China e a extração de lítio na Bolívia

8 de agosto de 2023

 

 Por Ana Júlia Martins Dias Felizardo, Michele Ferreira de Oliveira e Vitor Cristian Maciel Gomes (Imagem: Reprodução/YLB)

 

Em um contexto de transição energética, a China – segunda economia mundial – está apostando na produção de carros elétricos. A principal matéria-prima das baterias utilizadas neste tipo de veículo é o lítio, um metal encontrado em abundância na América do Sul, e cujo processo de extração traz efeitos socioambientais negativos já que parte das reservas descobertas em subsolo se encontram situadas em territórios indígenas. 

China e a Iniciativa do Cinturão e Rota 

A República Popular da China apresentou um crescimento e desenvolvimento expressivo entre o final do século XX e o início do XXI, quando se consolidou como uma economia forte no cenário internacional.

 

Em 2013 o país lançou a Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative (BRI), chamada também de Nova Rota da Seda, que já conta com 149 países dos cinco continentes, sendo 21 deles da América do Sul e Central.1 Nesta região, vem ganhando força como uma alternativa às estratégias propostas e/ou impostas pelos Estados Unidos nas últimas décadas.2

 

Segundo Xi Jinping, a iniciativa de cooperação regional e conectividade do comércio internacional é distinta àquela hegemônica,3 uma vez que visa o fortalecimento da multipolaridade e de um mundo horizontalizado, onde todos saem ganhando com os acordos e investimentos estabelecidos. Ainda segundo o presidente da China e atual secretário-geral do Partido Comunista Chinês (PCC), o BRI estaria orientado pela valorização da diversidade cultural e dos mecanismos da governança global.4 

 

O desenvolvimento sustentável aparece, em documentos e discursos oficiais, como um dos objetivos do governo chinês. A substituição do combustível fóssil por baterias elétricas faz parte deste movimento, daí a enorme demanda pela matéria-prima principal para essas baterias, o lítio. Espera-se que os acordos relacionados ao BRI firmados entre a China e os países sul-americanos facilitem a obtenção desse metal. Isto porque as maiores reservas do mundo estão situadas no chamado Triângulo do Lítio, formado principalmente pelos salares Uyuni, Jama e Atacama, que se situam respectivamente na Bolívia, Argentina e Chile (países já inseridos na iniciativa BRI). 

 

Triângulo do Lítio

Fonte: Diálogo Chino, 2019

O “Triângulo do Lítio”5 contempla 60% das reservas mundiais do chamado ouro branco, sendo a Bolívia responsável por 23,6%6 deste total. Acontece que estes desertos de sal são territórios originários de distintos grupos étnicos indígenas – como os Aymara, os Lickanantay e os Diaguita -, ques sofrem os impactos socioambientais da exploração do lítio, cuja coleta se dá através de “[…] um processo de evaporação que requer dois milhões de litros de água por tonelada de mineral extraído”7, procedimento contamina a água, impossibilitando seu consumo, causa desequilíbrio ambiental e prejudica o modo de vida das comunidades que vivem em torno das áreas de extração. 

No Chile, se destacam as atividades das mineradoras Sociedad Quimica y Minera de Chile (SQM) e a Albemarle no salar do Atacama.8 O governo prevê a nacionalização do metal9 a partir da criação da Empresa Nacional do Lítio que, inspirada no processo boliviano de nacionalização de 2006, será formalizada com o projeto de lei que será enviado ao congresso no segundo semestre de 2023.10 O presidente Gabriel Boric, entretanto, vem se deparando com a resistência de comunidades locais e organizações ecologistas e vinculadas aos direitos indígenas. Eles denunciam a contaminação das reservas de água e o impacto disso na fauna, na flora e nas práticas produtivas tradicionais. É o caso dos Lickanantay, também conhecidos como Atacameños, pertencente ao tronco linguístico Kunza11e compostos, hoje, por cerca de 21 mil pessoas.12

Na Argentina, um caso similar envolve a atuação da Sales de Jujuy S.A13 na província de Jujuy, que possui três grandes áreas para exploração do lítio: Olaroz, a zona do Salar de Jama e a Cuenca de Salinas Grandes e Laguna de Guayatavoc, sendo que nesta última vivem 33 comunidades indígenas.14

A Bolívia, por sua vez, possui o maior deserto de sal do mundo, o Salar de Uyuni, considerado sagrado para os Aymara e os Quechua e onde encontra-se a maior reserva de lítio do mundo.15 Como afirma o pesquisador Mario Orospe Hernández: “Em Uyuni, por exemplo, onde será construída uma das duas novas usinas de lítio, as comunidades indígenas reconhecem a presença desses seres sagrados. Até hoje, […] explicam a origem do salar com uma lenda tradicional: é o leite materno de seu Apu, um vulcão feminino chamado Tunupa.16 

Acordos entre China e Bolívia para a extração de lítio 

A questão do lítio esteve presente nos debates políticos recentes do país. O ex-presidente pelo Movimento al Socialismo/MAS Evo Morales, inclusive, afirmou ser o lítio o motivo do golpe que o destituiu da presidência em 2019. No mesmo sentido, Luis Arce – ex-ministro da economia do governo de Morales eleito pelo MAS em 2020 – alegou que “o golpe não foi contra os indígenas, mas pelo lítio. Foi desenhado por transnacionais interessadas em sua privatização e na do gás”.17

No decorrer do ano de 2021 a extração do lítio na Bolívia foi menor que em outros países produtores, ainda que o país possua a maior reserva. Entre outros fatores, isso ocorreu pela falta de infraestrutura e pelas impurezas encontradas no Salar, que aumentam significativamente o custo da extração18, em relação à Argentina e ao Chile. Pela alta altitude, as salinas bolivianas não são adequadas para o método tradicional de extração, o de evaporação.19 O aumento da demanda mundial pelo lítio, entretanto, retomou o interesse do atual governo boliviano para exploração do metal. 

Tendo assumido o governo após o período de instabilidade que se seguiu ao golpe, o governo Arce e a Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB) selecionaram seis empresas de origem estadunidense, chinesa e russa para as negociações sobre parcerias para extração do lítio.20

Em janeiro deste ano foi firmado um acordo entre a Yacimientos de Litio Boliviano e a empresa Contemporary Amperex Technology (CATL), que investiu cerca  de US$ 1,4 bilhão21 para exploração do lítio no Salar de Uyuni. Além destas, outras empresas chinesas também estão englobadas no consórcio, como o Grupo Xinjiang TBEA e a Fusion Enertech.22

Em junho de 2023, a empresa chinesa Citic Guoan, firmou um acordo com a estatal YLB para ter direito à exploração das reservas de lítio na Bolívia, com o objetivo de trazer celeridade para o processo de transição energética. A produção de energia mais limpa e sustentável foi o argumento do governo chinês ao se comprometer com a aceleração da produção de carbonato de lítio e introdução do recurso no mercado mundial. É válido mencionar que a empresa russa Uranium One Group também firmou parceria com a Citic Guoan. Juntas, investirão US$ 1,4 bilhão na construção de duas fábricas para a produção e exportação de 50 mil toneladas anuais de lítio a partir de 2025, no Salar de Pastos Grandes, no sudoeste da Bolívia.23

Os desafios trazidos pela exploração do lítio no Chile e na Argentina para as comunidades locais anunciam a inevitabilidade do conflito envolvendo as mineradoras, o atual governo de Arce e as comunidades originárias que vivem no Salar de Uyuni. Gonzalo Mondaca, pesquisador do Centro Boliviano de Documentação e Informação (Cedib), alerta para o fato da extração implicar em novas violações dos direitos indígenas e da natureza. Em março deste ano as diversas organizações da sociedade civil presentes em manifestação na região de Potosi reivindicaram uma legislação que garantisse melhores benefícios para as populações locais e maiores royalties pela extração do metal.24

A adoção de estratégias de regulação e fiscalização ambiental25 com base em alianças interinstitucionais, sociais e intergovernamentais, é crucial para que a exploração cause menos impactos. Também são necessários mecanismos de garantia da proteção dos ecossistemas e das práticas produtivas locais e a criação de projetos de participação e gestão coletiva.

Referências:

1Green Finance & Development Center. Countries of the Belt and Road Initiative (BRI). Fanhai International School of Finance (FISF) at Fudan University, Shanghai, China, 2021. Disponível em: <https://greenfdc.org/countries-of-the-belt-and-road-initiative-bri/?cookie-state-change=1683822512158>. Acesso em: 12 jul. 2023.

2Flint, C., Zhu, C. The geopolitics of connectivity, cooperation, and hegemonic competition: The Belt and Road Initiative, Geoforum, v. 99, p 95-101, 2019.

3Governo da República Popular da China. Action plan on the Belt and Road Initiative. China Government Official Website, 2015. Disponível em: <http://english.www.gov.cn/archive/publications/2015/03/30/content_281475080249035.htm>. Acesso em: 12 jul. 2023.

 4Governo da República Popular da China, 2015

5Baldez, Lucas. China, Bolívia e a exploração de lítio: salto de qualidade da presença latino-americana no mundo?. Sputnik, 2023. Disponível em: <https://sputniknewsbrasil.com.br/20230210/china-bolivia-e-a-exploracao-de-litio-salto-de-qualidade-da-presenca-latino-americana-no-mundo-27516242.html>. Acesso em: 24 jul. 2023. 

6Notícias da China. Lítio: Bolívia fecha acordo inédito com consórcio chinês para fabricar baterias elétricas. Brasil de Fato, 2023. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2023/02/04/litio-bolivia-fecha-acordo-com-consorcio-chines-liderado-por-fabricante-de-bateria-eletrica>. Acesso em: 1 ago. 2023.

7Roth, Sabrina. Comunidades indígenas recusam extração de lítio na Argentina. Diálogo Chino, 2019. Disponível em: <https://dialogochino.net/pt-br/industrias-extrativistas-pt-br/24733-comunidades-indigenas-recusam-extracao-de-litio-na-argentina/>. Acesso em: 24 jul. 2023.

8Prashad, Vijay;Silva, Taroa Zúñiga. O lítio do Chile beneficia os multimilionários mas esgota a terra e os povos. Brasil de Fato, 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/08/29/o-litio-do-chile-beneficia-osmultimilionarios-mas-esgota-a-terra-e-os-povos>. Acesso em: 24 jul. 2023.

9Carey, Nick. Plano do Chile de nacionalizar sua indústria de lítio pressiona montadoras. CNN, 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/economia/plano-do-chile-de-nacionalizar-sua-industria-de-litio-pressiona-montadoras/>. Acesso:  24 jul. 2023.

10ADN Chile.EN VIVO | Presidente Gabriel Boric da a conocer la Política Nacional del Litio. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sAPNo69rCco>. Acesso em: 6 ago. 2023.

11Memoria Chilena. Lincan Antai. Biblioteca Nacional do Chile, 2023. Disponível em: <http://www.memoriachilena.gob.cl/602/w3-article-722.html> Acesso em: 5 ago. 2023.

12Prashad; Silva, 2022

13Companhia de mineração argentina que conta com investimentos japoneses (Toyota), argentinos (JEMSE), e canadenses (Orocobre) (Roth, 2019).

14 Roth, 2019

15Wright, Lawrence. Sonhos de Lítio. Piauí, 2010. 

16Hernández, Mario Orospe. As perspectivas sobre a exploração de lítio nos Andes bolivianos. NEXO, 2023. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/externo/2023/04/29/As-perspectivas-sobre-a-explora%C3%A7%C3%A3o-de-l%C3%ADtio-nos-Andes-bolivianos>. Acesso em: 24 jul. 2023.

17Ramos, Mauro. Plano de industrialização do lítio boliviano é retomado em parceria com China. Brasil de Fato, 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/02/19/plano-de-industrializacao-do-litio-boliviano-e-retomado-em-parceria-com-china.

18Rodrigues, 2014.

19Hernández, Mario Orospe. Bolívia entra em uma nova era com a extração de lítio. Mas a que custo? Fast Company, 2023. Disponível em: <https://fastcompanybrasil.com/impacto/bolivia-entra-em-uma-nova-era-com-a-extracao-de-litio-mas-a-que-custo/>. Acesso em 05 ago. 2023.

20Céspedes, Rocío Lloret. Bolívia caminha a passos lentos na exploração do lítio. Diálogo Chino, 2022. Disponível em:<https://dialogochino.net/pt-br/industrias-extrativistas-pt-br/57525-bolivia-caminha-a-passos-lentos-na-exploracao-de-litio/>. Acesso em 30 jul. 2023.

21Estadão Conteúdo. China e Rússia fecham acordo para exploração de lítio na Bolívia.CNN, 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/china-e-russia-fecham-acordo-para-exploracao-de-litio-na-bolivia/>. Acesso em 29 de jul. 2023.

22Céspedes, 2022.

23Estadão Conteúdo. China e Rússia fecham acordo para exploração de lítio na Bolívia.CNN, 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/china-e-russia-fecham-acordo-para-exploracao-de-litio-na-bolivia/>. Acesso em 29 de jul. 2023.

24Redação AB. Manifestantes protestam na Bolívia por royalties do Lltio. Automotive Business., 2023. Disponível em: <https://automotivebusiness.com.br/pt/posts/setor-automotivo/manifestantes-protestam-na-bolivia-por-royalties-do-litio/>. Acesso em 05 ago. 2023.

25Pelcastre, Julia. China aumentará extração de lítio na Bolívia. Diálogo Américas, 2023. Disponível em:<https://dialogo-americas.com/pt-br/articles/china-aumentara-extracao-de-litio-na-bolivia/>. Acesso em 29 de jul. 2023.

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