Por Lucas dos Santos Rocha, Sara Aparecida de Paula e Yamila Goldfarb
A alta dos preços da carne no mercado chinês incentivou grandes indústrias a acelerarem agressivamente suas linhas de produção para atender mercado asiático
O coronavírus tornou-se, em questão de meses, parte do vocabulário no mundo todo. Trata-se na realidade, de uma grande família de vírus que podem causar doenças como a Severe Acute Respiratory Syndrome (SARS) e a Middle East Respiratory Syndrome (MERS). A Covid-19, um tipo de SARS e foi o nome dado à doença causada pelo novo coronavírus, até então desconhecido, que surgiu em dezembro de 2019 na China.
O mundo já chegou na faixa dos 15 milhões de casos da doença, sendo que o continente americano conta com mais da metade destes. Neste quadro, o Brasil está na trágica posição de segundo país com maior número, com quase 3 milhões de infectados. Ainda assim o presidente brasileiro contraria as autoridades sanitárias mundiais ao subestimar a doença e deixa o Brasil há meses sem ministro da Saúde. Para agravar o quadro, a União não tem feito o repasse de dinheiro aos Estados e Municípios.
De animais para humanos
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a Covid-19 é uma doença transmitida de animais para humanos, o que, segundo as Nações Unidas, é um dos resultados do relacionamento superexploratório que a sociedade humana tem com o ambiente. Sociedade e meio ambiente ou humanos e natureza são, na realidade, um sistema interconectado e, por isso, cientistas sugerem que habitats degradados possam incitar processos evolutivos mais rápidos e diversificar doenças, já que os patógenos se espalham facilmente para rebanhos e seres humanos.
Diversos vírus, ou enfermidades tiveram origem justamente no avanço das atividades de desflorestamento sobre o habitat de espécies para as quais determinados vírus eram habituais. Com o avanço das fronteiras agrícolas e o desmatamento, a diminuição do habitat desses animais teria colocado estes em contato com comunidades humanas ou com animais domésticos e possibilitado transmissão desses vírus.
Em artigo no Le Monde Diplomatique, Larissa Mies Bombardi, Immo Fiebrig e Pablo Nepomuceno explicam como essa invasão e destruição de matas primárias rompe uma barreira na qual determinados microorganismos passam a contaminar animais domésticos, animais de criação e populações humanas e levantam a hipótese de que o coronavírus pode ter sido transmitido de morcegos para porcos de granjas industriais. Diversos estudos apontam para a agricultura e a pecuária industriais como vetores de geração e de transmissão desses vírus. Um trabalho clássico que aponta isso é Big Farms Make Big Flu: Dispatches on Influenza, Agribusiness, and the Nature of Science de Rob Wallace.
Proliferação em locais fechados
Se por um lado ainda é uma hipótese de que a pandemia possa ter surgido em granjas ou frigoríficos industrializados na China, é fato de que esta se espalha mais facilmente por eles. A proliferação de casos em frigoríficos brasileiros tem acontecido em grande intensidade, já que os locais de trabalho são fechados e com pouco distanciamento entre um trabalhador e outro. No Rio Grande do Sul 20% dos infectados são trabalhadores de frigoríficos. No estado, um dos grandes centros de exportação de carne, o número de casos de coronavírus em frigoríficos subiu 40% em menos de um mês, segundo o Ministério Público do Trabalho (MPT), totalizando mais de 6 mil trabalhadores confirmados com a doenças.
Há surtos não apenas no Rio Grande do Sul mas também em Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, entre outros. Nos três estados do sul, que concentram cerca de metade dos 500 mil trabalhadores de frigoríficos no Brasil (muitos deles imigrantes), já são 11.500 casos confirmados em 104 fábricas. O próprio MPT já entrou na Justiça para pedir a interdição de pelo menos 11 unidades em seis Estados.
O setor de carnes bovinas no Brasil corresponde a aproximadamente 26 bilhões de dólares, enquanto o de frango representa 8 bilhões de dólares. Os lobistas do setor têm rebatido as normas locais de segurança sanitária como o distanciamento social de 1,5 metro, alegando que isso poderia reduzir a produção dos frigoríficos em até 43%.
Essa não é uma realidade restrita ao Brasil. Pelo contrário, trata-se de um modelo produtivo internacionalizado em cadeias de valores globais. Um relatório publicado no último dia 10 de julho pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC, na sigla em inglês) destaca que, entre os 16,2 mil casos registrados em 239 fábricas, 87% afetaram trabalhadores de minorias raciais ou étnicas.
Além do próprio impacto nas cidades onde tais plantas industriais se encontram, há ainda a repercussão internacional da situação no país. A União Europeia já decretou o fechamento de suas fronteiras para turistas brasileiros, já que o país não se encontra em uma zona segura. A China, maior compradora de carnes do Brasil, suspendeu importações de mais dois frigoríficos brasileiros, além dos outros seis que já haviam sido suspensos. As autoridades chinesas ainda requisitaram informações e relatórios de mais doze frigoríficos para verificar se as informações dadas pelo governo brasileiro eram verossímeis.
Medidas sanitárias chinesas
Ainda em julho, além da suspensão de importações a Comissão de Saúde da China expediu a exigência de teste de ácido nucleico para identificar a presença de coronavírus no produto in natura. As medidas fitossanitárias por parte do governo Chinês ocorreram depois que surtos de vírus em frigoríficos em todo o mundo intensificaram as preocupações do país de que alimentos importados pudessem transmitir a doença. Apesar da Organização Mundial da Saúde insistir que não há nenhuma evidência de transmissão de coronavírus por alimentos ou embalagens de alimentos, as autoridades chinesas entendem que existe uma boa possibilidade de o vírus permanecer vivo em um recipiente congelado. Ainda assim, isso não parece ter afetado de fato o setor no Brasil.
Como resultado da diminuição das importações de carnes, e a necessidade do abate de metade do rebanho suíno por conta da peste suína africana, houve aumento acentuado dos preços do alimento nos mercados chineses, conforme mostra o gráfico abaixo.
A alta dos preços da carne no mercado chinês incentivou as grandes indústrias a acelerarem agressivamente suas linhas de produção para aumentar as exportações para a China, especialmente no Brasil. Como apurado pelo Estadão, as importações chinesas de carnes e miúdos do Brasil totalizaram 900 mil toneladas em junho deste ano, volume 74,4% maior do que o adquirido em igual mês do ano anterior, informou o Departamento de Alfândegas da China (GAAC, na sigla em inglês). No que se refere a carne suína, a China comprou 2,12 milhões de toneladas de carne suína do Brasil no acumulado do ano.
Não foi apenas no Brasil que o setor do agronegócio obteve vantagens mesmo em meio à pandemia. Em quase todos os países da região, as atividades agroindustriais foram excluídas da quarentena por serem consideradas atividades essenciais, ainda que seu foco sejam as exportações e não o abastecimento interno.