Qual o lugar da China na política externa brasileira?

Relações Brasil-China frente às contradições do governo Bolsonaro

 

Por Ana Tereza de Sousa, Giorgio Schutte, Bruna Belasques, Bruno Fonseca e Ana Paula Teixeira
Texto apresentado em workshop do OPEB

Brasil e China são parceiros estratégicos desde 1993 e possuem uma parceria estratégica global desde 2012. Desde 2009, a China é o maior destino de nossas exportações e desde 2017 a maior origem de nossas importações. Entre 2003 e 2018, empresas chinesas investiram US$ 64,7 bilhões no Brasil, sendo cerca de US$ 2,7 bilhões somente no último ano. Entretanto, o tratamento dado a ela pela campanha Bolsonaro teve um tom negativo. Entre os fatos que se repercutiram, pode-se apontar a visita de Bolsonaro a Taiwan em março de 2018, exemplo de uma pauta importada do governo Trump[1], a qual a embaixada chinesa formalmente manifestou indignação; e as emblemáticas declarações de que “[a China] é uma ameaça nacional” e que ela “não compra no Brasil, compra o Brasil”.

Passada a eleição, um editorial do China Daily afirmou que embora a China pudesse entender que as críticas poderiam “servir para algum objetivo político específico”, alertou-se para os custos econômicos que tal orientação, se colocada em prática, poderia trazer para o Brasil. Iniciado o governo, as declarações a respeito da China, principalmente por parte do ministro das relações exteriores, Ernesto Araújo, continuaram de forma controversa.

Afinal, qual o lugar da China na PEB do governo Bolsonaro? O tratamento ideológico dispensado ao país pelo grupo ligado a Araújo contrasta com o pragmatismo de outros grupos de dentro do governo.

O viés anti-China

O tratamento da China por parte de Araújo (e Bolsonaro, sobretudo no período de campanha) designa o país como uma ameaça a civilização ocidental, um predador, que explora e quer comprar o Brasil. O próprio Araújo afirmou que apesar de vendermos “soja e minério de ferro”, “não vamos vender nossa alma”. O ministro pressupõe erroneamente que as relações econômicas com a China tenham sido resultado de concessões do Brasil em termos políticos, mormente a participação no “mundo pós-americano dos BRICS”.

Os Bolsonaro em Taiwan em março de 2018
Fonte: Facebook

Defende-se que além dos interesses econômicos, o Brasil não deveria compartilhar com a China posições na política internacional, restringindo-se as relações dos países para esfera da economia (o que é, curiosamente, o contrário do que propõe o próprio ministro quando fala que a PEB não pode ser reduzida “a uma questão comercial”). Na narrativa criada, a contestação das relações com a China é uma forma de defender os interesses nacionais, dado que fantasiam que a intensificação da aproximação do Brasil com o país corresponde a “um período de estagnação”, enfeixado em um clico “do Brasil com parceiros errados”. Há o desejo de diminuir a importância da China para o país, não só como um movimento de diversificação de parcerias, mas com o desejo de substituição (pelos EUA) da China nas parcerias econômicas e políticas.

Tal fato deverá se refletir no BRICS, espera-se que a PEB dê menor peso ao grupo, pois há críticas ao envolvimento do Brasil em uma iniciativa que de certa forma contesta a hegemonia americana. O posicionamento dos BRICS diante a ONU, o multilateralismo, a OMC e as economias avançadas pode ser possível ponto de desacordo no futuro[2].  

Em novembro deste ano o Brasil deve sediar a 11ª Cúpula dos BRICS, cujo tema é Ciência & Tecnologia e Inovação, sugestão do governo chinês. Embora o primeiro encontro de sherpas tenha ocorrido no mês de março (dias 13, 14 e 15), ainda não há definição quanto a cara que o Brasil quer dar ao encontro. Os áudios do discurso do chanceler Araújo, disponibilizados pelo Itamaraty durante este encontro, ainda abordam a temática de modo superficial e genérico – destaca-se apenas o desejo de fomentar “cooperação a partir de nossas identidades e não apesar de nossas identidades” e a importância do desenvolvimento tecnológico e da inovação para que os países dos BRICS atinjam plenamente a 4ª Revolução Industrial.

O viés pragmático

Há grupos no governo que pensam as relações com a China de uma forma mais pragmática, destaca-se militares, principalmente na figura do vice-presidente Mourão, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), comandado pela ministra Tereza Cristina, e o próprio Ministério da Economia, com Paulo Guedes[3] e figuras como Marcos Troyjo (Secretário do Comércio Exterior e Assuntos Internacionais)[4]. Nesse grupo há um reconhecimento acerca dos constrangimentos que uma desqualificação da China pode acarretar para o Brasil, pela importância que ela tem como origem de investimentos e fonte de superávit na balança comercial e, ainda, para setores específicos – como o agronegócio, que tem se mobilizado para desfazer o viés anti-China de partes do governo.

Vice-presidente Mourão recebe comitiva chinesa chefiada pelo vice-presidente do Congresso do Povo. Mourão fez questão de sugerir no seu tuite que se trataria de uma delegação para discutir comércio, chamando a delegação de “comitiva da Câmara do Comércio Chinês”.

Até a indústria, que expressa por meios de seus órgãos, como a FIESP e a CNI, críticas às relações comerciais com a China, e cobra que o Brasil recorra mais a elementos de defesa comercial contra o país[5], tem uma posição que pode até o momento ser lida como pragmática. Organizam constantemente missões empresariais para a China, visando aumentar mercado para produtos manufaturados, e reconhecem a importância do país para a economia: “O mercado chinês está na linha de frente dos locais do mundo onde teremos grande crescimento nos próximos 12 anos” (segundo Thomaz Zanotto, diretor do Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Derex) da Fiesp e do Ciesp). Sem manter uma aproximação adequada seria difícil resolver as questões que, aos olhos da indústria, são problemas nas relações: o déficit no setor de manufaturados, o relativo fechamento do mercado chinês para importações brasileiras de mais alto valor agregado, e a falta de reciprocidade para investimentos brasileiros.

Como afirmou Mourão, destacando que “34% das nossas exportações são para a China”, uma “briga com a China não é uma boa briga, certo? […] Não podemos fechar esse caminho […]”. Esses grupos defendem uma aproximação para possibilitar o diálogo necessário para lidar com os problemas de forma pragmática. É com o espírito de que “Essa nossa relação com a China tem de se dar em termos de países adultos […]” que Mourão deve visitar a China em junho para retomar as reuniões da COSBAN (a última foi em 2015) enviando um sinal de equilíbrio e demonstrando o desejo do Brasil de manter intensidade nas relações[6].

O Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) também pretende enviar uma missão ao país já na primeira semana de maio. Recentemente a AQSIC[7] se recusou a autorizar mais frigoríficos do país a exportar carne para a China. Os objetivos da missão seriam: ampliar o número de frigoríficos com habilitação sanitária para exportar e aumentar as exportações de carne suína, bovina e de frango; discutir a continuidade da demanda de soja (uma vez que há receio de que possa haver uma diminuição pela possível retomada das importações dos EUA); e aumentar o leque de produtos agropecuários exportados para o país.

O que deverá prevalecer?

Apesar do viés anti-China em torno de Araújo, os interesses concretos, em particular do agronegócio, parecem suportar mais a abordagem pragmática do que a ideológica com relação ao país. O próprio Bolsonaro tem sofrido críticas pelo tratamento dado à China e a elas respondido com alguma moderação. Logo após receber reclamações devido a declarações de Ernesto Araújo sobre “não vender a alma”, endereçadas a China, o presidente teve, por exemplo, o cuidado de anunciar antes de viajar aos EUA que também visitaria a China neste ano. Dentro do próprio PSL, partido do presidente, que teve parlamentares viajando a convite do governo da China no início do ano, um viés anti-China não está consolidado.

Suportando esse discurso, além da orientação ideológica de Araújo, há muito pouco. A indústria critica as relações comerciais, mas não há expressão de um posicionamento anti-China. Existem movimentos relacionados à defesa do meio ambiente, indígenas e direitos humanos temerosos de que a atuação da China no agronegócio e no setor de minérios possa piorar a situação ambiental e dos indígenas; há ainda alguns receosos com a entrega de terras e setores estratégicos a estrangeiros (mas que são contrabalanceados por ruralistas[8]). Na imprensa não se verifica um viés anti-China, mas sim uma defesa do multilateralismo liberal[9].

Porém, o tom ríspido com que o país foi tratado e as incertezas sobre que tipo de relações o Brasil vai buscar com a China, já resultaram em desgastes. Em particular identificou-se a paralisação de desembolsos do Fundo de Cooperação Brasil-China para Expansão da Capacidade Produtiva. Tal fundo foi lançado em 2015 com o objetivo de selecionar projetos de interesse mútuo para a recepção de capitais chineses. Orçado em até US$ 20 bilhões, sendo US$ 15 bi do Fundo de Cooperação Chinês para Investimento na América Latina (CLAIFUND) e o restante do Brasil, a gestão do fundo foi organizada para ser paritária. Em outubro de 2018 deveriam ter ocorrido os primeiros anúncios de projetos a serem financiados, contudo as ações do fundo vêm sendo adiadas. O governo chinês preferiu aguardar os desdobramentos desses primeiros meses de governo.

Considerações Finais

Há uma contradição de fundo na PEB americanista proposta pelo governo Bolsonaro: a importância que a China tem para o Brasil e o lugar de destaque que ela ocupa no sistema internacional constrange qualquer política que opte por desqualificá-la enquanto parte importante nas relações políticas e econômicas.

Observando os grupos que se conectam as relações Brasil-China, percebe-se que os interesses concretos mais sustentam do que reprimem as relações entre os países. Se considerarmos que só pode haver sustentação de uma posição em política externa uma vez que ela esteja enraizada em grupos interesses, o que se espera é que a China deva ser mantida em elevada posição na hierarquia de prioridades brasileira, principalmente pelo papel econômico que desempenha para o país.

Em que medida as contradições no interior do governo vão ser superadas ou acentuadas, depende também da dinâmica internacional. Em particular um acirramento do conflito entre os EUA e a China pode dar maior visibilidade a esta contradição, com uma pressão norte-americana para enquadrar seus aliados em uma cruzada contra os interesses chineses. Já uma repactuação, mesmo momentânea, desta relação, poderá facilitar no Brasil a convivência de um discurso ideológico abstrato de defesa do ocidentalismo judaico-cristão e o business as usual com a China.

Notas

[1] Trump não chegou a fazer uma visita, mas logo que tomou posse teve um contato telefônico com o presidente da Taiwan o que irritou muito o governo chinês.

 

[2] Para se ter ideia, na última reunião dos países do grupo, à margem da Cúpula do G20 em Buenos Aires, em novembro último, concordou-se com o seguinte teor de declaração: sobre o multilateralismo de forma geral: “trabalharemos juntos para fortalecer o multilateralismo”; sobre a ONU: “Reiteramos nosso compromisso com a paz e estabilidade mundiais, o papel central das Nações Unidas”, “Exortamos esforços concertados sob os auspícios da ONU para combater o terrorismo sobre uma sólida base jurídica internacional”; sobre a OMC: “Apoiamos o trabalho de melhoria da OMC […] Nesse trabalho, o valor central e os princípios fundamentais da OMC devem ser preservados e os interesses de todos os membros da OMC devem ser refletidos, em particular aqueles dos membros em desenvolvimento” e “O mecanismo de solução de controvérsias da OMC é essencial para o seu funcionamento adequado […] instamos que o processo de seleção do Órgão de Apelação seja iniciado imediatamente”; sobre o Acordo de Paris: “Com respeito à mudança do clima, comprometemo-nos à plena implementação do Acordo de Paris, adotado sob os auspícios da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima”; sobre as economias avançadas: “Receamos que os impactos negativos das políticas de normalização de algumas das maiores economias avançadas sejam uma importante fonte da volatilidade experimentada recentemente por economias emergentes”.

 

[3] Guedes demonstra grande admiração pelos EUA (“Amo jeans, Coca-Cola, Disneylândia”) e desejo de que o Brasil busque intensificar parcerias com esse país (disse em viagem recente em uma conferência na Câmara de Comércio dos Estados Unidos: “Estamos abertos para negócios. Se vocês forem lá podem comprar várias coisas”. Contudo, ainda sim, Guedes reconhece a importância econômica da China e mantem disposição para a evolução das relações (segundo fala: “Os chineses querem dançar conosco e querem investir lá. Disse ao presidente: amamos os Estados Unidos, mas vamos fazer comércio com quem for mais lucrativo”).

 

[4] Ex-diretor do BRIClab da Universidade de Colúmbia, possui ligação com o setor do agronegócio, advoga que a China representa uma profícua oportunidade de o Brasil suprir sua extensa demanda de investimento, principalmente pelo fato de que ela “é um dos poucos países do mundo que podem atuar como fonte de empréstimo de governo a governo”.

 

[5] Durante os governos do PT reclamaram de viés ideológico no reconhecimento a China como economia de mercado, não por protecionismo, segundo Paulo Skaff, porque “Não somos protecionistas, somos contra as importações ilegais”. Entende-se de acordo com Skaff que “A China tem um projeto estratégico de país e vêem rigorosamente o interesse deles, e só. E o que eles querem é comprar matérias-primas, investir em áreas estratégicas e vender manufaturados. O Brasil é que precisa passar a defender seus interesses e dizer se quer deixar com os chineses a agregação de valor e a geração de empregos”.

 

[6] Segundo Mourão, “Vamos montar um cronograma, definir as áreas que consideramos essenciais nesse relacionamento. Nós temos, principalmente, que dar um recado político neste momento […]”.

 

[7] A Administração Geral de Supervisão de Qualidade, Inspeção e Quarentena da China (AQSIC) é responsável pela qualidade, metrologia e inspeção de mercadorias que entram e saem da China, inclusive commodities, plantas, animais e alimentos, bem como certificações, padronizações e credenciamentos necessários para importação e exportação de tais. No caso do Brasil, para que a carne seja aceita na China, a AQSIC tem que acreditar o frigorífico brasileiro e permitir a distribuição de guias de importação para que empresas chinesas comprem a carne.

 

[8] Sobre a compra de terras por estrangeiros, Marcelo Vieira, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB), afirma que “o agronegócio espera que o governo se sensibilize com a necessidade de atrair capital externo para os negócios nacionais”.

 

[9] A Carta Maior analisou publicações da Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo (Estadão) e O Globo com relação a cobertura dada a Cúpula do G20 em dezembro passado na Argentina: “os jornais brasileiros reforçaram a importância do multilateralismo para o comércio internacional, apresentando a China como um país que segue essa tendência e destacando o documento final da Cúpula que recomendou a reforma da Organização Mundial do Comércio (OMC)”.