Por Flávio Rocha de Oliveira, Ana Flávia da Cruz Santos Silva, Juana Lorne e Tarcízio Rodrigo de Santana Melo
A ocupação de diversos setores do governo federal por quase 3 mil militares, com destaque para o ministério da Saúde, recoloca em pauta a necessidade de definição do papel das três Armas numa sociedade democrática
No momento em que o OPEB produz esta newsletter – segunda quinzena de julho de 2020 – pode-se perceber que há um desgaste em curso na imagem das Forças Armadas brasileiras no governo Bolsonaro. E, junto com tal percepção, um aumento do questionamento sobre o papel dos militares num contexto minimamente democrático.
Em 17 de junho, a revista Época publicava matéria informando que o ministério da Saúde ameaçava usar a famigerada Lei de Segurança Nacional contra servidores que fornecessem informações que envolvessem o gabinete do atual titular da pasta, o General Pazuello. Para entender o contexto contemporâneo do “ressurgimento” da Lei de Segurança Nacional, Felipe Bachtold publicou um artigo em que faz um histórico de seu surgimento e a problematiza como um legado do período autoritário inaugurado em 1964. Ele chama a atenção para o fato de que Bolsonaro defendeu seu uso contra inimigos políticos. Ao mesmo tempo, ela também foi usada contra apoiadores do presidente ao longo deste ano.
Em 9 de julho, a mesma revista Época publicou uma coluna assinada por Denis Russo Bugierman, com o título “O que vai sobrar do Exército brasileiro?”. O texto questionava o papel daquela força na sociedade, criticando a desastrada intervenção do EB no ministério da Saúde, com o expurgo de epidemiologistas durante a aceleração das mortes por coronavírus. Ainda por conta da pandemia, foi questionado o fato de que os laboratórios desperdiçaram milhões de reais do erário público fabricando o medicamento cloroquina, indo na contramão das recomendações da OMS e da própria comunidade médica brasileira. Ou seja, além de desprezar as evidências científicas, os generais também desperdiçaram dinheiro público numa evidente amostra de que não são administradores tão eficientes assim.
O artigo prosseguiu criticando o corporativismo da força na questão dos aumentos salariais e o fato de que os fardados formam, praticamente, a única categoria que escapou de uma redução de ganhos ao se aposentar. E ainda enfatizou uma situação incômoda para todos os observadores civis da cena militar brasileira atual: se os estes ocupam tantos postos na administração direta do Estado em funções distantes de suas formações é porque se atribuíram a missão de ocupar o governo.
Ataques de Gilmar
Em julho, o ministro do STF, Gilmar Mendes, fez duras críticas ao papel do Exército à frente do ministério da Saúde. Segundo ele, os militares da força estariam se associando a um genocídio durante pandemia do novo coronavírus. Na mesma matéria em que repercutia a declaração de Mendes, a Folha de São Paulo mencionava que o primeiro ministro da Saúde do Governo Bolsonaro, Henrique Mandetta, criticava a “ocupação” militar da pasta.
Antes da polêmica, o ministro Gilmar Mendes visitara o comandante do Exército, Edson Leal Pujol. A pretexto de presentear o comandante com um livro de sua autoria, o ministro, segundo reportagem do Valor Econômico, buscou explicar as decisões da corte a Pujol e, também, garantir que o Supremo Tribunal Federal (STF) não age contra o executivo. O DefesaNet , portal de caráter conservador, conhecido por militares e pesquisadores da área, encarou o fato como uma tentativa de constranger o general. Para o site, haveria algum tipo de coordenação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), com o objetivo de dar um golpe de Estado.
A linha editorial do portal classificou essas ações como “Coup d´FHC”. Apesar de ser mais uma teoria conspiratória, não se pode perder de vista que o DefesaNet tem um público fiel ideologicamente alinhado com as pautas da direita e da extrema-direita, e que esse tipo de mensagem pode estar se difundido rapidamente entre militares e grupos pró-Bolsonaro.
Reação rápida
A reação do estamento militar foi rápida e problemática, para usarmos uma linguagem contida. Em 13 de julho, um dia após as declarações de Gilmar Mendes, o Ministério da Defesa solta uma nota defendendo a atuação dos militares, dizendo que os mesmos estavam na linha de frente do combate ao vírus desde o início da pandemia, e com um “efetivo maior do que o da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na Segunda Guerra Mundial”.
Nesse documento, não foi feita nenhuma alusão direta ao ministro do STF. Porém, no dia seguinte, o Correio Braziliense informava que o ministro da Defesa, o General Fernando Azevedo, iria enviar uma representação à PGR contra Gilmar Mendes. Em uma nota que teve a assinatura conjunta de Azevedo e dos três comandantes da Marinha, Exército e Força Aérea, a fala do ministro do STF sofria um repúdio em linguagem dura.
No Foro de Teresina, podcast de política da Revista Piauí, a crise também foi abordada. Para um dos apresentadores, José Roberto de Toledo, “Quem incita animosidade contra as Forças Armadas é o governo Bolsonaro ao colocar 3 mil militares no governo e ao ter uma administração muito mal avaliada, especialmente a condução do Ministério da Saúde, onde eles não entendem absolutamente nada. Não só o ministro interino é um general, como ele colocou 24 militares nos cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão, transformou aquilo num quartel e os resultados a gente vê diariamente na contagem de mortos, na incúria, incapacidade e estupidez na gestão. Se for pelos fatos, quem incita animosidade, quem tá jogando contra o patrimônio são as próprias Forças Armadas que aceitaram esse papel de covalidar um governo de incompetentes e ser parte dele”.
A análise do jornalista da Piauí é que a crise não deverá aumentar, mas o Supremo, alvo constante dos bolsonaristas e olavistas, agora está na mira também dos militares.
Apesar dos comentários do ministro Gilmar, não se pode perder de vista que existe a preocupação entre integrantes das FFAA com o desgaste da imagem dos militares em associação ao governo Bolsonaro e que cresce o incômodo do Exército, em particular, quanto ao uso das Forças Armadas em atividades fora de sua natureza. Já se vê uma tentativa de separação entre o setor militar e o Poder Executivo, como se pode verificar em entrevista recente do vice-presidente Hamilton Mourão à Globonews. Isso leva ao questionamento sobre até que ponto vai a unidade de pensamento e ação entre os militares que fazem parte do governo Bolsonaro.
Ocupação do governo
Como já observado em publicações anteriores do OPEB, desde o início da presidência Bolsonaro, os órgãos de imprensa têm utilizado a Lei de Acesso à Informação para tentar traçar um quadro dos números reais de militares das três Forças – além dos policiais militares de vários estados – que possuem função em algum ministério, secretaria ou empresa estatal. Em matéria de 19 de julho, a Folha de S. Paulo traz mais uma matéria a respeito dos números. Ela dá conta que a presença de militares na ativa subiu 33% durante o governo Bolsonaro e que praticamente dobrou num período de 20 anos. Segundo o jornal, nesse mesmo mês, o número de militares da ativa chegava a 2558. Porém, a Folha observa que não entravam nessa conta cerca de 500 militares da reserva e mais 417 militares do exército cedidos à ESG e ao Hospital das Forças Armadas. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), o número total de fardados no governo chega a 6,1 mil, incluindo aí casos sem relação com a decisão do governo de solicitar militares para cargos de chefia e assessoramento. Nessa conta entra o curioso caso dos 2 mil militares da reserva contratados temporariamente para ajudar a reduzir a fila nas agências do INSS…
Em meio às críticas de militarização dos ministérios e da entrega de cargos técnicos, historicamente ocupados por civis, a membros das Forças Armadas, o jornal O Estado de S. Paulo mostrou que o governo pretende reestruturar cargos com o objetivo de criar gratificações só para militares e também elevar remunerações desse grupo, além de reserva de vagas dentro do Executivo.
Esquema de corrupção
Também no conjunto de críticas crescentes ao próprio funcionamento administrativo das Forças Armadas enquanto instituição, a Veja publicou um artigo sobre a condenação de 11 oficiais do exército, por parte de um juiz militar, envolvidos num esquema de corrupção nos anos de 2005 e 2006. Os oficiais condenados dividiram entre eles a quantia de 620 mil reais.
Não obstante o aumento no volume das críticas às Forças Armadas, pode-se observar em alguns lugares uma operação de relações públicas no sentido de melhorar a imagem dos militares. Em matéria recente feita pela TV Bandeirantes, é apresentada uma ação de combate ao Coronavírus na região amazônica levada a cabo pelo Exército. O tom do vídeo é inteiramente favorável à Força.
Em artigo publicado em 18 de julho, a Ombudsman da FSP, Flávia Lima, discutiu o problema da cobertura das atividades e atitudes das Forças Armadas por parte da imprensa brasileira. Ela chamou a atenção para o incômodo que o estamento militar tinha em relação à cobertura feita pelo jornalismo, o que revelava uma incompreensão que o poder armado tinha sobre o papel da imprensa.
Ao mesmo tempo, Flávia Lima apontou o fato de que os órgãos de imprensa brasileiros estavam se adaptando tardiamente ao fato de que teriam que melhorar a própria cobertura sobre as Forças Armadas. Citando as adaptações que o jornalismo brasileiro sofreu desde a redemocratização, e cujos focos foram se alternando entre uma preferência pela atividade parlamentar e, depois, pela cobertura do Judiciário, a jornalista observou que poucos profissionais se especializaram na cobertura dos militares e de suas atividades.
Na atual conjuntura do país, os jornais devem, segundo ela, fazer a sua parte, formando quadros que entendam o funcionamento interno das Forças Armadas. Isso inclui os debates em torno de suas funções, missões e atuação política, especialmente num contexto em que o público não tem ideia do que pensam os militares dentro e fora do governo.
Quando Alberto Decotelli foi apontado para o cargo de Ministro da Educação pelo presidente Jair Bolsonaro, os órgãos de imprensa, em massa, citaram o fato de ele ser reservista da Marinha. Não se preocuparam em avaliar o tipo de participação ele havia tido na corporação, se ele cursara a Escola de Guerra Naval ou se havia sido um oficial temporário, nos moldes do CPOR do Exército. Se essa preocupação tivesse existido, teriam levado em consideração que esse tipo de trajetória profissional do oficialato indicaria graus diferentes de status dentro das três Forças.
Militares na Defesa e na política externa
Em julho de 2020, uma matéria de Rubens Valente, no UOL, abordava a expansão dos militares em Brasília na forma da requisição de imóveis e apartamentos funcionais. O que chamou a atenção foi o fato de que um complexo de imóveis, que pertencia à extinta ESAF (Escola de Administração Fazendária), foi cedido para constituir o novo campus da ESG (Escola Superior de Guerra), na região do Jardim Botânico, distante 13 km do Palácio do Planalto. A ESAF foi integrada à Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), numa decisão do governo Bolsonaro .
A ESG já tem uma sede no Rio de Janeiro. Ela foi criada nos anos 1940 e esteve envolvida na formação de doutrinas de segurança nacional, especialmente depois do Golpe de 1964. Até 1985, a instituição foi um centro importante para discussão dos chamados objetivos nacionais permanentes perseguidos pelos militares, agora detentores do governo da República.
No início da década de 2010, havia um debate sobre a possibilidade de se transferir parte das atividades da ESG para Brasília, especialmente pelo fato de o poder político civil e o Congresso Nacional estarem localizados na capital. Seis cursos farão parte do campus: Altos Estudos de Defesa (CAED), Análise de Crises Internacionais (CACI), Diplomacia de Defesa (CDIPLOD), Direito Internacional dos Conflitos Armados (CDICA), Extensão em Logística e Mobilização Nacional (CLMN) e Curso Superior de Inteligência Estratégica (CSIE).
Na matéria, foi abordado o fato de que essa ampliação dos “domínios” militares em Brasília acontecia no mesmo momento em que a ESAF, um centro de excelência na formação de quadros civis para a administração pública, era extinta. A imagem que transpareceu foi a de que o governo Bolsonaro age conscientemente contra a formação de quadros qualificados de uma ala importante do serviço público civil, ao mesmo tempo em que atende generosamente a reivindicações militares. Ou seja, uma interpretação possível aqui é que, aproveitando da sua posição na política doméstica do atual governo, as Forças Armadas conseguiram um ativo importante para o setor de defesa às custas da formação profissional de servidores civis.
Irregularidades na Marinha
No dia 17 de junho, a Marinha do Brasil (MB) ativou a Base de Submarinos da Ilha da Madeira (BSIM) no município de Itaguaí-RJ. A data coincidiu com o aniversário de 106 anos da criação da Força de Submarinos. Sob o lema de “abrigo do maior ativo da defesa nacional”, essa base abrigará os novos submarinos da MB e futuramente o submarino nuclear.
Se as notícias para os submarinistas são boas, os mesmo não pode ser dito para os meios de superfície. Segundo a revista Crusoé, o Tribunal de Contas da União (TCU) apontou irregularidades no processo de financiamento das novas fragatas a serem construídas para a Marinha.
Um ponto em comum entre a MB e o TCU é que a forma de financiamento buscava contornar a Lei do Teto de Gastos. A discordância é que para o Tribunal a forma de financiamento – capitalização de uma empresa ligada a Marinha, a Emgepron – foi irregular, enquanto a força sustenta que não o foi. Mesmo assim o governo teve que mudar a forma de financiamento do projeto liberando R$ 89 milhões para empresa de forma emergencial.
Outra setor que está tendo problemas com o TCU no âmbito da Defesa é o Exército. A Força verde oliva tem avançado no recebimento dos blindados Guarani, modernizando a sua cavalaria. Contudo, como todos os programas de modernização em curso nas Forças Armadas, este também sofre com a dotação orçamentária menor do que a planejada. Ocorre que parte desse aperto financeiro também é culpa da Força. Segundo matéria do The Intercept Brasil, oficias do EB responsáveis pelo dimensionamento do número de blindados Guarani a serem fabricados para modernização da cavalaria, não só cometeram graves erros no processo, como superestimaram a quantidade de veículos necessários. As 2.044 unidades inicialmente planejadas foram reduzidas para 1.580. A fabricante, a Iveco do Brasil, aceitou reduzir a encomenda, mas não concordou em receber um valor menor do que o inicialmente acordado. Isso gerou um rombo de R$ 273 milhões ao Exército e, portanto, aos cofres da união. Apesar do gigantesco prejuízo, o TCU caminha para aplicar uma multa muito baixa aos militares responsáveis pelo ocorrido. A Forças Armadas sempre reclamam, e com razão, que falta orçamento para investir e que a sociedade deveria olhar para esse aspecto, mas tem problemas sérios em discutir possíveis erros administrativos e de planejamento que elas mesmas cometem.
Modernização da FAB
A Força Aérea Brasileira (FAB) recebeu seu terceiro KC-390 da Embraer, parte de um total de 28 aeronaves já encomendadas. Outro vetor de modernização da Aeronáutica que deve chegar ao Brasil em breve é o primeiro caça Gripen, que ainda passará por uma bateria de testes antes de entrar em operação. Um marco importante do projeto do caça é o início da sua produção na Saab Aeronáutica Montagens (SAM), fábrica da empresa sueca localizada em São Bernardo do Campo (SP).
Em artigo de Nélson de Sá,na Folha de São Paulo, foi informado que os Estados Unidos estariam refazendo os laços de inteligência com o Brasil. A partir de uma matéria publicada no Washington Examiner, o jornalista apontava que o Comando Sul (Southern Command) considerava que o atual estágio de cooperação entre os dois países colocava o Brasil em pé de igualdade com o principal aliado estadunidense na América do Sul, a Colômbia. Esse processo de recuperação dos contatos foi facilitado pela chegada do presidente Bolsonaro ao poder, e reverte o abalo na relação entre Brasília e Washington ocorrido durante o governo de Dilma Rousseff. As causas foram as revelações feitas por Edward Snowden mostrando a espionagem que a NSA realizava sobre o Brasil.
Em 9 de julho, Marcelo Godoy, no jornal O Estado de São Paulo, trazia a notícia de que o Ministério da Defesa estava defendendo o fim da Amazônia Legal e a fixação do orçamento do setor da defesa em 2% do PIB. Essa proposta estaria no documento da Estratégia Nacional de Defesa (END) a ser enviada ao Congresso. Segundo a matéria, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, defendeu a ideia de um orçamento que desse previsibilidade de gasto para as Forças Armadas num evento promovido pelo think tank Personalidade em Foco (que tem forte presença de oficiais pertencentes a Marinha entre os seus quadros ).
O novo documento da Estratégia Nacional de Defesa (END), que trará uma atualização da Política Nacional de Defesa, foi encaminhado nesse dia 22 de julho ao Congresso Nacional. Segundo informou o jornal O Estado de S. Paulo, que teve acesso ao documento, a América do Sul não é mais considerada uma área livre de conflitos. Segundo a apuração da reportagem, para os militares que redigiram o texto, o principal foco de tensão é a Venezuela . No documento também se pode ver uma alusão à possibilidade de que o país aumente a sua participação em missões de paz no exterior, o que entra em consonância com os interesses em política externa dos próprios militares, e que já foi objeto de análise do OPEB.
O documento está sendo entregue ao Congresso justamente na data de fechamento da newsletter. Nos próximos números, o GT Segurança e Defesa trará uma análise mais apurada desse material e da repercussão dele junto aos pesquisadores da área.
A íntegra do documento pode ser obtida aqui.
Em todo o caso, seu teor tem provocado apreensão em certos setores da academia e da sociedade.