Brasil e Argentina em tempos de pandemia e bolsonarismo

Por Gustavo Almeida, Nicole Santos Lima e Rafael Sales

Jair Bolsonaro cria atritos artificiais com o país vizinho após a eleição de um presidente de centroesquerda. Imersa em forte crise econômica, a Argentina tenta acordos fora do Mercosul. A combinação dos dois fatores pode enfraquecer o bloco num momento em que o Brasil apresenta um quadro de catástrofe sanitária

A eleição de Alberto Fernández na Argentina, em 2019, representou o retorno do peronismo no contexto político argentino, após a passagem de um governo de caráter neoliberal, comandado por Mauricio Macri, que deixa como resultado de seu mandato um monumental fracasso socioeconômico. Apesar de sua vitória, Fernández assume o desafio de comandar um país que se encontra em meio a uma situação econômica desfavorável e complexa, com aumento do endividamento externo e da pobreza. 

Os planos do atual governo envolvem medidas de curto e longo prazos. A intenção do atual governo é colocar ordem na casa e, para isso, foca seus esforços iniciais principalmente na diminuição das incertezas econômicas. A principal delas é o árduo processo de renegociação da dívida externa com o FMI, cada vez mais acentuada e complexa. Em relação à economia produtiva, outra política fundamental do governo é de tentar costurar acordos com empresários e sindicatos para aumento de preços e salários, a fim de frear a inflação.  

 

Coronavírus e popularidade

Em relação às políticas de enfrentamento do novo coronavírus, é inegável o rigor do presidente argentino, o qual adotou medidas consistentes e prudentes que, apesar das pressões de setores empresariais, garantiram a preservação de sua popularidade. Em pesquisa de opinião realizada entre abril e maio de 2020 pela CELAG (Centro Estratégico Latinoamericano de Geopolítica), a gestão de Alberto Fernández frente à pandemia no país tem aprovação de quase 80% dos argentinos. Segundo a mesma sondagem, se fossem realizadas agora novas eleições presidenciais, 65% dos argentinos votariam no atual presidente. A alta popularidade de Fernández garante um respiro frente às enormes dificuldades que seu governo enfrenta em relação à situação econômica e social da Argentina, país que sofreu queda de 2,2% no PIB em 2019 e fechou o mesmo ano com índice de inflação de 58,3%. Além dessas, a taxa de desemprego encontra-se no patamar de 10,4%, o que reforça a investida do governo na reversão das expectativas no cenário global.  dá sinais de mudança de comportamento em relação a Mauricio Macri na política externa, por adotar uma postura mais pragmática. A prioridade do governo é renegociar a dívida com o FMI e com investidores privados, a fim de recuperar credibilidade e confiança entre a população e os investidores externos. Ao contrário do Brasil, a maior parte da dívida pública do país é denominada em dólares, o que coloca forte pressão sobre as contas externas. Essas precisam apresentar sempre superávit no balanço de pagamentos para fazer frente aos seus compromissos. 

Na linha do pragmatismo, o governo de Alberto Fernández se distancia da Venezuela, tanto do apoio tácito de Cristina, quanto da oposição frontal de Macri. O presidente busca uma posição equidistante e seu comportamento é construído em cima de cada iniciativa concreta de Caracas. Somado a isso, as relações com os Estados Unidos também se transformam, na medida em que Buenos Aires enxerga a necessidade de obter apoio da grande potência para o alívio da sua dívida externa.

 

Relações com o Brasil

As relações com o Brasil se tornaram complicadas desde o início de 2019. Como se recorda, Jair Bolsonaro – apoiador declarado de Macri afirmou ainda no final do ano passado, logo após as eleições presidenciais: “Lamento. Eu não tenho bola de cristal, mas acho que a Argentina escolheu mal. O líder brasileiro aponta para uma ruptura no diálogo amistoso que os dois países cultivavam de forma consolidada desde a da década de 1990. Por ocasião da 56a. cúpula do Mercosul, realizada virtualmente no início de julho, o brasileiro não mencionou o vizinho em sua intervenção. Fernández, por sua vez, não passou recibo e declarou:. “Precisamos entender que a união dos nossos povos precede nossa condição de governantes ocasionais. (…) As diferenças que podem surgir, ideológicas, conceituais ou do tipo que queiram, passarão a  segundo plano. Está na hora de entender que são os povos que se vinculam mais do que os governos” .

 O esfriamento das relações está na sequência da decisão de Buenos Aires, tomada em 24 de abril. Naquela data, de forma unilateral, a Argentina decidiu se retirar das negociações comerciais do bloco, sob a alegação de problemas gerados pela pandemia. A opção coloca em xeque projetos futuros, já que sem a assinatura dos quatro membros do bloco -, Uruguai, Paraguai, Brasil e Argentina -, nenhum acordo terá validade.  Neste momento, a casa Rosada prefere entrar em acordos específicos que o ajudem a sair da enorme crise da dívida externa, exacerbada pela pandemia do coronavírus.

Para Felipe Solá, ministro das relações exteriores de Fernández, a diferença entre os presidentes brasileiro e argentino é ideológica, mas se trata sobretudo de diferenças pessoais. Entre 2003 e 2015, Lula e Dilma tiveram em Néstor e Cristina Kirchner grandes aliados para implementação de uma agenda de integração, com aumento do peso de  agendas sociais em seus países. Hoje, Cristina é a vice-presidente e, em julho de 2019, o então candidato Alberto Fernández visitou o ex-presidente Lula na prisão em Curitiba. A partir da confirmação da chapa peronista e da proximidade clara do atual presidente argentino com o grande adversário político de Bolsonaro, o mandatário brasileiro fez críticas a Fernández sempre que pôde. 

Em seu discurso de posse, o presidente argentino defendeu uma agenda com o Brasil que supere diferenças pessoais entre presidentes. Alberto Fernández prometeu uma relação ambiciosa, criativa e fraternal. Dada a importância que um país tem para o outro, principalmente no que se trata do comércio bilateral, é imprescindível que os dois governos tenham um bom entrosamento e que o diálogo entre os dois países seja aprofundado, como defende o ministro da economia de Fernández, Martín Guzmán. 

 

Novas parcerias

A conduta da Casa Rosada frente aos ataques brasileiros indica a necessidade de se buscarem consensos entre os dois Estados em função das desafiadoras circunstâncias econômicas dos dois países. Entretanto, a Argentina tenta estabelecer novas parcerias bilaterais. É o caso da recente consolidação de tratativas com a China, país  que desbancou o Brasil como principal parceiro comercial da Argentina. A vantagem chinesa tem causas eminentemente práticas. A potência oriental concede financiamentos vantajosos às compras argentinas, facilidade não oferecida integralmente pelo Brasil. 

Dois dos principais produtos exportados pelos argentinos para os chineses concorrem com itens do comércio brasileiro: carne bovina e soja. O aumento das transações entre os dois países pode também ser resultado de um estremecimento das relações do Brasil com a China, por conta de declarações desastrosas e inconsequentes do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente da República, e do ex-ministro da educação, Abraham Weintraub. 

Além das diferenças ideológicas, Fernández e Bolsonaro tomaram medidas antagônicas no que se refere ao trato com a Covid-19. Como já comentado, o presidente argentino decretou um rigoroso lockdown em todo o país, além da proibição de voos domésticos até setembro, Bolsonaro assumiu desde cedo uma posição negacionista e tratou a pandemia com desdém, estimulando a população a sair de casa e retomar a economia, o que resulta no descontrole da doença.

No final de março, Alberto Fernández criticou a postura de Bolsonaro em se opor à quarentena e a outras medidas mais severas para conter a disseminação do vírus no Brasil. À época, o líder argentino alertou para a possibilidade de o Brasil passar por uma situação como a da Itália, que até então era o epicentro da pandemia. A previsão se confirmou dois meses após sua declaração. No final de maio, o Brasil se tornou o novo epicentro da doença em escala global. Em contraposição, a Argentina apresenta um dos menores índices de óbitos em todo o continente sul-americano. 

 

Este deveria ser um momento de intensa cooperação intergovernamental entre os países da região em busca de medidas comuns para se frear o avanço do vírus. No entanto, o panorama sul-americano atual é oposto. Vigora a dispersão e o desinteresse em meio a uma devastadora conjugação de crises. 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *