A Desconstrução dos Direitos Humanos na Política Externa Brasileira

Versão resumida do texto preliminar apresentado em Seminário do OPEB, no dia 11 de abril de 2019. 

Por Gilberto M. A. Rodrigues [1], com a colaboração de Flavia Mitake, Giovanna Miron, José Luis de Freitas e Marina Stephan[2]

Completados 100 dias da posse de Bolsonaro o país e o mundo acompanham, com misto de indignação, inconformismo e revolta a desconstrução dos direitos humanos no Brasil, tanto no âmbito doméstico quanto na política externa. Nesta última, décadas de avanços diplomáticos, de adoção de mecanismos multilaterais, e de reconhecimento da identidade de negociador confiável (honest broker) estão em iminente risco de colapso.

Com a derrubada da Presidenta Dilma Rousseff, o governo de Michel Temer inicia o processo de desconstrução dos DH na PEB. No entanto, a chegada de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto muda radicalmente a posição do governo em relação aos DH em geral, e sua aplicação na PEB em particular. A desconstrução acelerada dos DH no Brasil e na PEB começa e avança logo após a eleição e a passos largos após a posse.

Os fundamentos “bolsonarianos” da desconstrução dos Direitos Humanos

Ao contrário dos anteriores presidentes da República, que atuaram como ativistas ou políticos contra a ditadura militar Jair Bolsonaro sempre defendeu as Forças Armadas acima de qualquer interesse público e social, negando o golpe militar de 1964 e da própria ditadura e, indo além, defendendo a tortura como meio legítimo contra a população durante o regime autoritário. Cabe lembrar o ultrajante momento protagonizado por Bolsonaro, durante o processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, quando o então parlamentar, no momento de pronunciar seu voto na tribuna da Câmara dos Deputados, declarou:

contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas (…) o meu voto é sim!


Jair Messias Bolsonaro, 17 de abril de 2016 (grifo nosso) [3]

Bolsonaro exaltou a figura do Coronel Ulstra, chefe do DOI-CODI, um dos mais sanguinários torturadores do regime. Como político anti-Direitos Humanos, Bolsonaro foi um deputado “exemplar”. Sua retórica abertamente discriminatória contra grupos vulneráveis tornou-se marca de seu mandato. Discriminou mulheres, homossexuais, indígenas e quilombolas, sempre protegido pela imunidade parlamentar. Promoveu o armamentismo da população (armas leves), sob o argumento do direito à autodefesa, e legitimou a atuação de milícias no Rio de Janeiro.

A desconstrução internacional dos Direitos Humanos

A ideologia de ultradireita de Bolsonaro, desenvolvida em trinta anos de atuação parlamentar e, desde 2019, como Presidente da República, converge com a tendência internacional atual da ascensão de partidos e governos de ultradireita em vários países, com destaque para Donald Trump nos EUA, do qual Bolsonaro é admirador e seguidor. Essa tendência coloca a democracia e os direitos humanos em situação erosiva. Levitsky e Ziblat mostram em Como as democracias morrem (2018)[4] como essa perigosa erosão atinge e subverte as democracias ocidentais na atualidade. Por isso, a desconstrução dos direitos humanos é um fenômeno internacional que atinge a diversos países ocidentais, sobretudo aqueles que elegeram líderes de ultradireita, como EUA, Israel, Italia, Hungria e Brasil. Em países em desenvolvimento, governos de ultradireita tem maior potencial de descontruir os direitos humanos rápida e eficazmente devido à incipiência e fragilidade de muitas de suas instituições. As instituições brasileiras enfrentam seu maior teste de resistência e de resiliência desde a redemocratização diante do governo de Bolsonaro. A desconstrução dos DH na PEB se desenvolve em tal cenário, com o agravante da difículdade de monitoramento externo do MRE pela sociedade civil.[5]  

O combate à corrupção como argumento “solo” dos direitos humanos na PEB

O governo Bolsonaro exalta o combate à corrupção como principal assunto de defesa da democracia e dos direitos humanos. Seu ministro da Justiça, Sergio Moro, ex-coordenador da Operação Lava Jato, é sua “vitrine” permanente. Com efeito, o combate à corrupção é, desde 2000, parte da agenda de proteção e promoção dos DH da ONU e de agências multilaterais, incluindo políticas voltadas para o setor privado[6]. Em 2018, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos publicou uma resolução sobre Corrupção e Direitos Humanos[7]. No Banco Mundial e no BID, o tema vem ganhando destaque na área de integridade, que visa a prevenir e combater a corrupção em seus projetos. Entretanto, a forma como esse combate tem se dado no Brasil tem sido muito criticada por juristas brasileiros e estrangeiros. A própria ONU, por seus diferentes órgãos, tem reservas à Lava Jato devido às arbitrariedades realizadas pela polícia e pelo judiciário em notória violação ao devido processo legal, com julgamentos e prisões arbitrárias[8]. Ou seja, o combate à corrupção no Brasil tem sido anunciado como política de DH, mas seu modus operandi contribui para desconstruir os DH.  

A desconstrução dos DH na PEB – regimes e foros internacionais

Conselho de Direitos Humanos da ONU – O Brasil contribuiu para a criação do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, em substituição à Comissão de Direitos Humanos (1946-2006), na reforma aprovada em 2005. A importância do novo CDH e de seu Mecanismo da Revisão Periódica Universal (RPU) está diretamente ligada à ampliação da participação dos países do Sul no CDH e ao tratamento igualitário na CDH. A RPU obriga todos os Estados à accountabilitty e à cooperação internacional em DH, alterando o mecanismo anterior que preservava os países do Norte de prestar contas de suas violações de DH, expondo apenas os do Sul. Eleito majoritariamente por seu grupo regional, a América Latina e Caribe, o Brasil exerceu mandatos no CDH em 2006-2008, 2008-2011, 2013-2015 e 2017-2019, o que tem permitido ao país reter a memória do órgão, ao mesmo tempo em que atua e protagoniza ações como líder dos países em desenvolvimento. Em 2008, o Brasil propôs a criação das Metas Voluntárias em Direitos Humanos, 10 metas inspiradas nos ODM. Por meio da CDH, o país teve atuação nos debates e decisões sobre a estabilização e reconstrução pós-conflito do Haiti, Sri Lanka e Sudão. A desconstrução dos DH na PEB no CDH começa no governo Temer, quando o Brasil foi o único país da América Latina e Caribe a votar contra a Declaração de Direitos dos Camponeses, alegando que o texto implicaria conflito de interesses entre agricultores e trabalhadores rurais. Com Bolsonaro, a representação permanente do Brasil em Genebra tornou-se a cara do novo MRE e do Presidente. De um inédito bate-boca da embaixadora Maria Nazareth com Jean Willys, durante sessão da CDH, à votação da resolução contra Israel pela ocupação do Golã e de territórios palestinos, em que o Brasil se alinhou a Israel, é clara a desconstrução acelerada dos DH na PEB, norteada pela ideologia de ultradireita.

Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)

Desde que aderiu ao Pacto de San Jose de 1969, o Brasil vem atuando na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e cooperando ativamente com esta em relação às denúncias recebidas e processadas contra o país. O caso Maria da Penha, mais emblemático e conhecido caso contra o Brasil, teve uma de suas principais recomendações acolhida – a aprovação da Lei Maria da Penha que trata da violência contra a mulher. Em 1998, o país aderiu ao Estatuto da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Tanto na CIDH quanto na Corte IDH, o Brasil vem participando ativamente, inclusive com comissários e juízes brasileiros[9]. Nos primeiros cem dias do governo Bolsonaro, a CIDH publicou seis artigos sobre a situação dos DH no Brasil, nos temas de gênero (as alarmantes ocorrências de violência contra a mulher); tragédia ambiental (sobre as mortes e poluição causada pela barragem de Brumadinho); trabalhadores rurais (mortes de membros do MST); defensores de direitos humanos (ameaças contra a vida de ativistas); o caso Marielle Franco (pela ameaça contra defensores de DH). Ainda não é possível saber como o governo Bolsonaro irá se comportar diante do SIDH – tendo em vista que apoia a OEA e o Secretário-Geral Luis Almagro no tratamento do caso da Venezuela. Mas o potencial de conflito é enorme…       

Política migratória e de refugiados

Uma das primeiras decisões do governo Bolsonaro – antes mesmo da posse – foi declarar que não manteria seu compromisso com o Pacto Global para Migração da ONU, que havia sido assumido pelo governo Temer. As várias declarações anti-migração de Bolsonaro se alinham com a PEB de ultradireita que vê nos migrantes fonte de problemas e de ameaça, seja para os empregos seja para a segurança da população. Nem mesmo os brasileiros que estão nos EUA escaparam das críticas de Bolsonaro, em sua viagem aos EUA, quando apoiou Trump em sua nefasta política migratória, inclusive na construção do muro com o México. Já em relação à política para refugiados, ainda não se pode afirmar como o governo Bolsonaro agirá, se se toma em conta a aparente continuidade da política de acolhimento de refugiados, em especial a “Operação Acolhida”, coordenada pelas Forças Armadas e realizada em Roraima, na fronteira com a Venezuela. Minorias e grupos vulneráveis – Minorias e grupos vulneráveis – mulheres, indígenas, camponeses, população afrodescendente, quilombolas e comunidade LGBTI estão em crescente risco com o governo Bolsonaro. No Brasil, a desigualdade de gênero – problema que a CEPAL destaca em seu relatório de 2019[10] – tem como uma de suas problemáticas o feminicídio, cuja proporção é alarmante. Nos primeiros três meses de 2019, ocorreram 344 casos, sendo 207 consumados e 137 tentativas. O discurso misógino de Bolsonaro e sua política de liberação de armas pode contribuir para o agravamento desses casos. A Medida Provisória 870/2019 que alterou a organização dos órgãos da presidência, ameaça seriamente os indígenas, ao transferir a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura, histórico rival das políticas indigenistas. Quilombolas estão sob ameaça, como no caso da Base de Alcântara. Ao mesmo tempo, defensores de DH são assassinados – como a líder do Movimento contra a Barragem de Tucuruí no Pará – colocando a PEB de DH em xeque nos foros e regimes internacionais. Embora não se possa tributar todas as violações de DH a minorias ao governo Bolsonaro, cabe ao Estado não só proteger como promover os DH, o que não ocorre desde a posse de Bolsonaro com esses grupos.

Os DH na política de cooperação Sul-Sul

A incorporação de várias dimensões dos Direitos Humanos na cooperação Sul-Sul brasileira foi uma das marcas sobressalentes dessa política no governo Lula na PEB, voltada para países da África e da América Latina[11]. Mantida menos intensa pelo governo Dilma e drasticamente diminuída no governo Temer, a cooperação Sul-Sul está em desmonte no governo Bolsonaro. 

Questões finais

A regressividade dos DH no âmbito interno se traduz rapidamente na agenda externa, sem contar com o apoio do MRE para o “efeito bumerangue”. Como a PEB lidará com recomendações e condenações dos sistemas regionais e universais de DH ao país. O Brasil acatará essas decisões? Permanecerá membro desses sistemas? Os DH na PEB estão na berlinda pois tudo pode acontecer quando o presidente se gaba de seu passado anti-direitos humanos e impõe agenda regressiva como parte de sua identidade.


Notas

[1] Professor do Bacharelado em Relações Internacionais (BRI), Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PRI) e membro do Observatório de Política Externa do Brasil (OPEB) da Universidade Federal do ABC (UFABC). Pesquisador Produtividade do CNPq.

[2] Alun@s do Bacharelado em Relações Internacionais (BRI) e membros do Observatório de Política Externa do Brasil (OPEB) da UFABC.

[3] “Bolsonaro menciona chefe do DOI-CODI ao votar pelo impeachment”. O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/bolsonaro-menciona-chefe-do-doi-codi-ao-votar-pelo-impeachment-2-19112343

[4] Levitsky, Steven; Ziblat, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[5] A Conectas Direitos Humanos é a única ONG brasileira monitora Direitos Humanos na PEB.

[6] “Pacto Global: combate à corrupção é oportunidade para o setor privado”. ONUBR, Disponível em: https://nacoesunidas.org/pacto-global-combate-a-corrupcao-e-oportunidade-para-setor-privado/

[7] “CIDH publica resolução sobre corrupção e direitos humanos”. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2018/053.asp

[8] Cf. – Entrevista de Paulo Sergio Pinheiro a Juca Kfouri. Programa Entre Vistas, Rede TVT, 1º.01.2019. Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=1cu63X9J0S0

[9] Em 2017, a partir de candidatura do governo Temer, a professora e jurista Flávia Piovesan foi eleita comissária da CIDH para o período 2017-2021.

[10] “Cepal lança anuário com dados sobre situação socioeconômica e ambiental da América Latina”. ONUBR. Disponível em: https://nacoesunidas.org/cepal-lanca-anuario-com-dados-sobre-situacao-socioeconomica-e-ambiental-da-america-latina/

[11] Cf. Maciel, T. M.; Rodrigues, G. M. A. Direitos Humanos e Cooperação Sul-Sul: qual a contribuição do Brasil? Monções, V. 7, N. 14, Jul-Dez 2018. Disponível em: http://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/9110