Por Lucas da Silva Tasquetto
Em meio à pandemia do coronavírus e a uma recessão global, a escolha do novo dirigente deverá buscar reabilitar o multilateralismo comercial, ainda que a conflituosa relação entre Estados Unidos e China prometa permanecer no centro da realidade política para a OMC. Há diversas variáveis na mesa. De um lado, nunca uma mulher ocupou a posição de Diretora-Geral, ao mesmo tempo em que se ressalta a pressão das delegações africanas por um nome oriundo de seu continente. De outro lado, depois de sete anos com um brasileiro no posto, há pressões para a escolha de um representante de um país desenvolvido
Em reunião de todos os Membros da OMC (Organização Mundial do Comércio), em 14 de maio, o diretor-geral da Organização, o brasileiro Roberto Azevêdo, anunciou que renunciaria ao cargo em 31 de agosto, um ano antes do previsto para o término de seu mandato. A saída se dá no contexto de uma pandemia global, profunda recessão, intensificação das tensões entre Estados Unidos e China, e crescente adoção de mecanismos de proteção das economias nacionais. De imediato, a OMC dá início ao processo de escolha de seu sucessor, ainda em tempo para a preparação da 12ª Conferência Ministerial, adiada para junho de 2021, em Nur-Sultan, no Cazaquistão.
Trajetória de Roberto Azevêdo
Roberto Azevêdo foi o sexto Diretor-Geral da OMC, além de três outros dirigentes que comandaram o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), organismo multilateral que a precedeu. Dentre esses, foi o primeiro latinoamericano no posto, sucedendo no total a seis europeus, um neozelandês e um tailandês. Assumiu a posição em 1º. de setembro de 2013, cumprindo um mandato de quatro anos, estendido para um novo mandado a partir de 01 de setembro de 2017. Em seu período como Diretor-Geral, supervisionou três conferências ministeriais da OMC – Bali, em 2013; Nairóbi, em 2015; e Buenos Aires, em 2017.
Roberto Azevêdo ingressou no corpo diplomático brasileiro em 1984, e desde então acumulou ampla experiência em questões de economia internacional e política comercial, em especial no âmbito da solução de contenciosos comerciais. Foi Coordenador-Geral de Contenciosos (2001-2005) no Itamaraty, em um processo em que a experiência acumulada do Brasil nos litígios comerciais internacionais e a complexidade crescente dos assuntos discutidos conduziram à tentativa de melhor estruturar a participação brasileira no contencioso da OMC. Posteriormente, ainda em Brasília, foi Subsecretário-Geral para Assuntos Econômicos e Tecnológicos no Ministério das Relações Exteriores (2006-2008), em uma posição na qual desempenhou o papel de principal negociador comercial do Brasil durante a Rodada Doha, além de supervisionar as negociações comerciais do Mercosul com outros grupos regionais ou países de fora da América Latina. Em 2008, foi nomeado Representante Permanente do Brasil junto à OMC e outras Organizações Econômicas Internacionais em Genebra.
O nome de Roberto Azevêdo foi apresentado pelo Brasil como candidato ao cargo de Diretor-Geral da OMC em um período marcado pela posição proativa da política externa brasileira, quando o país se transformou em um dos principais negociadores e litigantes da organização, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), a partir da estruturação do G20 comercial. Visto como de perfil técnico, com experiência e trânsito na comunidade negociadora de Genebra, Azevêdo saiu vitorioso do processo depois de uma concorrida disputa com o mexicano Hermínio Blanco, candidato apoiado pelos Estados Unidos, contando com os votos fundamentais dos países em desenvolvimento, sobretudo dos BRICS e dos países africanos.
O papel do Diretor-Geral
Comparativamente com o período das rodadas do GATT, que se estenderam até a criação da OMC (1995), a expansão do conjunto de Membros da organização, combinado com a expansão da cobertura dos seus acordos para além de questões tarifárias relativas ao comércio de bens e mercadorias, levou a tensões organizacionais. Ao tempo da Rodada Doha, o trabalho do Diretor-Geral de conduzir os Membros ao consenso tornava-se muito mais difícil, com as negociações envolvendo países com interesses comerciais profundamente divergentes entre si em torno de questões cada mais vez complexas. Com efeito, aponta-se que o Diretor-Geral da OMC já não exercia a mesma influência que o Diretor-Geral do GATT nos anos anteriores.
Em termos formais, o Diretor-Geral de fato detém pouco poder. Seu papel não está definido no Acordo de Marrakesh, de 1994, que cria a OMC, o que o tornaria excessivamente dependente do clima político predominante e muitas vezes efêmero dos Membros. A despeito de não poder sozinho reformar a organização, forçar os governos a tomar qualquer ação específica ou até mesmo ditar a agenda, sua posição desempenha um papel importante no avanço do comércio internacional e da cooperação global. Para Tinline e Prazeres, ao combinar conhecimento técnico com criatividade e discernimento político, o Diretor-Geral exerce um grande soft power, além de potencialmente ser a diferença entre o sucesso e o fracasso em uma negociação e tornar as discussões mais inclusivas e democráticas. Mais do que nunca, atualmente se viu na tarefa de chamar a atenção para a importância do multilateralismo comercial, suas regras e do locus para a solução de controvérsias comerciais.
Processo de escolha
Em uma situação normal, com o mandato se encerrando naturalmente dentro do prazo previsto, o processo de nomeação do Diretor-Geral deve ser iniciado nove meses antes do término do mandato. Com a situação posta pela renúncia de Roberto Azevêdo, o presidente do Conselho-Geral da OMC, o neozelandês David Walker, informou aos Membros em 20 de maio que o processo de nomeação para o próximo Diretor-Geral começaria formalmente em 8 de junho. A partir dessa data, os membros têm um mês para nomear candidatos nacionais de seus próprios países. Após a apresentação aos membros da lista consolidada de todos os candidatos, se dará um encontro com estes em uma sessão especial do conselho, seguido de um processo de consultas conduzido pelo órgão nos dois meses finais, com o intuito de restringir o número de candidatos para chegar a sua escolha de nomeação.
Em primeiro lugar, os membros olharão para as qualificações individuais. Em termos gerais, os candidatos devem ter ampla experiência em relações internacionais, abrangendo experiência econômica, comercial e/ou política; um firme compromisso com o trabalho e os objetivos da OMC; liderança comprovada e capacidade gerencial; e habilidades de comunicação. Uma das grandes questões envolvidas no processo de seleção é o peso que será dado pelos Membros a fatores informais, como diversidade regional e status de desenvolvimento.
Com o decurso de dois dias do início do prazo, já foram apresentados oficialmente três candidaturas: pelo México, Jesús Seade Kuri, subsecretário de Relações Exteriores para a América do Norte; pela Nigéria, Ngozi Okonjo-Iweala, economista do desenvolvimento e ex-Ministra das Finanças e das Relações Exteriores do país; e, pelo Egito, Abdel-Hamid Mamdouh, consultor sênior da King & Spalding LLP e ex-Diretor da Divisão de Comércio de Serviços e Investimentos da OMC. O primeiro, economista que conduziu as negociações comerciais com Estados Unidos e Canadá em torno da renegociação do NAFTA (renomeado como USMCA), apesar da proximidade com os estadunidenses deverá ter dificuldades no processo por buscar suceder outro latino-americano no cargo. Já os dois últimos provavelmente se somarão a outros nomes do continente africano que despontam como possíveis indicações de seus respectivos países: Eloi Laourou, Embaixador e Representante Permanente da República do Benin no escritório das Nações Unidas e outras organizações internacionais com sede em Genebra e Viena, e Amina Mohamed, atual Ministra do Esporte, e ex-Embaixadora do Quênia na OMC. Outros nomes que circulam como possíveis indicações são o de Tim Groser, ex-Ministro do Comércio da Nova Zelândia; de Peter Mandelson, britânico ex-Comissário Europeu do Comércio; Phil Hogan, irlandês atual Comissário Europeu do Comércio; e Arancha González-Laya, ex-Subsecretária-geral da ONU e atual Ministra das Relações Exteriores da Espanha.
Nos próximos dias esses e outros nomes poderão se somar a Jesús Seade Kuri, Ngozi Okonjo-Iweala e Abdel-Hamid Mamdouh. No último processo de escolha do Diretor-Geral, em 2013, participaram de início nove candidatos, em uma campanha que se desenvolveu ao longo de seis meses.
Até aqui, apenas homens na direção
Frente ao quadro atual do multilateralismo comercial e aos nomes postos como possíveis alternativas, alguns dos quais já tendo participado do processo anterior e com profundo conhecimento da instituição, apresentam-se diversas variáveis. De um lado, nunca uma mulher ocupou a posição de Diretora-Geral da OMC, ao mesmo tempo em que se ressalta a pressão das delegações africanas por um nome oriundo de seu continente no comando da organização. Como não se conta propriamente com um princípio de rotação geográfica, isso dependeria da capacidade dos países da África se unirem em torno de uma candidatura em um determinado momento. De outro lado, em especial no que diz respeito aos Estados Unidos e aos países europeus, depois de sete anos com um brasileiro no posto, dá-se conta do desejo de um representante oriundo de um país desenvolvido. É esperado que os europeus tentem chegar a uma candidatura única ainda nessa semana, para depois buscarem o apoio dos demais países desenvolvidos.
Em meio à pandemia do coronavírus (Covid-19) e a uma recessão global, com efeitos ainda mais perversos para países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos, o novo Diretor-Geral ou a nova Diretora-Geral deverá buscar reabilitar o multilateralismo comercial, ainda que a conflituosa relação entre Estados Unidos e China prometa permanecer no centro da realidade política para a OMC. De imediato, se deparará com o Órgão de Apelação paralisado devido à ausência de quórum mínimo, agendas de reformas da instituição e a organização da 12ª Conferência Ministerial, em junho de 2021.