Por Flávio Rocha de Oliveira, Tarcizio Rodrigo de S. Melo, Juana Lorne
Presença das Forças Armadas em cargos de primeiro e segundo escalão supera até mesmo o contingente da ditadura militar. Participação se expande com a recente nomeação de um oficial da Marinha para o ministério da Educação. No entanto, ao invés de tutelarem Bolsonaro, o setor castrense parece ter se tornado refém do governo e pode colher enorme desgaste pela nova e intempestiva entrada na cena política
A participação das Forças Armadas na administração direta do governo Bolsonaro foi algo que não passou desapercebido aos observadores da cena política nacional.
Logo no primeiro mês de governo, janeiro de 2019, a Folha de S. Paulo chamou a atenção para o fato de que os militares estavam presentes em 21 áreas do governo federal, compreendendo empresas estatais e ministérios. O Exército detinha a maioria dos cargos naquele momento, compreendendo 18 generais e 11 coronéis da reserva.
Em agosto do mesmo ano, o Globo informava que o número de militares no governo havia aumentado. O jornal publicou no seu site uma matéria indicando que 1271 integrantes da ativa das Forças Armadas agora participavam da administração federal. Em outubro, a Folha de S. Paulo atualizava os dados da presença castrense. Utilizando-se da Lei de Acesso à Informação (LAI), a matéria dava conta de que oito dos 22 ministros do governo eram militares, enquanto pelo menos outros 2500 estavam ocupando cargos de chefia ou de assessoria.
Presença disseminada
Em 2020, essa participação foi ampliada, ainda que os números apresentados por diferentes órgãos de imprensa tenham algumas divergências de acordo com o mês do ano. O que chama a atenção é o fato de que a crise causada (ou amplificada) pela pandemia do coronavírus levou a um aumento dessa presença em órgãos estratégicos, ao mesmo tempo em que começou a se cristalizar na grande imprensa a percepção de que o estamento militar estaria abraçando as pautas bolsonaristas.
Em maio, o Globo apontava que que os militares tiveram um aumento na ocupação de postos estratégicos, com destaque para o Ministério da Saúde com a “efetivação” do General Pazuello, um oficial oriundo da área de logística e sem nenhuma experiência no setor de saúde e ex-comandante da Operação Acolhida. Isso abriu espaço para que os protocolos em torno do uso da cloroquina, tão caros ao presidente Bolsonaro e que sofriam resistência dos dois ministros anteriores, Henrique Mandetta e Nelson Teich, fossem alterados de acordo com os desejos do chefe do Executivo.
A articulação política passa de Onyx Lorenzoni para o general Luiz Eduardo Ramos, Secretário de Governo. Outro general, Braga Neto (que foi interventor na segurança pública do Rio de Janeiro durante o governo Temer), foi escolhido para chefiar a Casa Civil.
O site Poder 360, em matéria publicada em junho de 2020, aponta que 2.930 militares das três forças foram cedidos para o executivo (92,6%), Judiciário (7,2%) e Legislativo (0,03%). O site também relatou que o pessoal militar tem a expectativa de permanecer pelo menos dois anos no cargo para incorporar 60% do salário do DAS, o que faz parte da regra da aposentadoria que rege as FAs e que foi graciosamente aprovada na reforma previdenciária de 2019.
Papel da Marinha
Na mesma matéria, há a informação de que a orientação da Marinha é para que seu pessoal ocupe cargos ligados à chamada atividade-fim. As funções a serem preenchidas no executivo, no caso da Armada, seriam apenas as de natureza militar. Talvez exista aí uma pista que permita explorar a possível existência de divisões nas Forças Armadas quanto ao apoio e participação nesse governo. Outra possibilidade de explorar possíveis divisões (políticas, burocráticas, tecnológicas, orçamentárias, enfim, o leque é amplo) pode ser conferida na matéria em torno da revogação de um decreto do presidente Bolsonaro autorizando o exército a operar aeronaves de asa fixa, e que também expõe a crítica pública feita pelo tenente-brigadeiro-do-ar Sérgio Ferolla ao Exército e ao governo em torno do decreto original.
Em relação a um dos momentos recentes mais espinhosos para a imagem do governo e do próprio presidente – a prisão de Fabrício Queiroz, o amigo da família Bolsonaro e ex-assessor do senador “01”, Flávio – o Valor Econômico traz uma matéria sobre o desconforto de setores do Exército com o episódio.
Todavia, apesar de ser importante tentar localizar divergências dentro das três forças e entre elas, bem como descontentamentos delas em relação ao governo e ao presidente, é bom mantermos uma perspectiva mais cautelosa: essas críticas ainda são relativamente raras e isoladas. Reservistas das Forças Armadas, muitas vezes através de seus clubes, têm demonstrado forte apoio ao presidente, além de atacar pesadamente qualquer indivíduo ou poder que se indisponha contra o governo Bolsonaro. Não é raro encontrar nas revistas do clube militar críticas ácidas ao STF, Congresso Nacional e partidos à esquerda do espectro político. Também está presente a defesa da possibilidade de intervenção das FAs como um “quarto poder”. Essas cartas abertas contra o STF advindas dos três clubes também ganharam destaque na mídia.
Análises variadas
Essa presença do elemento castrense tem provocado um aumento das análises de especialistas sobre a natureza do apoio fardado ao governo Bolsonaro. Além das questões de interesse próprio (orçamento e salários), são analisados os fundamentos da participação do estamento. Para João Roberto Martins Filho, da Ufscar, os militares são reféns do governo Bolsonaro. Segundo o pesquisador, eles pensavam ser possível tutelar o presidente, mas é ele quem está pautando a atuação das Forças. Além dessa ideia, é interessante conferir as opiniões de Martins a respeito do antiesquerdismo castrense e de seu pouco apego ao exercício da democracia nessa entrevista, dada em conjunto com Eduardo Costa Pinto, da UFRJ.
Na mesma linha de explorar a natureza da participação militar e os embates internos destes com a ala olavista e a ala econômica comandada por Paulo Guedes, há a entrevista do Professor Francisco Carlos Teixeira. Ela foi feita em cima da divulgação do vídeo da fatídica reunião ministerial de 22 de abril conduzida (em tese) pelo presidente Jair Bolsonaro. Teixeira chama a atenção para um fato que passou inicialmente despercebido: a reunião começa a descarrilar após uma fala do General Braga Neto, em que este defende a necessidade de um plano Marshall brasileiro. Guedes pede a palavra e simplesmente destrói a ideia. É a partir desse momento que a reunião desanda, abrindo caminho para as “brilhantes” participações dos ministros Damares Alves, Ricardo Salles e Abraham Weintraub.
Na linha de apontar que já temos um governo operado por militares, há a entrevista do antropólogo Piero Leirner, da Ufscar. Ele defende a ideia de que há um projeto dos militares para o país, e Bolsonaro já tem o seu papel definido: o de ser um agente que causa uma explosão que permitirá ao estamento militar agir como bombeiro. Roberto Godoy e outros jornalistas discutem o avanço dos militares e chamam a atenção para o fato de que os generais que ocupam os cargos diretos no governo Bolsonaro passam a criticar, publicamente, outras instituições e poderes, como o STF. Em alguns momentos, fazem ameaças nada veladas à ordem democrática.
O fato que começa a se cristalizar é que os militares estão atuando pesadamente na estrutura do governo. Isso pode implicar um desgaste inédito da imagem das Forças Armadas junto à opinião pública caso haja uma deterioração política no país nos próximos meses. Eles podem passar da imagem de moderados a cúmplices da péssima atuação política, econômica e social do governo Bolsonaro. Nesse sentido, vale a pena uma leitura do artigo de Lucas Rezende.
A Cooperação com os EUA
A cooperação dos militares brasileiros com os Estados Unidos no setor de defesa não é uma novidade. Mesmo no governo de Dilma Rousseff, houve a promulgação de um acordo com o governo dos EUA, ainda que num contexto muito diferente em relação ao que ocorreria depois do impeachment. Em 2018, durante o governo Temer, o então secretário de Defesa estadunidense, James Mattis, esteve em visita ao Brasil e discutiu possibilidades de cooperação militar. Esse acordo começou a ser negociado em 2017, um ano depois do golpe de 2016.
A cooperação dos militares brasileiros com os Estados Unidos no setor de defesa não é uma novidade. Em 2018, durante o governo Temer, o então secretário de defesa estadunidense, James Mattis, esteve em visita ao Brasil e discutiu possibilidades de cooperação militar. Esse acordo começou a ser negociado em 2017, um ano depois do golpe de 2016.
Em março de 2020, o Brasil e os EUA assinam um acordo militar. Ele foi assinado pelo chefe do Estado Maior, o brigadeiro Raul Botelho, e pelo almirante Craig Faller, comandante do US Southern Command, sob os olhares entusiasmados do presidente Bolsonaro. Em tese, o documento facilita juridicamente as pesquisas e cooperação em tecnologias militares emergentes e padroniza os produtos de defesa brasileiros com as especificações norte-americanas e da OTAN. O acordo prevê a negociação da adesão brasileira ao RDTE&E Fund em alguns projetos, que contam com financiamento estadunidense. Porém, ressalte-se que o financiamento é dirigido para empresas americanas, mas que podem subcontratar empresas de países que já assinaram esse tipo de acordo – no caso, podem subcontratar empresas brasileiras.
Essa cooperação se insere na aproximação com Washington, que é tão sofregamente buscada pelo governo Bolsonaro. Aos militares e a indústria, em princípio, interessa o intercâmbio de tecnologias, procedimentos, doutrinas, treinamentos, esse tipo de coisa, que tem aumentado substancialmente. Já tem um de seus oficiais, o general Alcides Valeriano Jr, como membro do US Southern Command. Nesse sentido, reforça-se o alinhamento da política externa brasileira ao governo norte-americano, mas agora compreendendo o dispositivo militar. Obviamente, o acordo é sujeito a críticas. Uma delas foi publicada por Marcelo Zero, e defende a ideia de que não há nada de novo no tratado, mas que termina colocando o Brasil a reboque dos interesses estratégicos dos EUA.
Há lógica na crítica ao protocolo de cooperação, especialmente se pensarmos nas questões geopolíticas que cercam a assinatura do acordo comercial em torno da Base de Alcântara, e que já foi objeto de análise do OPEB : o Brasil está tomando o partido dos EUA na disputa global que travam contra a China. Isso já pode ser verificado nas discussões em torno da adoção da tecnologia 5G, que tem um componente econômico acoplado a um componente geopolítico.
Participação dos militares nas relações exteriores
Os militares brasileiros deram sinais em 2019 – e agiram efetivamente – de que não apoiariam certos arroubos diplomáticos do governo Bolsonaro e de seu círculo mais próximo. Exemplo disso é a ação deles em relação a Venezuela, feita para impedir que o Brasil sediasse a presença de grupos que pretendiam derrubar o governo Maduro. O General Mourão foi o principal enviado brasileiro ao Grupo de Lima para debater a questão venezuelana com outros países sul-americanos. A ação das FAs no sentido de evitar um envolvimento para além do diplomático nesse caso ajudou na construção da imagem de que elas seriam moderadas e tutelariam o governo no plano das relações exteriores.
Aproximadamente um ano depois, em janeiro de 2020, a percepção estava um pouco modificada. No dia 2 desse mês, o governo americano assassinou o General iraniano Qassim Suleimani. Isso elevou a tensão entre Washington e Teerã ao ponto de vários observadores temerem uma ação militar direta envolvendo Irã e EUA. A chancelaria brasileira encaminhou o episódio no sentido de apoiar os Estados Unidos explicitamente, o que contrariou o estamento militar, que preferia que o Brasil se mantivesse alheio ao conflito, por questões diplomáticas e econômicas.
Bolsonaro chegou a declarar que não criticaria o governo americano pelo episódio. Num almoço que teve com os comandantes militares e o chefe do GSI, ocorrido no ministério da Defesa, o presidente tentou apaziguar o descontentamento do alto comando. Ele saiu da reunião sem tecer nenhum comentário sobre o encontro, mas também não recuou um milímetro no apoio ao governo dos Estados Unidos.
Relações com a China
As relações entre Brasil e China estão bastante deterioradas. E, a despeito dos militares e principalmente do Vice-Presidente Hamilton Mourão serem vistos, como defensores de um relacionamento pragmático com o país asiático, o fato é que a diplomacia militar entre os dois países hoje está muito fria. Após a visita do ministro da Defesa chinês, Wei Fenghe, ao Brasil em setembro de 2019, não houve notícias sobre a cooperação na área.
Isso não significa a inexistência de cooperação com outros países da Ásia. Desconhecida por boa parte do público, o Brasil tem laços de cooperação militar com a Indonésia, tendo emplacado, em um passado recente, vendas de aviões Super Tucano da Embraer e dos sistemas de lançadores de mísseis e foguetes Astros II da Avibrás.
Recentemente foi noticiado a entrega de mais Astros II para Jacarta. A notícia, além de indicar o aprofundamento da cooperação entre os dois países e divisas para o Brasil, mostra a preocupação desse país com o crescente poder aeronaval da China e suas reivindicações de expansão da sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE).
A Índia é outro país asiático – que apresenta problemas geopolíticos com a China – com quem o Brasil tem expandido laços políticos e cooperação militar. A partir de acordos de cooperação na área de defesa assinados, um dos primeiros frutos é a formação de uma futura joint venture entre a Taurus e uma companhia indiana para fabricação de armas leves neste país, mirando na demanda da forças armadas de Nova Délhi, que detém um dos maiores orçamentos do mundo.
Missões de paz
No âmbito das missões de paz, a participação da Marinha na Unifil no Líbano continua, pelo menos até o fim do ano, sendo essa a participação mais destacada do Brasil desde o fim da Minustah no Haiti. É marcante a redução do esforço brasileiro nas missões de paz em relação ao início deste século. Além da Unifil, outro fato relevante é a nomeação para o cargo de Force Comander da Monusco, na República Democrática do Congo, do general Costa Neves (ex-comandante da Academia Militar das Agulhas Negras).
No âmbito interno, a atuação das Forças Armadas pode ter o objetivo de promover a imagem do país no exterior. Aqui claramente demarcamos duas operações: Operação Acolhida; Operação Verde Brasil 2. A primeira consiste em acolher venezuelanos que atravessam a fronteira com o estado de Roraima, em busca de melhores condições de vida, em razão da situação calamitosa do país vizinho. E a segunda foi uma resposta ao grande dano que o aumento das queimadas na floresta amazônica causaram a imagem do Brasil, e que acontece após o estímulo governamental para expansão desenfreada de atividades econômicas e do consequente desmatamento na área.
Essas duas operações tentam passar a imagem de um “país acolhedor que recebe pessoas fugindo de uma ditadura” e que também se preocupa com o meio ambiente. Estão falhando em ambos os objetivos.