A incógnita na apuração das urnas feita pelos militares

29 de novembro de 2022

 

Por Flávio Rocha, Anna Bezerra, Diego Jatobá, Felipe Lelli, João de Oliveira, Julia Lamberti, Lais Surcin, Larissa Gradinar, Lucas Ayarroio, Roberto Silva, Tarcízio Melo e Vinícius Bueno (Foto: EBC/Agência Brasil) 

 

Mesmo com tom ambíguo do relatório, cenário mostra  estamento militar preparando-se para defender seus interesses junto ao novo governo

 

O Ministério da Defesa divulgou seu tão esperado relatório de fiscalização das urnas eletrônicas somente dia 9 de novembro, após apresentação ao Presidente Jair Bolsonaro (PL). Segundo a imprensa, o presidente ficou insatisfeito com os resultados e teria cobrado mais empenho dos militares. Jair Bolsonaro teria insistido na narrativa de fraude e manipulação de acordo com supostas fontes durante a eleição.

O relatório entregue foi bem ambíguo: não apontou fraudes em nenhuma das urnas verificadas, mas apresentou algumas ressalvas sobre o sistema de votação. Conforme o relatório, houve uma suposta falta de acesso aos dados e o sistema não estaria isento do perigo de infecção de um “código malicioso” que poderia alterar o funcionamento do equipamento. O TSE foi rápido na resposta e soltou uma nota afirmando que o documento do MD, em conformidade com outros relatórios emitidos por outras entidades fiscalizadoras, não havia apontado nenhuma fraude nas urnas e no processo eleitoral de 2022. Uma dessas entidades, o TCU, já havia  cobrado o relatório dos militares, segundo reportagem da Veja.

No dia 10 de novembro, o Ministério da Defesa voltou a a afirmar que o trabalho da equipe de técnicos militares “(…) embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade de existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”.

Os comandantes de Marinha, Exército e Aeronáutica procuraram agir com muita discrição durante o segundo turno. Porém, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva provocou uma reação por setores da extrema-direita brasileira que apoiam Jair Bolsonaro. Um dia depois do segundo turno, grupos bolsonaristas realizaram bloqueios de importantes rodovias brasileiras exigindo a invalidação das eleições e clamando por uma “intervenção federal”, um eufemismo usado para pedir a intervenção das Forças Armadas. Em matéria assinada por Alice Maciel e Clarissa Levy, da Agência Pública, foi constatado que empresários participaram ativamente de bloqueios e locaute, com um destaque para um notório membro pró-Bolsonaro, Luciano Hang. 

O movimento de bloqueio refluiu, e grupos de extrema-direita rapidamente transferiram as manifestações para a frente dos quartéis do exército brasileiro. O alto comando do exército assistiu impassível à propagação dessas manifestações. Nos quartéis, os comandantes locais limitaram-se a administrar o entorno de suas instalações de modo a manter a rotina de trabalho relativamente normal. Em nenhum momento fizeram menção de remover os manifestantes.

No dia 11 de novembro, em nota conjunta, os comandantes de Marinha, Exército e Força Aérea abandonaram a discrição e chamaram os atos desses grupos de “manifestações populares”. A nota, ainda, criticou indiretamente o poder judiciário.

Na penúltima semana de novembro, os movimentos continuaram em frente aos quartéis, e os militares não demonstraram nenhuma ação de apoio prático às demandas dos manifestantes de extrema-direita. Apesar de ecoarem parte do discurso de Jair Bolsonaro, observa-se que as Forças Armadas não ensejam nenhuma ação institucional de contestação do resultado eleitoral. Mesmo com o tom ambíguo do relatório de verificação das urnas, o que vai se desenhando é um cenário no qual o estamento militar prepara-se para defender seus interesses junto ao novo governo.

O que esperar da relação civil-militar durante um eventual governo “Lula 3”?

Ainda em campanha, Luiz Inácio Lula da Silva destacou que pretende indicar um civil para o cargo de Ministro da Defesa, rever o decreto do Presidente Bolsonaro e limitar o tempo de ocupação de um cargo de natureza civil por um militar da ativa, sob “pena de ir para a reserva caso permaneça na função”. O presidente eleito difundiu a intenção de “despolitizar” as Forças Armadas e remover os quase 8 mil militares que ocupam cargos comissionados no governo Bolsonaro.

Apesar de propor essas mudanças no âmbito militar, o entorno do presidente eleito trata com cautela assuntos relacionados às Forças Armadas, e, aparentemente, não tem o intuito de promover alterações em temas considerados sensíveis pelos militares. Nesse sentido, pretende “manter a harmonia com as Forças Armadas”. De acordo com oficiais-generais da ativa e da reserva ouvidos pela Folha, há o temor entre os militares de que Luiz Inácio Lula da Silva queira promover alterações referentes a regras de aposentadoria, currículo de formação dos militares e critérios de promoções de oficiais.

“Quaisquer discussões mais profundas, serão realizadas no âmbito da atualização da Estratégia Nacional de Defesa em 2024”. “Aliados do ex-Presidente com conexões com as Forças Armadas avaliam que uma das principais medidas será recuperar a capacidade de investimento da defesa, priorizando o aumento do investimento em projetos como o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), o KC 390 e a aceleração da entrega dos caças Gripen”.

Diante das falas dos aliados de Lula, a relação civil-militar continuará difícil, sem tratar de temas importantes para estabelecer um verdadeiro controle civil sobre as Forças Armadas. Lembremos que os militares sempre exerceram o protagonismo político na vida nacional, estando fora do poder por curtos períodos. Por isso, a completa subordinação das Forças Armadas ao poder civil, inclusive nos assuntos referentes à aposentadoria, currículo de todas as escolas de formação, promoção de oficiais, orçamentos, justiça e elaboração de políticas, é necessária para o real estabelecimento e manutenção de um Estado Democrático de Direito no Brasil.

De modo a preparar a nova administração política do país, foi formada a equipe de transição sob a coordenação geral do vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB). Trinta grupos técnicos (Gts) foram formados em setores importantes como os de Relações Exteriores, Trabalho, Meio Ambiente, Justiça e Segurança Pública, e Economia. Praticamente todos os grupos já estão trabalhando e tem seus integrantes apontados, mas com uma importante exceção: a Defesa.

O atraso na divulgação do GT da Defesa é um indicativo importante da delicadeza das relações entre o presidente eleito e o estamento militar. No dia 23 de novembro, o ex-ministro Aloizio Mercadante anunciou que o GT da Defesa teria a participação de ex-comandantes das Forças Armadas. Segundo o jornal Folha de São Paulo, a equipe do presidente Lula estaria conversando com o ex-comandante do Exército, Edson Pujol, e com o ex-ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Ao mesmo tempo em que a imprensa divulga existirem conversas entre a equipe de transição e oficiais generais, especialmente do exército, não há nenhuma especulação acerca dos componentes civis do GT.

Um breve balanço sobre o desempenho dos militares nas eleições de 2022

O ano de 2022 foi marcado, depois de 2 de outubro, como o ano em que a maior quantidade de militares (policiais e membros das Forças Armadas) foi eleita no Brasil. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), um total de 87 candidatos ligados às questões de segurança foram eleitos, explicitando a gradativa onda de militarização da política que ocorre desde, pelo menos, 2018. Segundo Marina Basso Lacerda, em matéria do Le Monde Diplomatique Brasil, “(…) desde as eleições de 2018 (portanto, estimuladas por um ambiente belicista que se fortaleceu no período anterior, iniciado em 2015 com Cunha), cresceu expressivamente o número de profissionais de defesa e de segurança eleitos”.

Dos militares eleitos, 48 deles são deputados, sendo 38 das forças de segurança pública, um aumento de 35,7% em relação à eleição de 2018. De acordo com O Globo, o estado de São Paulo foi o responsável pela eleição de maior número de militares na Câmara dos Deputados, um total de 8. 

O Partido Liberal (PL), sigla de Jair Bolsonaro, foi o partido que mais se destacou em número de militares eleitos, sendo 18 deputados das forças de segurança pública, num total de 22. O União Brasil, o PP e o Republicanos também aparecem repetidamente na lista. 

Entre os nomes de destaque está o Delegado Ramagem (PL), eleito no Rio de Janeiro e atual diretor geral da ABIN, e a Delegada Adriana Accorsi (PT) de Goiás, pertencente à polícia civil e única representante da esquerda na chamada Bancada da Bala. Além disso, foi eleito pelo partido União Brasil no estado de Alagoas Alfredo Gaspar, ex-secretário de Segurança Pública, e Eduardo Bolsonaro (PL), que é escrivão da Polícia Federal, em São Paulo. No Senado Federal, o ex-vice-presidente Hamilton Mourão, do partido Republicanos, foi eleito no Rio Grande do Sul. 

A Assembleia Legislativa de São Paulo também teve um número significativo, apesar da queda apresentada em relação às eleições de 2018: “Um levantamento do Instituto Sou da Paz aponta que, nas eleições do último domingo (2), o estado elegeu sete parlamentares da segurança pública: dois policiais civis, três policiais militares, um policial federal e um membro das Forças Armadas.”

Já nos cargos de governador e vice, foram registradas candidaturas de 24 pessoas ligadas às questões de segurança, sendo que três delas foram eleitas no primeiro turno e o restante concorrerá ao segundo turno no dia 30 de outubro de 2022.

Política de Segurança e Defesa Externa 

No âmbito da Defesa, atualizações têm sido feitas nos programas das Forças Armadas. Destacam-se o programa de aquisição de Viaturas Blindadas de Combate de Cavalaria Média Sobre Rodas (VBC CAV – MSR) 8X8 do Exército e os cargueiros KC-390 da Força Aérea.

Sabe-se que o Exército pretende adquirir ao menos 98 VBCs, sem um valor final definido. No início do mês, foi divulgada a short list com os 3 modelos finalistas do certame. Segundo matéria da revista “Tecnologia e Defesa”, os escolhidos são:

•       Centauro II, com canhão 120 mm, do Consórcio Iveco-Oto Melara (CIO) – Itália;

•       LAV 700 AG, com canhão de 105 mm, da General Dynamics Land Systems (GDLS-C) – Canadá; e

•       ST1-BR, com canhão de 105 mm, da North Industries Group Corp (NORINCO) – China.

A previsão é que o vencedor seja anunciado até o fim de novembro. O franco favorito é o modelo italiano, uma vez que a Iveco já produz no Brasil os blindados Guarani 6×6 e Lince 4×4, e também o fato de a Leonardo ter oferecido a montagem no país da torre Hitfact MkII empregada pelo blindado. Mas surpreende a presença dos chineses no short list, algo muito incomum para um exército que praticamente só opera meios ocidentais e tem aprofundado substancialmente a cooperação com os EUA nos últimos anos. 

Com relação aos KC-390, o cargueiro brasileiro tem enfrentado uma situação curiosa. Enquanto acumulam-se notícias boas oriundas do exterior, em solo nacional destacam-se alguns reveses. A Embraer entregou o primeiro (de cinco) cargueiros para Portugal, tem avançado na produção do primeiro avião, de um total de dois, para os húngaros e firmou um memorando de cooperação com a indústria aeroespacial sul-coreana. No Brasil, todavia, a Força Aérea reduziu mais uma vez o número de aviões a serem adquiridos de 22 para 19, de uma encomenda que originalmente era de 28. Espera-se que após esse acordo não ocorram mais reduções, mas considerando que a intenção inicial da aeronáutica era reduzir para 15 KC-390, a desconfiança permanece. Considerando-se que são as compras governamentais que garantem o sucesso de um produto de ponta no setor de defesa, a atitude da FAB torna-se incompreensível e mostra que, em termos de planejamento para que o Brasil produza uma indústria de defesa robusta, os militares deixam muito a desejar.

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