Por Pedro Lagosta, Luís Gustavo Branco e Diego Azzi
O Acordo de Associação União Européia-Mercosul está sendo objeto de intenso debate no âmbito do Parlamento Europeu. No dia 15 de abril, foi publicado pelo Comitê sobre Meio Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar um estudo intitulado “Brasil e a Floresta Amazônica: Desmatamento, Biodiversidade e Cooperação com a UE e Fóruns Internacionais” (Brazil and the Amazon Rainforest: Deforestation, Biodiversity and Cooperation with the EU and International Foruns – texto original aqui). Ainda que tenha o foco no Brasil, o documento começa recordando que a Amazônia é uma floresta localizada em um território que abarca oito países sul-americanos e um território ultramarino europeu, a Guiana francesa.
A narrativa europeia busca agora reconhecer que seus altos padrões de consumo estão entre os fatores causais do desmatamento e da decorrente perda de biodiversidade em outros países do mundo, resultando num efeito prejudicial para a indústria médico-farmacêutica e outros setores chave que dependem destas matérias-primas para desenvolver seus produtos. A atuação do governo brasileiro sob Jair Bolsonaro é analisada em um capítulo à parte, que trata do “papel e responsabilidade da liderança no Brasil, medidas tomadas”. As conclusões dos europeus são negativas: o Brasil tem desafiado a confiança global no compromisso do país com acordos internacionais (challenge global trust in the country’s commitment to international agreements), devido ao drástico aumento do desmatamento na Amazônia, ao abandono de uma política pró-indigenista e ao recorrente elogio à devastação ambiental impulsionado pelo governo.
Pouco depois, em 28 de abril, o Comitê sobre Agricultura e Desenvolvimento Rural publicou uma “Opinião Preliminar” (Draft Opinion – texto original aqui) direcionada ao Comitê sobre Meio Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentar. No documento, são feitas recomendações à Comissão Europeia sobre um marco legal da UE para frear e reverter o que chamam de “desmatamento global provocado pela UE” (EU-driven global deforestation).
Inclusão de cláusulas ambientais
As sugestões da comissão incluem o desenvolvimento por parte da UE de mecanismos de controle e transparência para garantir que suas importações sejam provenientes de cadeias globais de produção livres de desmatamento (deforestation-free global supply chains). O documento menciona especificamente o Acordo UE-Mercosul, recomendando que as negociações sejam reabertas para que se possa incluir provisões ambientais vinculantes (binding) e aplicáveis (enforcement) que não foram incluídas originalmente. O objetivo, ainda segundo o documento, é a proteção de florestas, ecossistemas naturais e direitos humanos, particularmente os direitos dos povos originários sobre a terra.
Neste aspecto, a divulgação da recente fala do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, de que o governo Bolsonaro deveria aproveitar a distração da imprensa com a pandemia do coronavírus para “passar a boiada” em termos de reformas e desregulamentações infralegais em matéria de proteção ambiental causou repercussão bastante negativa na comunidade internacional e contribuiu para degradar ainda mais a imagem do país no exterior.
A boiada do ministro Salles
Como já se sabe desde 2019, porém, as medidas tomadas pelo ministério do Meio Ambiente comprovam que a tentativa de “passar a boiada” já vinha ocorrendo bem antes da divulgação da fala do ministro Ricardo Salles, como a queda substancial dos gastos com atividades de inspeção florestal realizadas pelo IBAMA, a exportação de madeiras sem fiscalização, o reconhecimento de áreas desmatadas até 2008 dentro da Mata Atlântica, dentre outras ações que prejudicam o meio ambiente.
O ministro foi um dos defensores da MP da grilagem, medida editada pelo presidente Jair Bolsonaro, a qual facilita a obtenção de novas terras dentro da Amazônia, dispensando uma vistoria prévia, e legalizando quaisquer invasões realizadas até dezembro de 2018. A exoneração de chefes do IBAMA após ambos tomarem atitudes contra garimpeiros e ações ilegais e seu posicionamento contrário a Lei da Mata Atlântica, buscando mudar o código florestal e diminuir a multa sobre os desmatamentos irregulares, demonstram a posicionamento de Salles ao lado dos interesses dos garimpeiros. Essas ações predatórias do governo brasileiro também chamaram a atenção de grandes redes varejistas estrangeiras, dentre elas as britânicas Sainsbury’s, Tesco, Morrisons e Marks & Spencer, que estão entre as mais de 40 empresas signatárias de uma carta aberta pedindo que os parlamentares brasileiros rejeitem a proposta apoiada pelo presidente Jair Bolsonaro (Mercados britânicos ameaçam boicotar Brasil se lei fundiária for aprovada – texto original aqui). Nesse cenário, é possível que as políticas ambientais de Bolsonaro levem as cadeias de produção ambientalmente degradantes no Brasil a sofrer ações de boicote no mercado internacional, tanto por parte de empresas quanto de consumidores.
Isto se justificaria pela alta do desmatamento no Brasil, que apresentou um aumento de 171% em abril, se comparado ao mesmo período de 2019, totalizando 529 km² de área desmatada. Os dados são do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) e confirmam como as novas políticas adotadas representam uma ameaça a preservação ambiental. Vale lembrar que não foram apenas as atitudes de 2020 que levaram ao desmonte do sistema de proteção. Em 2019 tivemos o episódio das queimadas na Amazônia, conhecido como o “Dia do Fogo”, que teve repercussão internacional e colocou o papel do governo na preservação da floresta em questionamento. O desmatamento chegou a crescer 85% em 2019, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), fato agravado pelo pouco investimento na área do Meio Ambiente, visto o encolhimento do orçamento destinado à pasta.
Acordo em risco
Em 2019, após vinte anos de negociações, o bloco sul-americano concluiu o Acordo comercial com a UE, o qual ainda necessita ser ratificado pelos seus 27 parlamentos. Porém, a divulgação do discurso e ausência de políticas de enfrentamento à pandemia e o aumento do desmatamento na Amazônia e Mata Atlântica fazem com que este acordo corra o risco de se estagnar na etapa de ratificação. Nos últimos meses, parlamentos como o belga, o austríaco e o holandês já haviam se manifestado críticos ao acordo.
Deputados do Parlamento Europeu revelaram que já estão ocorrendo movimentos para tentar frear qualquer avanço de uma agenda que defenda a aprovação do tratado (Salles aprofunda desgaste do Brasil e coloca em xeque acordo Mercosul-UE – texto original aqui). Assim como, na Espanha, grupos se mobilizaram para se colocarem contra aos interesses de grandes multinacionais do país que visam investimentos no Brasil. Nota-se que enquanto a União Europeia se apresenta interessada em transitar para um sistema alimentar mais sustentável, como apresentado na publicação recente da Estratégia “Farm to Fork”, as políticas ambientais defendidas pelo Ministro Ricardo Salles não condizem com os objetivos da UE, dificultando assim o andamento das ratificações do acordo comercial.
Este crescente distanciamento se expressa, por exemplo, na fala da deputada do Partido Social-Democrata alemão (SPD), Yasmin Fahimi. Ela faz críticas duras ao governo Bolsonaro e às medidas tomadas com relação aos povos indígenas e ao enfraquecimento do Ibama, assim como ao aumento no mês de abril de até 65% dos casos de desmatamento. A parlamentar afirma que com isso, o “projeto compartilhado para proteger a floresta amazônica entrou efetivamente em colapso” (texto original aqui). Em sua visão, atualmente é impossível conciliar as políticas do presidente brasileiro com as exigências focadas em desenvolvimento sustentável e direitos humanos para o acordo UE-Mercosul. “Bolsonaro representa um perigo para a democracia, para o Estado de Direito e para a existência permanente da floresta Amazônica”, completa ela.
A fala do ministro Ricardo Salles demonstra como as medidas tomadas em 2019 foram apenas o começo de uma agenda focada em eliminar instrumentos de preservação e beneficiar aqueles que fazem uso da floresta para seu ganho privado. A “boiada” está passando. Não se sabe até quando isso irá perdurar e o quanto ainda será possível reverter em termos ambientais e de credibilidade internacional do Brasil.