União Europeia-Mercosul: um acordo regressivo

Por Giorgio Romano
Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil

No dia 28 de junho, houve o anúncio político da conclusão da fase de negociação do Acordo de Associação entre a União Europeia (28 países, incluindo ainda o Reino Unido) e o Mercosul. O acordo tem três pilares: econômico-comercial, político e cooperação. E, mesmo o primeiro pilar vai muito além de livre-comércio. Envolve regras sobre compras governamentais, investimentos, atuação de empresas estatais, propriedade intelectual, denominações de origem geográfica, entre outros. Em relação ao comércio propriamente dito, em parte se negociou livre comércio, mas, para os segmentos mais importantes como a exportação agrícola do Mercosul, se negociou justamente a restrição comercial, por meio de cotas.

Contexto político brasileiro

A gestão do ministro Ernesto Araújo à frente do Itamaraty destoa de tudo que já se viu na política externa brasileira. Em sintonia com o presidente Jair Bolsonaro, ele é integrante de uma ala neoconservadora que causa risos e espantos. O que parecia ser uma agenda chamada antiglobalista, porém, aparece cada vez mais como um para-raios para bagunçar a discussão. Na realidade, quem controla a política externa é a ala do ultra-liberalismo comandada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

O Brasil pleiteou ser membro de um dos pilares da globalização liberal: a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e fechou o acordo de parceria com a União Europeia. Ele contém um capítulo inteiro sobre direitos ambientais e trabalhistas, com referências a normas de organizações multilaterais desprezadas por Donald Trump, líder do chamado “pan-nacionalismo ocidental”. Assim, em um dia, o chanceler afirma que “o aquecimento global é uma trama globalista”. Em outro, anuncia com orgulho um acordo com muitas referências ao Acordo de Paris e outros que tentam dar uma resposta multilateral aos problemas ambientais. O acordo combate também o trabalho infantil, destoando das declarações do próprio presidente acerca do tema.

Parecia que a pauta excêntrica do Itamaraty iria atrapalhar a agenda de uma inserção liberal. O que se verifica, entretanto, é que se instalou uma dinâmica clara: cada vez que a agenda liberal corre risco, a turma excêntrica recua.

 Antecedentes

O primeiro bloco comercial contendo economias do centro e uma da periferia foi o Nafta, entre Estados Unidos, Canadá e México, em 1994, com grande repercussão na América Latina. No mesmo ano, surgiu a ideia de expandi-lo para todas as Américas, por meio da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). O Brasil entrou nessa negociação, mas preservando o Mercosul, e usando algumas estratégias contra o apetite norte-americano, entre as quais abrir outra frente de negociação, com o Mercado Comum Europeu, antecessor da União Europeia.

Então, o Mercosul assinou um Protocolo de Intensões em Bruxelas, iniciando em 1994 o processo concluído no mês passado. As negociações se arrastaram nos anos seguintes. Foi um período difícil para o Brasil, com o impacto das crises asiáticas e russa, e a participação da indústria no PIB caindo para 14% no começo do século, de um patamar de 26% em 1980 e 21% em 1990.

O programa que elegeu Lula presidente, em 2002, previa um esforço para recuperar o tempo perdido, lançando mão de mecanismos como incentivo ao conteúdo local, compras governamentais e oferta de crédito por bancos públicos. Nos anos que se seguiram, houve uma modesta retomada da indústria brasileira, que gerou emprego, exportação e aumento da sua participação para 17,8% do PIB, na véspera da crise financeira global. Já a partir de 2010, a constante valorização cambial, o acirramento da concorrência internacional e o baixo desenvolvimento tecnológico da indústria brasileira fizeram com que se perdessem rapidamente os ganhos do período 2004-2008.

Com a derrubada da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, abriram-se as portas para a retomada de uma política de inserção liberal, com implicações sobre a desindustrialização. Para o governo atual, isso não é problema, a julgar pela extinção da política de conteúdo local, retirada da função indutora do desenvolvimento da Petrobras e desmonte do BNDES. O ministro Paulo Guedes já expressou seu desejo por uma abertura unilateral, para provocar o famoso choque de competição, já anunciado no passado pelos governos de Fernando Collor e FHC. O desejo dos governos no Brasil e Argentina, agora, foi de fechar o acordo de qualquer jeito, embora houvesse a necessidade de obter ganhos para o agronegócio, base política importante.

Já na Europa, onde se encerra o mandato do Jean-Claude Juncker à frente da Comissão Europeia, os países do bloco estão se recuperando lentamente da crise financeiro-econômica de 2008 e ameaçados, de um lado, pelo unilateralismo de Trump e, de outro, pela expansão do capitalismo chinês. Foi nessa gestão que se fechou os dois outros grandes acordos que a UE tem: com Canadá e Japão, que entraram parcialmente em vigor respectivamente em 2017 e 2019. Por outro lado, Trump enterrou a proposta de relançar as negociações para um acordo econômico-comercial entre a UE e os Estados Unidos (Transatlantic Trade and Investment Partnership – TTIP).[1]

Há, ainda, desde 2018, um grande debate sobre o futuro da indústria europeia, à luz da nova rivalidade interestatal (UE-China) e do acirramento da competição oligopolista (a indústria 4.0, com ênfase na inteligência artificial). Os ministros da Economia da França e Alemanha lançaram no início do ano um manifesto conjunto “Por uma Política Industrial para o século 21”[2],2 onde defendem a necessidade de ações para que a Europa possa se manter como uma potência industrial. O prazo colocado para implementar uma nova política é 2030. Uma das propostas concretas para facilitar a expansão das empresas é justamente abrir os mercados de compras governamentais por meio de acordo de reciprocidade.

Até então, havia na UE apoio histórico ao acordo com o Mercosul, por parte de Espanha, Itália, Portugal e Suécia, e resistência por parte de França e Irlanda, com a Alemanha ficando mais distante. Isso mudou. A Alemanha sabe que precisa assumir uma postura ativa para defender sua manufatura e posições no mundo e também no Mercosul. Para isso, interessa não só a abertura comercial para seus produtos, mas também a convergência regulatória sobre compras públicas, transparência, concorrência e restrição à atuação de empresas estatais. Além disso, a afirmação do capitalismo europeu diante da China e dos Estados Unidos envolve não somente a defesa de suas empresas, negócios e padrões tecnológicos, mas também uma identidade, importante para sua coesão política interna.

Embora exista o costume de se referir à América Latina como o quintal dos EUA, no caso do Mercosul, o que predomina é o capitalismo europeu. Mais de 60% do estoque dos investimentos externos produtivos têm origem na Europa. Essa posição está sendo ameaçada pela China, que já se tornou o principal parceiro comercial do bloco (ver tabela) e vem se tornando um grande investidor, com os seus importantes investimentos diretos.

Tabela – Principais parceiros comerciais do Mercosul – 2018

 ImportaçãoExportaçãoTotal
China22,9%25%24,1%
União Europeia21,3%19%20,1%
Estados Unidos17%12,2%14,4%

Fonte: Directorate-General for Trade Comissão Europeia

 Como avaliar o acordo

A redução de tarifas de importação do lado da UE será mais rápida do que o corte tarifário do Mercosul, mas serão mantidas cotas para regular a entrada de produtos agrícolas sensíveis, como carnes, aves, açúcar e etanol. A lógica de negociação tarifária foi de redução total em prazos de 0 a 10 anos (UE) e 15 anos (Mercosul), e de abertura parcial (cotas). A União Europeia aposta em aumento das exportações para automóveis, autopeças, máquinas e produtos químicos, além de alguns setores agrícolas específicos, como o vinho.

Para o governo brasileiro, o acordo está em linha com a política econômica, com o argumento de que o pacto vai acelerar o ritmo das reformas internas, além de limitar as escolhas de políticas públicas de futuros governos. Assim, o que até ontem era considerado “concessão”, para a atual gestão se tornou auxílio para avançar com sua agenda, para a alegria dos europeus.

Há, também, por parte da equipe econômica, a ilusão de que a abertura por meio de acordos irá aumentar os investimentos das multinacionais no Brasil. De fato, haveria muito a conquistar se o Brasil conseguisse aproveitar melhor sua condição de um dos maiores receptores globais de investimentos produtivos, até agora baseada em fatores de atração, como recursos naturais e mercado interno e regional. Dar estímulos para que as empresas multinacionais usem o território brasileiro como plataforma de exportação pode ser de interesse do país, mas apenas se for parte de uma estratégia de desenvolvimento industrial-tecnológico, como foi o caso da China.

Indústria

Pelo acordo, a tarifa de 35% cobrada sobre a importação dos automóveis europeus cairá para 17,5% em dez anos, e para zero no 15º ano. Haverá também uma cota provisória de 50 mil carros para o Mercosul a partir da entrada em vigor do acordo, sendo 32 mil para o Brasil. As montadoras tenderão a usar essa cota para exportar carros de luxo, já que nenhuma menção à transferência de tecnologia, ou obrigações de investimento no país, consta no acordo.

O setor automobilístico passa por uma fase de reestruturação brutal, com o avanço dos carros elétricos, o que exige investimentos e novas tecnologias. Nos próximos quinze anos, nos quais o setor passará por mudanças profundas, o Mercosul abrirá seu mercado sem cota e a tarifa zero. O que será produzido ainda aqui? Pela lógica do mercado, serão as peças e componentes de menor valor agregado e, talvez, a montagem final. Chegará a modernidade, sim, mas como consumo para alguns, não como produção.

Há de se considerar ainda que o Mercosul é importante para exportação da manufatura tanto da Argentina quanto do Brasil. Este comércio biliteral já estava sob pressão da concorrência chinesa. Agora perderá também as preferências diante a indústria europeia.

Compras governamentais

Os governos preocupados com o desenvolvimento inserem as compras públicas em políticas de fomento industrial-tecnológico, privilegiando empresas que operam no país. Esse foi um ponto que travou as negociações em 2004. Hoje, é uma política da qual os governos de Brasil e Argentina já estão abrindo mão unilateralmente, por convicção liberal pura. Ou seja, um prato cheio para o apetite das empresas europeias, de olho nas licitações públicas em áreas como infraestrutura, saúde, entre várias outras. O próprio governo brasileiro admitiu que será, agora, “mais fácil para empresas europeias disputar e vencer contratos governamentais”.

Empresas estatais

Um item do acordo é a restrição à atuação de empresas estatais, que podem atuar somente com base em considerações comerciais, ou seja, como se fossem empresas privadas. Ora, se for assim, não há mais porque manter a empresa como estatal. A exceção óbvia é a prestação de serviços públicos. Novamente, para os governos de plantão no Brasil e na Argentina, não há nenhum problema nisso. Pelo contrário, harmoniza com o sonho de Paulo Guedes de privatizar tudo e mais um pouco. Observa-se que normatizar a restrição para a atuação de empresas estatais se tornou também central na disputa entre China e EUA, que contam com apoio dos europeus, a fim de conter a ascensão do capitalismo chinês, que opera com um mix de empresas estatais, semi-estatais e privadas.

 A armadilha do meio ambiente

Ernesto Araújo comemorou o acordo como uma demonstração de que o Brasil estaria se “reconectando com parceiros tradicionais”. Ele finge não saber que o que interessa aos europeus são as oportunidades comerciais e econômicas ofertadas para suas empresas, e que há pouca disposição de se conectar à agenda trumpista-tropical. Há, particularmente por parte da Alemanha, o argumento, voltado principalmente para a opinião pública interna, de que o acordo poderá amarrar o Brasil a normas de proteção ambientais e trabalhistas. Essa discussão é complexa.

De um lado, temos um governo no Brasil que, aos olhos do mundo, faz questão de minimizar e banalizar a questão ambiental. De outro, uma disposição do mesmo governo de assinar acordos na direção contrária, para preservar não o meio ambiente, mas a pauta liberal. O truque é que não há nenhuma vinculação entre o capítulo comercial e aquele a respeito do desenvolvimento sustentável. Ou seja, violações das normas estabelecidas no último preveem seu próprio mecanismo de resolução de controvérsias, em tese, prevendo a participação de sociedade civil e organizações sindicais. Sim, aquelas que estão sendo massacradas pelo governo Bolsonaro. O próprio governo brasileiro enfatizou que são normas “para europeu ver”, ao publicar que “este capítulo não está associado a sanções do mecanismo de solução de controvérsias do acordo”.

Há, porém, a famosa e controversa cláusula de precaução, que foi incluída justamente nesse capítulo. Os europeus conseguiram incluí-la desta vez, o que sempre foi vetado pelos negociadores do Mercosul. Ela permite medidas de proteção em casos de risco sério de degradação ambiental ou de saúde e segurança para sua população.

É evidente, entretanto, que se trata de uma cláusula que pode ser invocada por razões protecionistas – agradando setores agrícolas europeus. Ao mesmo tempo que pode defender preocupações mais pertinentes, por exemplo, quando se suspeitar da utilização de agrotóxicos proibidos ou de carne de rebanhos criados em áreas de desmatamento.

Próximos passos

O que existe, por ora, é um texto que precisa passar por análises jurídicas das duas partes (validação) para, após eventuais ajustes, elaborar-se a versão final do acordo. Esse processo envolve a tradução para todas as 24 línguas oficiais da UE. A versão final deverá, então, ser aprovada pelos executivos dos países do Mercosul e pela Comissão Europeia. Em seguida, será definida a data de assinatura efetiva do acordo, que será então submetido aos poderes legislativos das partes antes de ser finalmente ratificado pelos presidentes.

Esse processo poderá levar anos, mas a parte comercial poderá entrar em vigor provisoriamente após a aprovação pelo Parlamento Europeu e a ratificação pelos países do Mercosul. O governo brasileiro trabalha para que isso possa acontecer para cada sócio do Mercosul individualmente. Ou seja, o Brasil não ficaria refém do ritmo dos parlamentos nos demais países, tornando possível colocar o acordo em vigor ainda no primeiro governo Bolsonaro.

Considerações finais

O acordo em si não vai, como quer fazer crer o governo, extinguir as desvantagens competitivas do que resta da indústria brasileira. Tampouco ele é a causa desses problemas. O aprofundamento da especialização em exportação de matérias-primas, embora venha de longe, é parte das políticas implementadas por este governo e o acordo opera em sintonia com esta visão.

Há de se esperar uma discussão acalorada na campanha eleitoral na Argentina. Já no Brasil, fora alguma voz isolada, o empresariado e a imprensa comercial apoiam e copiam os argumentos do governo.

Para a esquerda, o acordo reforça a necessidade de repensar um projeto para o país. Críticas pontuais ao conteúdo ou ao processo de negociação são válidas, mas nunca suficientes. O acordo só reforça processos já em curso. É preciso repensar políticas que possam retomar o desenvolvimento industrial-tecnológico em harmonia com a 4ª revolução industrial, e que repensem também a inserção internacional do Brasil. Há de se entender por que os avanços alcançados entre 2004-2008 caíram como um castelo de cartas em seguida.

Considerando a forte presença de multinacionais – em particular europeias – no Brasil, é essencial avançar em políticas que possam provocar aumento da produtividade e estímulo à geração de capacidade tecnológica endógena interna a partir desses investimentos. Isso não acontece somente com a abertura. A China pode servir de exemplo, mas justamente essas políticas estão sendo atacadas por Estados Unidos e UE. O acordo com os europeus tende a levar o Brasil a um futuro distante do que se deseja ao aprofundar a especialização regressiva, mas qual é efetivamente a inserção internacional que o campo democrático-popular busca defender?

Giorgio Romano Schutte é coordenador do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB) da UFABC.

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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: Alex Wilhans, Alexandre Barbosa, André Calixtre, André Biancarelli, Angelo Del Vecchio, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clelio Campolina, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fabio Terra, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, Isabela Nogueira de Moraes, Ítalo Pedrosa, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Luiz Gonzaga Belluzzo, Marcelo Manzano, Marcelo Miterhof, Marcos Costa Lima, Marta Castilho, Maryse Farhi, Nelson Barbosa, Paulo Nogueira Batista Jr., Pedro Barros, Ricardo Carneiro, Tânia Bacelar e William Nozaki.

[1] A proposta para um acordo entre os EUA e a UE nasceu na década de 1990(Transatlantica Free Trade Agreement), mas não avançou até ser retomado pelo Obama em 2013. Trump enterrou o TTIP, mas continuam conversas sobre um acordo mais modesto.

[2] https://www.bmwi.de/Redaktion/DE/Downloads/F/franco-german-manifesto-for-a-european-industrial-policy.pdf?__blob=publicationFile&v=2