Brasil e Argentina: A difícil consolidação de uma parceria fundamental

Por Gilberto Maringoni, Letícia Silva Ribeiro,
João Victor Pennacchio e Paulo Henrique Campos Gal

Texto apresentado em workshop do OPEB [1]

A eleição de Jair Bolsonaro, em outubro de 2018, consolidou um radical giro à direita na correlação de forças da América do Sul. Agora, os três principais países – Argentina, Brasil e Chile – formam uma tríade conservadora de impacto global. Com um detalhe importante: os dois primeiros enfrentam crises profundas, com encolhimento de seus mercados internos, aumento da miséria e sérios obstáculos para reativarem suas economias.

As relações entre Brasil e Argentina são marcadas há quase 200 anos pela desconfiança mútua. Na prática, a aproximação mais consistente entre Brasília e Buenos Aires tem pouco mais de quatro décadas. Apesar de não haver crises visíveis, há muitas fragilidades na relação. Embora Bolsonaro tenha proximidades políticas com Maurício Macri, há nuances importantes entre os dois e o alinhamento automático a Washington que o Brasil segue desde o início do novo governo tem criado arestas importantes.

A Argentina é o principal parceiro comercial brasileiro na América Latina e o terceiro no plano mundial, atrás da China e dos Estados Unidos. Entre janeiro e maio de 2019, a pauta de exportações brasileiras era composta por 89,6% de produtos manufaturados, segundo dados do Ministério da Economia, enquanto do lado argentino, essa soma chegava a 73,7% [2] .

Trata-se de um diferencial importante em relação a outros parceiros para os quais o Brasil vende produtos básicos e semimanufaturados, em sua maior parte. Desde, 2007, o Brasil é superavitário nas trocas com o país vizinho. A forte retração econômica argentina, em 2018, fez com que a balança passasse a registrar um ligeiro déficit.

A partir de 1991, essa relação foi mediada pelo Mercosul. À exceção da carne e da soja, os dois países não são concorrentes no mercado global, pois apresentam pautas de exportação diversas entre si.

Parâmetros iniciais

Brasil e Argentina formam as duas maiores economias da América do Sul. De acordo com dados consolidados no Anuário Estatístico da América Latina e Caribe (Cepal, 2019), a partir de fontes oficiais internas, a população argentina em 2019 soma 44,52 milhões de habitantes, enquanto o Brasil apresenta 212,81 milhões. Comparando-se com a população total da América Latina e Caribe (652 milhões), o Brasil representa 32,63% (quase um terço) do total e a Argentina, 6,82%.  

No terreno econômico, o PIB nominal do Brasil é de USD 2.046.471.000.000 e o da Argentina é de USD 631.141.800.000. O PIB per capita do primeiro é USD 9.690,90 e o da segunda é USD 14.305,00. Diante do PIB da América Latina e Caribe (USD 5.388.016.700.000), o Brasil representa 38% do total e a Argentina, 11,7%.

Para efeito de comparação, o estado de São Paulo apresenta os seguintes indicadores básicos: PIB de USD 532.965.030.000 e 45,5 milhões de habitantes. Em termos puramente quantitativos, Argentina e São Paulo se equivalem. Vale observar ainda os seguintes indicadores:

Pauta total de exportações – grupos de produtos Primários Manufaturados
Argentina 71.2 % 28.8 %
Brasil 62.4 % 37.6 %

Fonte: Anuário Estatístico da América Latina e Caribe (Cepal, 2019)

Bilateralismo complexo

Historicamente, as relações entre os dois países foram marcadas pela desconfiança mútua. A política externa brasileira começa na disputa da navegabilidade do rio da Prata com a província de Buenos Aires, logo após a Independência (1822). A Argentina não existia ainda como país unificado e logo as dissensões resultaram em uma guerra pela posse da Província Cisplatina, atual Uruguai. O conflito duraria dois anos (1826-27) e arrasaria as finanças nacionais brasileiras.

As disputas pela navegabilidade mantiveram arestas que não se dissiparam nem mesmo após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-70), período em que os países eram aliados. Ela se acentuou quando o Brasil estabeleceu a paz em separado com o Paraguai, passando por cima de interesses de seu vizinho, já então consolidado como Estado unitário.

Apesar de ser o primeiro país a reconhecer a República brasileira, as cautelas prosseguiram nas controvérsias de limites da região de Palmas – atual Santa Catarina -, entre 1888-98 – e quando o Brasil decidiu reaparelhar sua marinha de guerra, entre 1908-10. 

Duas importantes tentativas de integração posteriores falharam. A primeira, foi o projeto do barão do Rio Branco (1902-12) de estabelecer o Pacto ABC, entre Argentina, Brasil e Chile, para a constituição de uma hegemonia compartilhada na América do Sul, com autonomia em relação aos EUA. A segunda tentativa mal saiu do papel. Em 1941, por iniciativa de Buenos Aires, tentou-se estabelecer uma união aduaneira, que teria na pauta dois produtos centrais, têxteis, pelo lado brasileiro, e trigo, por parte da Argentina. Interferências de Washington e um golpe de Estado na Argentina travaram o processo.

Nem mesmo a constituição da Associação Latino-americana de Livre Comércio (Alalc), em 1960, composta por Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai, Peru e Uruguaitiveram pleno êxito, em uma década marcada por golpes militares dos dois lados do Prata.

Foi somente a partir dos anos 1970 que as tensões entre os dois países começaram a ser aparadas.

A consolidação da segunda maior geradora de energia do mundo, a usina de Itaipu, foi precedida pela controvérsia acerca do uso das águas na bacia hidrográfica do Prata. O Tratado de Itaipu data de 1973, firmando entendimentos entre Brasil e Paraguai. Entretanto, foi apenas com o Tratado Tripartite de Itaipu-Corpus, de 1979, que se conciliaram os interesses argentinos, paraguaios e brasileiros [3].

Ponto importante para a consolidação dos entendimentos se deu em 1982, quando o Brasil fez coro com a demanda argentina pelas ilhas Malvinas, um protetorado britânico no Atlântico Sul. Buenos Aires declarou guerra à ex-potência hegemônica. Esboçando a política que viria mais tarde a ser chamada de Sul-Sul, Brasília não apenas se colocou contra Londres e Washington, como denunciou na ONU o caráter ilegítimo das pretensões britânicas.  

Mas o fator decisivo para uma real aproximação foi o fim das ditaduras militares, na Argentina (1983) e no Brasil (1985). A democracia foi o grande fermento da constituição do mais ousado projeto de integração até então, o Mercosul, com a adesão de Paraguai e Uruguai, no Tratado de Assunção, em 1991.

Tais fatores pavimentam as pontes políticas entre o Palácio do Planalto e a casa Rosada, nos anos 1990 e 2000, apesar de percalços como a desvalorização acidentada das moedas dos dois países pouco antes da virada do século e a decisão brasileira de não apoiar a renegociação forçada da dívida pública argentina, em 2004-05, que restringiu fortemente o acesso do país ao mercado internacional de crédito.

Qual o sentido dessa brevíssima reconstituição histórica? Mostrar as dificuldades e fragilidades de uma política de integração. Mesmo levando-se em conta que Argentina e Brasil ocupam lugares semelhantes na divisão internacional do trabalho – cada vez mais como fornecedores de commodities e importadores de manufaturas -, os entendimentos bilaterais podem sofrer abalos, a partir de decisões de governos de turno.

Aproximação nos governos Lula/Dilma e Kirchner

As vitórias eleitorais de Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil, 2002), Nestor Kirchner, (Argentina, 2003), Tabaré Vázquez (Uruguai, 2004), Rafael Correa (Equador, 2005), Evo Morales (Bolívia, 2005), Daniel Ortega, (Nicarágua, 2006), Fernando Lugo (Paraguai, 2008) e de Michele Bachelet (Chile, 2006) alteraram por mais de uma década a configuração política regional.

As administrações dessa safra tiveram o mérito de colocar demandas sociais no centro da agenda nacional, sem tocar em privilégios seculares de setores dominantes. Tais políticas atingiram relativo sucesso no período 2004-12, durante o chamado boom das commodities.

Os países da América do Sul passaram a ter balanças comerciais superavitárias naquele período. A Argentina viu crescerem fortemente suas vendas de trigo e carne. A soja, o milho, a carne e minérios in natura tiveram papel decisivo para o crescimento econômico do Brasil.

Esse foi o período áureo da integração entre os dois países. A economia argentina se recuperou de anos de baixo crescimento, voltou ao mercado internacional de crédito e o Brasil realizou um ensaio desenvolvimentista [4], com forte expansão do mercado interno e integração social interna. 

Tal aquecimento alavancou mercados internos, deu margem a elevações generalizadas de salários, à queda nos índices de desemprego, ao acesso à educação e à expansão de serviços públicos. Além disso, os novos governos articularam um processo democrático de integração regional, norteado por argumentos que envolveram soberania, desenvolvimento, relativa distribuição de riquezas e tentativas de reconfiguração do papel do Estado. Nesses anos não apenas o Mercosul ganhou dimensão política, para além de sua marca inicial de união aduaneira, como foi criada a União de Nações Sul Americanas (Unasul), entre outras iniciativas. Em um âmbito ampliado, em 2010 veio à luz a Celac – Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos –  organismo intergovernamental, composto por 33 países.

Marcos de uma integração virtuosa

Em maio de 2018, a Cepal lançou o trabalho Integración productiva entre la Argentina y el Brasil – Un análisis basado en metodologías de insumo-producto interpaís, assinado por Anahi Amar e Fernando Garcia Díaz, com dados das relações comerciais bilaterais consolidados entre 1995-2011. A investigação capta o auge do ciclo dinâmico das commodities e analisa o perfil das transações entre os dois países. Vale a pena destacar alguns trechos:

Desde a criação do Mercosul, a Argentina tendeu a se especializar na exportação de bens finais e o Brasil como fornecedor de bens intermediários e, em parte como consequência dessas características, o efeito multiplicador associado às exportações bilaterais é maior no caso do Brasil. do que na Argentina. (...) Os fluxos comerciais totais entre os dois países cresceram em um ritmo mais rápido [entre 1996-2011] do que o comércio global (8,4% anuais na Argentina e 10,5% no Brasil, comparado a 7,8% no mundo) [5] (…) Os complexos produtivos nos quais se identifica um maior grau de integração vertical bilateral são os setores automotivo, químico e plástico e o complexo metal-mecânico em sentido amplo [6].

Vale ressaltar que no setor automotivo, a integração se dá mais pelas estratégias produtivas globais das empresa do que por diretrizes estatais do Mercosul. Apesar do tom otimista da análise face a sérios problemas enfrentados nas negociações do bloco, suas conclusões merecem ser levadas em conta:

Nesse sentido, a integração pode ser considerada virtuosa, pois levou ao desenvolvimento progressivo não apenas dos respectivos mercados internos, mas também à expansão de setores com comprovados efeitos multiplicadores em termos de demanda, emprego e inovação sobre as estruturas produtivas, como é o caso da indústria automotiva, metalurgia ou química[7].

Inserção internacional

Esse relativo surto de prosperidade apresentou, no entanto, sérios limites, que não foram transpostos. Não se alteraram as posições tradicionais dos países da região na divisão internacional do trabalho. A América do Sul reafirmou suas características de exportadora de produtos primários e importador de manufaturas. Embora Brasil e Argentina, em especial, tenham vivido processos de industrialização acelerada no período 1930-80, a partir dos anos 1990, a tendência se inverteu e os governos do período não lograram concretizar processos industrializantes, o que reforçou o papel periférico de suas economias.

Ou seja, as pautas exportadoras apresentam forte preponderância de produtos de baixo valor agregado, enquanto na importação é significativo o peso de bens de alto valor agregado. Com elevado grau de dependência na comercialização de tais produtos, não é de se estranhar que a queda dos preços internacionais deixasse mais clara a vulnerabilidade desses países.

A crise de 2008-09, que atingiu especialmente Estados Unidos e Europa Ocidental, teve a característica de encolher mercados consumidores de produtos industriais chineses – em especial bens duráveis – e de atingir a própria economia do país asiático. A retração chinesa e de países centrais correspondeu também a uma menor demanda por produtos primários, o que derrubou seus preços. Os governos reformistas da América Latina enfrentaram, assim, um paradoxo. Alguns buscaram autonomia em relação às diretrizes econômicas neoliberais, emanadas a partir dos organismos multilaterais e dos países centrais, esboçaram um novo papel social para o Estado, reafirmaram sua soberania política, mas não lograram alterar significativamente a estrutura econômica de seus países.

A pesquisadora Míriam Gomes Saraiva, da UERJ, assim sintetiza a política externa do primeiro governo de Dilma Rousseff:

O papel proativo assumido durante o governo anterior [Lula] e a participação em debates sobre diferentes temas da política internacional deram lugar a movimentos espasmódicos, sem uma continuidade, sem um projeto de inserção estratégica de mais longo prazo. O comportamento do governo de Rousseff frente à América do Sul não foi muito diferente. As iniciativas se contraíram e o interesse foi reduzido [8].

Desindustrialização e crise

Argentina e Brasil vivem, pelo menos desde 2010, acentuados processos de desindustrialização, seja pela manutenção do câmbio em patamares elevados – caso em especial do Brasil – seja pelo abandono de políticas industriais e de desenvolvimento, a partir de 2015, caso de ambos.

Pelo lado argentino, a eleição de Maurício Macri resultou na volta do caminho iniciado duas décadas antes e interrompido pelos governos do casal Kirchner. Restrições creditícias, contenção dos mercados internos – redução da demanda – e especialização regressiva são os grandes guarda-chuvas de política econômica que enfraquecem a dinâmica de comércio de lado a lado.

No caso brasileiro, a queda da participação da indústria na formação do PIB é expressiva ao longo das últimas décadas, fruto em especial, da manutenção da sobrevalorização da moeda nacional, como mecanismo de combate à inflação interna. Em 2014, esse indicador apontava uma participação de 11,8%, abaixo do percentual de 12,1%, registrado em 1947, quando o valor da produção da indústria de manufaturas ultrapassou o da agricultura! É importante lembrar que em 1985, a indústria manufatureira representava 21,8% do PIB, índice de economias avançadas.

No Brasil, a partir de 2015-16, a opção por um duro ajuste fiscal resultou na mais profunda depressão desde 1900, segundo o IBGE. 

A desaceleração da economia argentina, por sua vez, se manifestou fortemente a partir do final de 2010/início de 2011. A partir de 2016, a variação do PIB se deu como mostrado na tabela abaixo:

 Variação do PIB em porcentagem

Ano 2015 2016 2017 2018 2019 (estim.)
Argentina 2,1 – 1,8 2,9 -2,8 -1,7
Brasil – 3,8 -3,6 1 1,1

Fonte: Argentina – Banco Mundial (https://data.worldbank.org/country/argentina)
Brasil; IBGE – (https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/lista_tema.aspx?op=1&no=1)

A contração da economia argentina resulta em queda de exportações brasileiras para o país. O Indicador de Comércio Exterior (Icomex – FGV), de junho de 2019 assinala:

Observa-se que as exportações para a Argentina vêm registrando recuos desde o início do ano devido à crise econômica do país. (…) Na comparação entre o acumulado do ano [em volume] até maio de 2018 e 2019, o crescimento das exportações para o mercado estadunidense foi de 20,8%, seguido da China (3,6%). Na Argentina, o terceiro principal mercado, as exportações recuaram em 41%. Apesar de menor dinamismo exportador para a China em comparação com os outros parceiros, a participação do país na pauta exportações do Brasil no período de janeiro a maio passou de 26% para 27% entre 2018 e 2019, ao percentual dos Estados Unidos cresceu de 11,1% para 13,6% e da Argentina caiu de 7,8% para 4,6% [9] .

De acordo com o Ministério da Economia, entre maio de 2018 e maio de 2019, o Brasil teve déficit de USD 169,6 milhões com a Argentina [10].

Entre janeiro e maio de 2018, as exportações para o bloco somaram 22% do valor total exportado pelo Brasil. Como expressão da crise argentina, entre janeiro e maio de 2019, esse percentual caiu para 16%. As exportações para este país representaram 76% do total das vendas para o Mercosul (USD 9,58 bilhões) no primeiro trimestre do ano passado. Entre janeiro e março de 2019, a porcentagem se reduziu para 66% (USD 6,5 bilhões). Desse total, 30,5% representam a venda de veículos automotores e seus componentes. A tarifa externa comum (TEC), do Mercosul, incentivou a exportação brasileira de automóveis para os países membros. 

Nem mesmo a constituição do Mercosul conseguiu juntar forças para mudar qualitativamente a inserção internacional das economias do bloco. Parte das cadeias produtivas dos países não é complementar entre si. Antes, seguem a rota e a estratégia de negócios traçada a partir das sedes das transnacionais, nos países centrais.

A ação das grandes corporações privadas é francamente desagregadora. A tentativa de integração parte muito mais do poder de Estado do que da iniciativa privada.

Com uma lógica global de procura por mercados e baixos custos de produção, as transnacionais operam em faixas por vezes distintas aos das intenções do poder público. Com isso, o risco de desagregação do Mercosul é grande. Os países do bloco começam a buscar acordos bilaterais fora dele. Exemplos evidentes são as tratativas Argentina-China, a aproximação da Venezuela com o país asiático e as tentativas de acordo de Brasil e Uruguai com a União Europeia.  

O pós-golpe e o governo Bolsonaro

Logo após o golpe de abril de 2016, o governo de Michel Temer empreendeu uma virada conservadora em várias frentes, entre elas a política externa.

O primeiro servidor de Temer para a área, José Serra, ainda em maio daquele ano, criticou asperamente os governos de Venezuela, Cuba, Equador e Bolívia, além do secretário-geral da Unasul, Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia. Todos haviam manifestado estranheza ao golpe no Brasil.

A partir daí, o Brasil voltou a se aproximar da Argentina, agora governada por Macri. O objetivo foi criar uma aliança conservadora continental – que envolveu o Chile de Sebastián Piñera – para isolar o que denominam genericamente de “bolivarianos”.

A primeira viagem de José ao exterior foi à Argentina, para assinar o memorando de entendimento para a criação do Mecanismo de Coordenação Política Brasil-Argentina, para aprofundar o intercâmbio e a coordenação de opiniões sobre as agendas bilaterais, regionais e globais. Temer visitaria Buenos Aires em outubro e Macri aportou em Brasília em fevereiro de 2017. Foram assinados quatro atos que, segundo nota oficial brasileira, tinham “o objetivo de aumentar a parceria no intercâmbio comercial, na prestação de serviços de saúde em regiões fronteiriças e na cooperação diplomática e consular”. Também publicou-se uma carta conjunta para o Banco Interamericano de Desenvolvimento “pedindo a realização de estudos sobre viabilidade de criação de uma agência para a convergência regulatória de Brasil e Argentina”.

Em agosto do ano seguinte e a dois meses das eleições presidenciais no Brasil, novo memorando foi firmado. Dessa vez, o objeto era a regulamentação comercial do setor automotivo, com propostas de adequação nas áreas de segurança veicular, emissões sonoras e de gases poluentes, eficiência energética e requisitos de avaliação da conformidade de autopeças. Em dezembro, os dois países assinaram a Declaração de Montevidéu, sobre a Cooperação Nuclear Brasil-Argentina. 

E o futuro?

Diante desse quadro, a pergunta inevitável é: qual a política do governo Bolsonaro – que tem sua política externa fortemente pautada pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos – para com nosso principal parceiro no continente? Na visita realizada ao Chile, o presidente brasileiro anunciou a criação de uma entidade denominada Prosul, que substituiria a Unasul. Não há maiores informações divulgadas oficialmente a respeito.

Bolsonaro visitou a Argentina, na primeira semana de junho último. O périplo foi precedido por uma surpreendente entrevista do mandatário brasileiro ao jornal La Nación. Sem meias palavras, o presidente toca em uma das feridas abertas do país vizinho e fala às claras de um acordo dos porões da repressão dos anos 1970-80 que nenhum chefe do Executivo brasileiro jamais admitiu:

La Nación — 30 mil mortos, na Argentina, é uma cifra muito relevante. Você acredita que esse número de mortos mudou algo para melhor na Argentina?

Bolsonaro — Não, não. Tivemos a Operação Condor entre vários países e os militares daquela época evitaram que o país caísse no comunismo. Foi isso o que aconteceu. Quantas pessoas morreram ou desapareceram e por quais motivos? Que cada país escreva sua história…

Não contente em apoiar tacitamente uma ditadura (1976-83) que representa um período doloroso, o Brasileiro ainda adentra os meandros da política argentina:

Cristina Kirchner foi aliada de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff. (…) Espero que o povo argentino reflita muito sobre isso nas eleições [11].

Trata-se de pacto não escrito nas relações internacionais: líderes institucionais de países com boas relações entre si não palpitam sobre a vida interna de cada um. A depender de como estará o governo Bolsonaro em outubro – data das eleições -, a declaração pode ser um presente de grego para Macri.

O mais grave, contudo, foi o anúncio – em março – de que o Brasil importará 750 mil toneladas anuais de trigo, sem cobrança de taxas aduaneiras, dos Estados Unidos. Isso representa cerca de 10% de nossas importações da Argentina, realizadas com taxas de 10%. É algo que fará diferença para um exportador que tem sua economia mergulhada em recessão

O governo Donald Trump busca ampliar sua influência na região. Somando-se às declarações de Paulo Guedes, ministro da Economia, de que, nem o Mercosul e nem a Argentina seriam prioridades, o futuro desenha várias interrogações para políticas de integração soberana. A opção tende a prejudicar as relações com a Argentina, assim como cria arestas com o maior parceiro comercial brasileiro, a China.

Notas

 


[1] Integrantes do subgrupo de América Latina.

[2] Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços

[3] WEBER, Leonardo et all, “O papel do Brasil como indutor do processo de integração energética regional na América do Sul”, revista Perspectiva, v. 7, no. 13, pág. 105

[4] A expressão é de André Singer

[5] AMAR, Anahí e Garcia Díaz, Fernando, Integración productiva entre la Argentina y el Brasil – Un análisis basado en metodologías de insumo-producto interpaís, Cepal, Buenos Aires, 2018 Pág. 7. Disponível em https://bit.ly/2L4rUL4 (Consulta realizada em 22-23.06.2019. Tradução nossa)

[6] Idem, pág. 9

[7] Idem, pág. 73

[8] SARAIVA, Míriam Gomes, “Balanço da política externa de Dilma Rousseff: perspectivas futuras?” In Relações Internacionais no.44, Lisboa, dez. 2014. (https://bit.ly/2LBrDie). Consultado em 22.06.2019

[9] Indicador de Comércio Exterior – Icomex – FGV (https://bit.ly/2LGMSzt). Consultado em 23.06.2019

[10] Ministério da Economia, Indústria, Comércio Exterior e Serviços. Consulta em 23.06.2019

[11] La Nación, 01.06.2019. Acesso em 02.07.201