Elogio à Devastação

Por Everton Farias, Giovana Matos, Letícia Leite, Luiz Franco, Pedro Lagosta, Rafaela Martins, Olympio Barbanti Jr. e Diego Azzi [1]
Texto apresentado em workshop do OPEB

No presente artigo apresentamos algumas das principais transformações em curso nos primeiros meses do atual governo com relação a diferentes aspectos da política brasileira para meio-ambiente e clima. Para isso, são abordados discursos de Jair Bolsonaro como candidato e presidente; as alterações nas orientações de política externa nas negociações multilaterais do meio-ambiente e do clima; e as alterações domésticas na legislação e estrutura ministerial do Estado vinculadas a estes temas.  

O artigo argumenta que as ações efetivamente realizadas e a intenções manifestadas em discursos, levam a uma verdadeira devastação do aparato institucional e da capacidade de gestão da área ambiental federal. Portanto, para compreender a dimensão da política de devastação em curso é preciso primeiro recordar o papel de destaque que o país construiu internacionalmente ao longo das últimas décadas.

O Brasil tem se caracterizado pelo exercício de uma política externa para as negociações multilaterais sobre meio-ambiente e clima que está assentada em três grandes princípios: defesa do direito ao desenvolvimento; defesa da soberania nacional e defesa do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas entre as nações desenvolvidas e em desenvolvimento. Deve-se notar de partida que o lugar hoje ocupado pelos temas de meio-ambiente e clima nas relações internacionais vai muito além do debate sobre a proteção ambiental, envolvendo outras questões-chave da política mundial como segurança energética, segurança alimentar, investimentos, tecnologia e desenvolvimento sustentável.

Em diversas negociações multilaterais sobre meio-ambiente, biodiversidade e clima, o Brasil historicamente se reservou o direito soberano de veto quanto a questões que não lhe interessavam e – mesmo quando assinou e ratificou acordos – manteve via de regra um ritmo muito lento de implementação no nível doméstico. Isto significa dizer que, contrariamente ao que afirma o atual governo, a política externa levada adiante pelo Itamaraty atuou para prevenir que os regimes internacionais sobre meio-ambiente, biodiversidade e clima fossem fatores de ameaça à soberania nacional e à busca pelo desenvolvimento.

A tradição da política externa brasileira relacionada aos regimes de negociação do clima historicamente foi de protagonismo e comprometimento com soluções e normas multilaterais. Dadas as características geográficas do Brasil, o país é automaticamente projetado para o centro dos debates ambientais e climáticos, tendo seu prestígio materializado na Conferência do Rio em 1992 (que resultou no compromisso da Agenda 21); apresentando propostas concretas para o Protocolo de Kyoto em 1997, como por exemplo o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL); se destacando nas negociações da COP15 em Copenhagen, 2009; sediando a Rio+20 (que aprovou as bases da Agenda 2030, os ODS) em 2012; e sendo um dos principais negociadores no Acordo de Paris em 2015.

A marcha da insensatez

Muito antes de se tornar presidente da República, Jair Bolsonaro já esboçava um grande desdém em relação ao tema meio ambiente e clima, e tomava com frequência posições que manifestam uma visão pessoal nitidamente contrária a esses temas. Muitas foram suas afirmações a respeito de como no Brasil havia assumido compromissos com tratados e acordos ambientais internacionais e aprovado domesticamente um arcabouço legal que barram o que ele compreende como sendo os fatores que levariam ao progresso do país, tanto na agropecuária quanto na industrialização e desenvolvimento urbano. Na sua visão, esses fatores internacionais e nacionais afetavam diretamente a economia do país e trariam grandes prejuízos.

Em muitos de seus discursos, Bolsonaro realizou falas como “em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros” (BOLSONARO, 2016) [2] como, também, “se eu assumir [a Presidência do Brasil] não terá mais um centímetro para terra indígena” (BOLSONARO, 2018) [3]. Jair Bolsonaro não apresentou em seu plano de governo quaisquer menções a temas ambientais e vem cumprindo à risca o conteúdo de suas declarações públicas feitas durante sua campanha as quais contêm elogios a práticas que implicam na devastação do meio ambiente e em danos às populações que dele dependem diretamente para seus meios de vida.

Desestruturação legislativa e administrativa

Já em seus primeiros dias de governo, o atual presidente começou por um desmonte da burocracia governamental existente a partir da Medida Provisória (MP) 870/2019 [4], que em seu primeiro momento trouxe um “pacote” de modificações em diversos ministérios e órgãos ligados direta e indiretamente ao governo.

Especialmente quanto aos Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), houve modificações que debilitaram a preservação ambiental do país como um todo e fortaleceram ainda mais os setores vinculados ao agronegócio, marcando uma forte diferença com relação à política ambiental que outras gestões vinham realizando com intensidade crescente desde a Conferência das Nações Unidas Eco-92, no Rio de Janeiro. Como se sabe, o MAPA é conhecido por ser um ministério que pouco tem interesse em promover demarcações de terras indígenas, uma vez que seu maior interesse é o de aumentar a fronteira das terras do setor agropecuário. Não é casual que o governo Bolsonaro tenha promovido a liberação do uso de 166 novos agrotóxicos apenas no ano de 2019, dentre os quais 24 são altamente tóxicos e 66 extremamente tóxicos [5].

Ainda no que tange à reformulação no Ministério do Meio Ambiente, outra modificação significativa se deu com relação ao Serviço Florestal Brasileiro (SFB), cuja administração também foi transferida para o Mapa. Uma atribuição estratégica do SFB é a gestão do CAR – Cadastro Ambiental Rural, o principal mecanismo de aplicação prática do Código Florestal Brasileiro. Trata-se de um banco de dados espaciais digitalizados, que identifica os limites cartográficos das propriedades rurais e delimita as áreas de preservação ambiental que a legislação obriga os proprietários e donos de posse a ter, com o objetivo de monitorar o desmatamento, e o uso sustentável das áreas florestais. A partir de agora, é o MAPA que terá a responsabilidade de multar eventuais crimes ambientais cometidos por ruralistas.     

Com relação ao esfacelado Ministério do Meio Ambiente, deve-se ainda apontar a censura imposta aos servidores dos órgãos como IBAMA e ICMBio, a exoneração sumária de servidores com reconhecida capacidade técnica e subsequente aparelhamento realizado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em posições técnicas e políticas chave do órgão, através da nomeação e policiais militares e/ou quadros oriundos do exército. Desta forma, o MMA sob Bolsonaro/Salles aparenta ter como principal objetivo a repressão violenta aos opositores da devastação em curso, o que parece já ter reflexo no  aumento dos conflitos, mortes e violações de direitos humanos no meio rural do país, e na região Amazônica em particular.

Conexa à área ambiental, a política indigenista também tem sido alvo de fortes alterações. Dentre as muitas modificações que Bolsonaro realizou, encontra-se a retirada de poder que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) tinha em demarcar terras indígenas, passando este dever para o MAPA, sinalizando ainda a decisão de rever demarcações de terras já concedidas, como a da Raposa Serra do Sol, em Roraima, que abriga cerca de 20.000 indígenas (EL PAÍS, 2019) [6]. O governo mais tarde recuou desta medida diante das pressões do movimento indígena, da opinião pública e de setores progressistas do próprio congresso nacional, devolvendo a competência da demarcação de terras à FUNAI.

O recuo de Bolsonaro foi motivado em grande parte por razões econômicas. Os promotores do chamado “capitalismo verde” se tornaram um grande e importante grupo de interesse econômico e, em Davos, Bolsonaro precisou acima de tudo convencer investidores do potencial e segurança jurídica brasileira nesse aspecto. A posição do presidente quanto ao meio-ambiente e ao clima se reflete diretamente na de seus conselheiros e ministros. O chanceler Ernesto Araújo se destaca ao contrariar as evidências científicas da própria ONU, afirmando que “o aquecimento global é uma trama globalista” [7] e o ministro Salles, condenado por fraude ambiental [8], afirmou em abril para a Folha de São Paulo [9] que “a mudança climática é uma questão secundária” no reformulado Ministério do Meio Ambiente – ministério este que, por sua vez, extinguiu o Departamento de Políticas em Mudança do Clima e o Departamento de Monitoramento, Apoio e Fomento de Ações em Mudança do Clima, reduzindo em 95% a verba destinada às políticas de mudanças climáticas.

Em visita ao Chile em março, o Presidente declarou que “o Brasil não deve nada em preservação do meio ambiente”, e agradeceu o país visitado por tomar seu lugar para sediar a Conferência das Partes das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima – COP25, alegando restrições orçamentárias e a transição de governo como impeditivos. A decisão brasileira é bastante simbólica na medida em que nunca houve antes país que tivesse desistido de sediar uma COP, e especialmente por se tratar de um ator fundamental no tema, como vinha sendo o Brasil. Bolsonaro tomou esta decisão antes mesmo de ser empossado, e aproveitou ainda para criticar o Acordo de Paris e sinalizar a possibilidade de saída do Brasil do acordo – o que foi veementemente criticado internacionalmente, fazendo-o recuar da decisão posteriormente diante da perspectiva de o país Brasil perder financiamentos da cooperação internacional para o combate à mudança climática.

Durante três décadas, o país pôde desfrutar de uma posição relativamente confortável nas negociações multilaterais no que tange às questões ambientais e climáticas, principalmente devido à sua posição específica como o país mais rico em biodiversidade no planeta possuindo, ao mesmo tempo, um baixo índice de emissões de gás carbônico (CO2) advindo da sua matriz energética assentada em geração hidrelétrica, o que costuma ser o principal problema enfrentado pela maior parte das nações que dependem de fontes não fósseis como carvão, petróleo e gás para uma geração cada vez maior de energia. Neste período, o Brasil não permaneceu passivo diante das negociações diplomáticas entre as nações. Ao contrário, assumiu crescente protagonismo ao longo dos diferentes governos que se sucederam, tendo esta trajetória sido reconhecida pelas principais potências desenvolvidas e pelo mundo em desenvolvimento.

Historicamente, pode-se delimitar duas perspectivas diferentes no posicionamento da política externa brasileira sobre a Conferência das Partes sobre a Mudança do Clima. De 1995 a 2004, o Brasil se recusava a aceitar as regulações propostas nas negociações por ferirem os interesses nacionais e colocar os países em desenvolvimento um passo atrás dos desenvolvidos. O ano de 2009,  com a COP 15 em Copenhagen marcada pelo contexto do pós-crise financeira de 2008, apresenta uma mudança da ação diplomática brasileira nas COPs devido a pressão de órgãos internos e externos.

Ao mesmo tempo em que se abre mais à possibilidade de assumir metas de emissões, o Brasil passa a ter, sob liderança do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, protagonismo internacional na mediação dos interesses das nações em desenvolvimento e na cobrança firme sobre os países desenvolvidos para que de fato estes se engajassem em metas ousadas e assumissem suas responsabilidades históricas na crise do clima. Desde então, o Brasil vem se apresentando como ator importante nas COPs, como um integrante fundamental dos países em desenvolvimento, discutindo a necessidade de um multilateralismo forte entre as nações e se aliando à África do Sul, Índia e China (coalizão BASIC) nestas negociações.

As contradições do governo atual com o regime internacional de combate às mudanças do clima residem, também, em outras áreas. Assim como no caso de outros países exportadores de carne, como a Argentina, os governos brasileiros sempre tiveram que lidar com o fato de que, devido ao seu expressivo rebanho de animais ruminantes, o Brasil ocupa em 3° lugar (dados de 2016) dentre os principais emissores de gás metano (CH4), componente ainda mais nocivo ao clima do que o CO2.

No caso de Bolsonaro, porém, tendo o agronegócio e a ampla liberação da exploração de recursos naturais na Amazônia como prioridades para atender aos interesses da bancada ruralista, busca evitar que o governo seja confrontado no plano internacional com o fato de que a agropecuária e a mudança no uso da terra (basicamente, o desmatamento) representaram, em 2016, fonte de 73% das emissões de gases de efeito estufa [10].

Conclusão: Rumo ao ponto de não-retorno

O presente artigo trouxe uma análise não exaustiva das radicais transformações que o governo Bolsonaro vem promovendo nas políticas de meio-ambiente e clima, buscando apontar que esta marcha da insensatez fará com que o capital político-diplomático acumulado durante décadas pelo Brasil se perca rapidamente, ferindo assim, a posição privilegiada que o país sustentava internacionalmente no tema, além de acarretar em perda de investimentos, influência político-diplomática e possíveis acordos com atores que nutrem posicionamentos ambientais e climáticos fortes, como é o caso da União Europeia.

O mais recente capítulo da política aberta de elogio à devastação de Bolsonaro é sua proposta de aprovação em regime de urgência de uma Lei Geral sobre o Licenciamento Ambiental no País. A Lei terá como consequência o afrouxamento dos requisitos e fiscalização sobre Licenciamento e ainda abrirá a possibilidade de estados rebaixarem seus requisitos com relação à União, incentivando uma verdadeira corrida para o fundo do poço em termos de Licenciamento.

Por todo o exposto, não deve ser motivo de espanto que publicações estrangeiras especializadas como a revista Foreign Policy [11], já apontem que sob o atual governo o Brasil deixa de ser um líder nas negociações do clima para se converter em uma ameaça à sustentabilidade. O retrocesso na política externa para meio-ambiente e clima já é patente na opinião pública internacional [12] e pode ter consequências de longo prazo para a inserção internacional do Brasil e para a sua credibilidade diplomática  perante as demais nações.