A guerra contra as mulheres Mapuche

08 de agosto de 2023

 

Por Aline Herrera Vasco, Audrey Andrade Gomes, Dante Tomyo Fasolin Koboyama, Gabrielly Provenzzano, Geovanna Mirian, Giovanna Moreschi, Isabella Tardelli Maio¹ (Imagem: Pixabay)

 

Dez meses atrás, mulheres de origem Mapuche foram presas sem uma justificativa legal na província de Rio Negro, Argentina. O episódio se soma aos vários casos de opressão contra o povo Mapuche e se associa à intensificação das atividades do agronegócio e da exploração de minérios na região. Para conseguir avançar no território, o poder público, o econômico e as autoridades militares têm como alvo as lideranças femininas.

 

Em outubro de 2022, mulheres de origem Mapuche, habitantes de Bariloche, cidade argentina localizada na província do Rio Negro, sofreram uma violenta repressão. Na ocasião, autoridades militares desalojaram 10 famílias da comunidade Lof Lafken Winkul Mapu e detiveram 7 mulheres acompanhadas de crianças que estavam no local no momento da operação, realizada com o propósito de retirar famílias que, supostamente, ocupavam uma região pertencente aos Parques Nacionais de Villa Mascardi. Além disso, sob a alegação de não haver prisão feminina em Bariloche, as mulheres detidas foram transferidas para o Presídio de Ezeiza, em Buenos Aires, a 1,6 mil km de onde moravam. O episódio gerou intensa reação da sociedade civil e de representantes políticos, levando à renúncia da Ministra de Mulheres, Gêneros e Diversidade da Nação, a advogada Elizabeth Gómez Alcorta. 

 

Em abril deste ano, seis meses depois do ocorrido, a maioria das mulheres detidas inicialmente permaneciam em prisão domiciliar junto a seus filhos. Uma das pessoas presas é Betiana Colhuan, a machi da comunidade. A figura do/a machi é importante para o povo Mapuche, sendo considerada uma autoridade espiritual de destaque. A violência contra uma machi significa, portanto, um ato de profundo desrespeito com a tradição, a ancestralidade, a espiritualidade e cultura deste povo. Em uma gravação de áudio, Colhuan relatou que foi agredida verbal e fisicamente pelas autoridades. 

Em agosto de 2017, o ativista ambiental e aliado à luta Mapuche Santiago Maldonado desapareceu após a intervenção da força militar argentina em uma manifestação. Seu corpo foi encontrado posteriormente, no rio Chubut. Meses depois, o ativista e integrante da comunidade Mapuche Rafael Nahuel foi assassinado a tiros pela polícia, durante uma ação de reintegração de posse, também em Villa Mascardi.

 

Os povos da etnia Mapuche são originários da América do Sul e habitam as regiões centro-sul da Argentina e do Chile. Estima-se que há mais de um milhão e meio de indígenas Mapuche e que cerca de 1.508.600 habitam em território chileno e 205.000 habitam território argentino (Vela, 2018), o que revela sua importância e pertencimento regional. 

 

Desde os anos 1990 diversas zonas da Patagônia argentina estão em posse de empresas privadas norte-americanas e europeias destinadas à exploração de minério e ao agronegócio. A violência na região vem se intensificando conforme cresce e se transforma de acordo com as atividades vinculadas ao extrativismo mineral e ao agronegócio, e neste contexto as províncias de Neuquén, Rio Negro e Chubut, habitadas pelos Mapuches, encontram-se em permanente disputa. 

 

Um dos proprietários de terras da Patagônia é o britânico John Lewis. Dono de 12 hectares da província de Rio Negro, Lewis também detém parte da exploração da reserva de petróleo e gás natural de Vaca Muerta, além de ser acionista da Edenor, uma grande distribuidora de energia argentina. No ano passado, na 6a Marcha pela Soberania, a atuação do inglês no território foi denunciada por manifestantes e ativistas.

 

Em Vaca Muerta, na província de Neuquén, encontra-se uma formação geológica de 30 mil km2 que guarda a quarta maior reserva de petróleo não convencional e a segunda em gás não convencional do mundo. Combustíveis não convencionais têm uma proporção entre moléculas de carbono e hidrogênio maior do que os demais, o que implica mais emissão de dióxido de carbono durante a queima. Além disso, por estarem em estado sólido e depositados em regiões muito profundas, a extração e o refino desses combustíveis costumam demandar um gasto maior de energia. Uma das alternativas para ter acesso a esses minerais é a realização de fissuras no solo por meio do fracking hidráulico, prática que aumenta a incidência de abalos sísmicos, além de contaminar e consumir uma grande quantidade de água. 

 

Fonte: Folha de SP

A imagem acima ilustra onde se depositam gases convencionais e não convencionais.

 

Povo Mapuche na Argentina e no Chile

 

A reivindicação dos povos originários da América do Sul pelos seus direitos e pelos direitos da natureza entra em confronto com as lógicas econômicas, políticas, jurídicas e territoriais hegemônicas. Mapu significa terra e che, pessoa, de forma que a tradução literal da palavra “Mapuche” é“gente-da-terra”, e faz referência àqueles que ocupam as regiões da Araucanía, no Chile, e da Patagônia e dos pampas, na Argentina. Segundo Vieira e Ferreira (2011), a mesma terra que ocupa a centralidade na cosmovisão Mapuche é, também, o epicentro das ameaças ao povo desde a colonização. Abaixo, segue um mapa mostrando onde se concentra a maior parte das comunidades atualmente e onde estão as regiões reivindicadas. 

Fonte: El País Edición América

O principal enfrentamento se dá com setores que lucram com a exploração daquilo que, no interior da cosmovisão moderna ocidental, é compreendido como recursos naturais, matéria prima e/ou commodities. Contudo, para os Mapuches – como para outros povos originários –  a natureza é entendida a partir de uma perspectiva de integração e inter-relação entre todos os seres existentes. Por isso a advogada argentina María José González (2022) afirma que, embora os territórios dos povos Mapuche sejam ricos em recursos naturais, a ideia de lucrar com a sua exploração vai contra o modo de vida desse povo. 

 

A questão se torna mais complexa porque historicamente, na Argentina e no Chile, o Estado esteve mais alinhado aos interesses dos setores do mercado internacional do que àqueles relacionados à defesa dos direitos indígenas garantidos pelos instrumentos jurídicos nacionais e internacionais, como o direito ao território, à consulta prévia e à autodeterminação. Além disso,  tanto na Argentina quanto no Chile a lei antiterrorismo – uma medida conservadora que limita e pune protestos sociais – vem sendo aplicada contra os indígenas.

 

Segundo Moira Millán: “Continuarão atacando o povo Mapuche, porque o que propomos não é de caráter inteiramente econômico e social, é sistêmico”. A fala da líder mapuche remonta à própria conformação dos Estados argentino e chileno. No século XVI, este povo sofreu diversas investidas dos espanhóis, mas conseguiram repelir a Coroa e manter relativa autonomia até os processos de independência da Argentina e do Chile no século XIX. A partir daí os dois Estados empreenderam campanhas militares que subjugaram o povo Mapuche: a Pacificação da Araucanía, pelo Chile, e a Conquista do Deserto, pela Argentina.

 

A Pacificação acompanhou a política chilena de assimilação dos Mapuche aos padrões culturais da sociedade como forma de fortalecer a unificação nacional baseada numa pretensa homogeneidade do povo, característica considerada indispensável para a construção de um Estado soberano (Lopes e Santos, 2018). A Conquista do Deserto, por sua vez, além do extermínio de milhares de indígenas, da concentração da terra e do reassentamento da população sobrevivente em terras marginais, permitiu a incorporação de áreas habitadas pelos Mapuche à estrutura econômica do Estado (Valverde, 2013). As duas campanhas colaboraram para uma estrutura de Estado-nação que, ainda hoje, é incapaz de contemplar as demandas dos povos Mapuche. 

 

A resistência das mulheres

 

Pela cosmovisão Mapuche, os gêneros são opostos e complementares (wentru – macho e lafken – fêmea), cabendo às mulheres o papel de preservação da tradição e perpetuação da sabedoria ancestral. São responsáveis pelos cuidados da comunidade e, portanto, fundamentais para a continuidade da cultura, da língua e da reprodução do povo e da vida. 

 

As mulheres reprimidas e presas em outubro de 2022 tiveram o acesso aos seus direitos negados. Com base no reconhecimento da importância dessas mulheres, há três meses foi formada uma comitiva feminista para exigir a liberdade das ativistas, liberadas em junho deste ano após várias rodadas de negociação com o governo. A comitiva contou com a presença de deputadas nacionais, legisladoras, integrantes de coletivos, partidos políticos e organizações feministas e indigenistas da sociedade civil e da academia. 

 

Um dos questionamentos possíveis nessa situação é: por que mulheres Mapuche foram detidas? Pensando na dimensão de gênero da cultura Mapuche, as mulheres têm um papel central, sua ausência é capaz de desestruturar uma comunidade inteira. Romper as organizações coletivas pode enfraquecer as reações diante do que tem ocorrido no território e limitar as alternativas de resistência.

 

As mulheres Mapuche se reconhecem ancestralmente pela resistência às múltiplas opressões que sofrem como mulheres indígenas inseridas em um sistema capitalista, colonial e patriarcal. Enquanto Aníbal Quijano (2005) contribui para que compreendamos como a colonialidade do poder cria hierarquias e perpassa todos os âmbitos da nossa existência, María Lugones (2010) argumenta que as categorias de raça, gênero e sexualidade são estruturantes do processo de invenção dos corpos colonizados. Nas palavras das membras da Organização Mapuche Meli Wixan Mapu: “Como povo vivemos a discriminação de uma sociedade racista, arrogante; como oprimidos Mapuche vivemos a exploração do sistema capitalista que nos impõe o extermínio; mas, como mulheres, suportamos uma terceira opressão, esta que afirma que somos “frágeis”, que pretende nos relegar a um lugar secundário, menor na vida cotidiana, na participação, no lar ou na história. Assim, nossa dignidade tem sido permanentemente pisoteada” (Organização Mapuche Meli Wixan Mapu, 2016, p. 552).

 

Para recuperar-se das crises econômicas e políticas mais recentes e fazer frente às demandas mundiais que se transformam, conforme o desenvolvimento do conflito bélico euroasiático avança, os países sul-americanos têm explorado as atividades produtivas mais comuns historicamente: o agronegócio e o extrativismo. 

 

Fato é que os planos de desenvolvimento econômico dos governos argentino e chileno não contemplam a vida dos povos originários, contribuindo para a perpetuação de uma guerra que se estende há seis séculos, e embora o desenvolvimento sustentável e a crise climática estejam em pauta e detenham parte da atenção do poder público, não se apresentam como prioridade.  Isto exigiria considerar, de maneira efetiva, outros povos e modos de vida, os direitos indígenas e os direitos da natureza. 

 

Para as máquinas da iniciativa privada funcionarem, a força armada do Estado impõe as condições de existência. Expulsar, calar e confinar as mulheres Mapuche é parte do processo de domínio do território exigido para a reprodução do capital

 

¹Parceria entre o GT América Latina e GT Diversidade e desigualdade.

 

REFERÊNCIAS:

 

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017

 

GONZÁLEZ, María José. Los Mapuches: en defensa de su territorio ancestral en Argentina. AIDA, 30/08/2022. Disponível em: https://aida-americas.org/es/blog/los-mapuches-en-defensa-de-su-territorio-ancestral-en-argentina. Acesso em 07/08/2023.

 

LOPES, A. M. D. ; SANTOS, Haroldo. ‘Conflito mapuche’: aplicação da lei antiterrorista e violação de direitos humanos. REVISTA DIREITO E PRÁXIS, v. 9, p. 587-609, 2018.

 

LUGONES, M. Rumo a um feminismo decolonial (2010). In: H. Buarque (Org.), Pensamento Feminista – conceitos fundamentais . Rio de Janeiro, RJ: Bazar do tempo, 2019.

 

PAZELLO, Ricardo Prestes et al. A mulher mapuche e seu compromisso com a luta de seu povo (2003). InSURgência e luta de classes. InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais.  v. 2, n. 1, p. 552-553, 2016.

 

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas, pp. 117-142. Buenos Aires: Editora CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

 

VALVERDE, Sebastián. De la invisibilización a la construcción como sujetos sociales: el pueblo indígena Mapuche y sus movimentos en Patagonia, Argentina. Anuário Antropológico, v. 38, n. 1, p. 139-166, 2013. Disponível em: <https://journals.openedition.org/aa/414>.

 

VELA, Laura Alejandra Granados. Los hombres de la tierra: migraciones Mapuche en la frontera de Chile y Argentina. Revista Nova et Vetera, v. 4, n. 40. 2018. Disponível em: https://urosario.edu.co/revista-nova-et-vetera/omnia/los-hombres-de-la-tierra-migraciones-mapuche-en-la-frontera-de-chile-y-argentina#:~:text=En%20la%20actualidad%20se%20calcula,Estad%C3%ADstica%20y%20Censos%2C%202012)

 

VIEIRA, Fernanda M. C.; FERREIRA, J. Flávio. “‘Não somos chilenos, somos mapuches!’: as vozes do passado no presente da luta mapuche por seu território.”, Interface: a journal for and about social movements., 3, 1, 118 – 144, 2011.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *