produção local de medicamentos essenciais, como os medicamentos antirretrovirais utilizados no tratamento de infectados com o vírus HIV/AIDS, que antes eram produzidos somente nos países centrais a preços exorbitantes. A postura demandante do Brasil no período garantiu a produção de medicamentos genéricos que hoje são distribuídos, de forma universal, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), servindo de exemplo para o resto do mundo. Em 2003, o presidente Lula promulgou o Decreto nº 4.830, que permite a importação de medicamentos genéricos de produtos licenciados compulsoriamente sempre que a produção doméstica for inviável.

No âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), o país também atuou para flexibilizar as regras previstas pelo Acordo TRIPs, de modo a facilitar o licenciamento compulsório de patentes em casos de necessidade – tecnicamente também chamado de “waiver” e conhecido como “quebra de patente”. Nesse sentido, o Brasil apoiou as Resoluções nº 56.27 e nº 57.14 da organização. Em 2007, o Brasil emitiu o licenciamento compulsório do antirretroviral Efavirenz.

Tal atuação internacional, conjugada com a existência do SUS, garantiu ao país papel de líder na governança mundial em matéria de saúde, representando interesses dos países do Sul Global. Nesse sentido, o Brasil, adotando forte discurso de cooperação Sul-Sul, defendeu a produção de medicamentos genéricos, sendo a instalação de uma fábrica de medicamentos 100% pública em Moçambique, processo conduzido especialmente pela FIOCRUZ a partir de 2008, um marco da política externa brasileira para a saúde em um país fortemente atingido pela AIDS. Tal iniciativa se insere no fortalecimento do diálogo com os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Em 2009, Brasil e Índia recorreram ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC contra apreensões de medicamentos genéricos feitas pela União Européia (OMC, 2009). Essa parceria Brasil-Índia se mostrou bastante vantajosa para ambos os países não só na crítica ao modelo de direito de patentes defendido pelos países centrais, bem como no questionamento das práticas comerciais das nações desenvolvidas como um todo no âmbito da OMC (HOPEWELL, 2015). Fora da OMC, os governos Lula e Dilma demonstraram crescente engajamento em temas ligados à saúde em outras esferas, como a participação na constituição do Conselho Sul-Americano de Saúde (UNASUL-Saúde) e o fortalecimento do diálogo sobre saúde no âmbito dos BRICS.

A política externa brasileira para a saúde no fim dos anos 1990 e nos anos 2000 constituiu-se de uma política ativa, demandante e crítica do sistema de patentes defendido pelos países centrais, entendendo a saúde como direito humano e, com isso, defendendo o acesso a medicamentos aos países em desenvolvimento.

As patentes e o Brasil de 2021

Sobre a mesa está a discussão entre o Legislativo Federal e a Presidência acerca do Projeto de Lei (PL) 12/2021. Proposto pelo senador Paulo Paim (PT-RS), o PL objetiva instituir a quebra temporária de patentes de vacinas e medicamentos para enfrentamento de emergências. Num contexto no qual o número de mortos por Covid-19 no Brasil já ultrapassou 600 mil óbitos (out/21), a proposta parece ter justificativa e relevância óbvias, ainda mais quando considera-se o histórico de protagonismo externo do Estado brasileiro em prol da quebra de patentes. Contudo, esse não parece ser o entendimento do presidente da república.

O PL altera parte da Lei de Propriedade Industrial para estabelecer que o licenciamento compulsório (denominação técnica para quebra de patente) poderá ocorrer nos casos de declaração de emergência nacional ou internacional ou de interesse público, ou de reconhecimento, pelo Congresso Nacional, de estado de calamidade pública de âmbito nacional. Isso significa que em uma situação de emergência de saúde, tal qual a pandemia da Covid-19, tanto nacional, quanto internacional, o governo brasileiro poderá conceder uma licença temporária ou exclusiva para a exploração de patentes sem exonerar o seu titular (mantém-se uma remuneração ao titular de 1,5% sobre o preço líquido de venda do produto).

O PL seguiu os trâmites internos das duas casas legislativas e conseguiu ser aprovado. Após debates e alterações, senadores e deputados concordaram que a quebra de patentes serve para “produzir medicamentos que salvam vidas”, como disse o senador Eduardo Braga (MDB-AM) (AGÊNCIA SENADO), e que o Brasil terá uma das mais “avançadas leis sobre licença compulsória de patentes”, como afirmou o deputado Aécio Neves (PSDB-MG) (AGÊNCIA CÂMARA, 2021).

Ao seguir para sanção da Presidência da República, contudo, Bolsonaro vetou alguns trechos. Especificamente, “por motivos de interesse público”, vetou os dispositivos que obrigavam ao proprietário da patente a transferir a tecnologia do imunizante e a fornecer os insumos usados na sua fabricação. Ora, esse ponto é um tópico central da quebra de patentes. A transferência de tecnologia é essencial para impulsionar o desenvolvimento do país em matéria de saúde e, é claro, para acelerar a saída de uma situação de calamidade pública. Em nota emitida pela Secretaria-geral, anunciou-se que “embora meritórias, essas medidas seriam de difícil implementação e poderiam criar insegurança jurídica no âmbito do comércio internacional” (BRASIL, 2021).  

A nota também registrou que “o licenciamento compulsório somente será determinado pelo Poder Público na hipótese excepcional de o titular da patente se recusar ou não conseguir atender à necessidade local.” (BRASIL, 2021). Isto é, a quebra da patente estaria condicionada à vontade ou condição do próprio titular e não à necessidade da população por aquela tecnologia diante da emergência pública. Ou seja, na prática, o “interesse público” não parece ser tão “público”.

E mais, o trecho “esse licenciamento compulsório não será aplicado, no momento atual, para o enfrentamento da pandemia do coronavírus, uma vez que as vacinas estão sendo devidamente fornecidas pelos parceiros internacionais” (BRASIL, 2021) coloca em xeque a possibilidade da Lei ser utilizada como impulso para saída da crise atual. O PL que nasceu para fortalecer a saúde pública brasileira na pandemia da Covid-19 pode nem trazer resultados concretos para este momento.

Para Felipe de Carvalho, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), “os vetos desequilibraram o projeto”, garantindo benefícios às empresas enquanto as isenta de responsabilidades. E, claro, evidencia uma proximidade de Bolsonaro ao discurso da indústria farmacêutica, o que não é algo novo. Apesar da atual flexibilização do posicionamento brasileiro, vale lembrar que o Brasil foi o único país em desenvolvimento a se posicionar de forma contrária à proposta liderada por Índia e África do Sul, na OMC em outubro de 2020, para a quebra das patentes das tecnologias de prevenção, contenção e tratamento da Covid-19. Por fim, sobre o PL, o Congresso Nacional ainda pode derrubar o veto do presidente. 

As tratativas na OMC e as expectativas da 12.ª  Reunião Ministerial 

Em meados de outubro (2021), mais uma reunião do conselho da OMC terminou frustrada e sem um consenso em relação à chamada “waiver” — termo técnico para se referir à quebra das patentes. Mais de cem países já se posicionaram a favor de alguma forma de facilitar a produção em massa de vacinas (entre eles, até os Estados Unidos), mas as tratativas continuam sendo interrompidas por alguns países desenvolvidos — principalmente o Reino Unido e a Alemanha. A expectativa era de se chegar a uma convergência antes da 12ª Conferência Ministerial da OMC, que ocorrerá em Genebra no final de novembro.

A OMC funciona através de consenso, portanto todos os 164 Estados-membros devem se posicionar favoravelmente ao acordo para que ele seja ratificado. A África do Sul e a Índia lideram o bloco de países favoráveis à renúncia temporária de direitos em questão e ajudaram a avançar a discussão do tema ao longo das dez últimas reuniões de membros da OMC, realizadas desde o final de 2020. As expectativas agora são positivas após países como Brasil, Austrália, Nova Zelândia e Canadá, antes contrários, demonstrarem flexibilidade nas negociações. O mapa a seguir ajuda a visualizar melhor onde se posiciona cada país: (Atualizado com dados de outubro de 2021)

Posição dos países sobre o waiver de patentes de vacinas de COVID-19 até outubro de 2021 — Adaptado de MSF.

As taxas de vacinação contra Covid são em média 30 vezes mais altas nos países mais ricos (principalmente nos europeus) do que nos países pobres. Muitos países desenvolvidos estão agora considerando a possibilidade de lançar terceiras doses de vacinas, enquanto milhões de pessoas no mundo ainda não tiveram acesso à primeira dose. Para efeito de comparação, cerca de 6 bilhões das 8,6 bilhões das doses pré-compradas por governos do mundo são de países de média ou alta renda. Ainda assim, um pequeno grupo de empresas farmacêuticas lideradas pelos governos dos seus respectivos países continuam fazendo frente à quebra de patentes.

Surpreendentemente, em maio deste ano, os Estados Unidos, a China e a Rússia se dispuseram a favor de entrar nas negociações de quebra das patentes. O significado desse movimento não pode ser negado, já que os três juntos são os maiores produtores mundiais de produtos farmacêuticos e detentores de grande parte das patentes no setor. Os EUA por si só ostentam o maior e mais lucrativo mercado de saúde mundial, com auxílios governamentais para as indústrias, universidades e centros de pesquisa. Até o começo do ano, a ideia de que o governo americano se posicionaria contra a “big pharma” era, no mínimo, impensável. Se o gigante e protecionista EUA o fizeram, nada mais além da ganância firma os argumentos europeus.

Ainda assim, o presidente do conselho TRIPS e embaixador da Noruega na OMC, Dagfinn Sorli, admitiu que o órgão “ainda não está em condições de chegar a um acordo sobre uma conclusão concreta e positiva”, mas espera-se que o tema volte a ser debatido e se encontre uma solução na Reunião Ministerial do final do mês de novembro.

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