Militares, política doméstica e política de defesa

Por Flávio Rocha de Oliveira e Tarcizio Rodrigo de Santana Melo

Forças Armadas tentam avançar no papel de garantidoras da República, embora seus membros no governo se mostrem cada vez mais inadaptados para a democracia.

Em outubro, a cobertura sobre a atuação doméstica dos militares continuou negativa. Conforme já observado em outro número dessa newsletter, as relações entre o o governo Bolsonaro e grandes órgãos de imprensa brasileiro (em especial a Folha de S. Paulo e as Organizações Globo) seguem muito ruins no aspecto político. Os militares são o principal sustentáculo estatal desse governo. Torna-se assim lógico que recebam parte das críticas que feitas ao presidente e ao seu círculo mais próximo quando as pautas passam por falta de transparência, autoritarismo, suspeitas de corrupção e conspiração política.

Em 8 de outubro, o vice-presidente, Hamilton Mourão, deu uma entrevista para a DW alemã. Nela, o general da reserva afirmou que o falecido coronel Brilhante Ustra respeitava os direitos humanos. Entre as afirmações que chamaram a atenção, está aquela em que ele defendeu a ideia de que Carlos Alberto Brilhante Ustra, oficial do Exército e conhecido torturador durante o regime autoritário civil-militar que funcionou no país entre 1964 e 1985, “era um homem de honra que respeitava os direitos humanos de seus subordinados”. A afirmação provocou reações contrárias em vítimas das torturas levadas a cabo por Ustra, como o verador paulistano Gilberto Natalini e o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, por seu turno, publicou uma carta de repúdio a essas declarações. 

Na mesma entrevista, e contrariando o bom senso e as estatísticas oficiais, o vice também elogiou a atuação do governo Bolsonaro em relação ao Coronavírus, apesar do número de óbitos já ter superado a marca dos 150 mil mortos.

Temer e os quartéis

Na coluna Painel, em 12.10.20, foi dada a informação  de que o ex-presidente Michel Temer e militares se encontraram um ano antes do impeachment de Dilma Rousseff. A matéria aborda o lançamento do livro de Temer, intitulado A escolha. No lançamento da obra, o filósofo Denis Rosenfield, apresentado como uma espécie de conselheiro do ex-presidente, contou que o comandante do Exército em 2015, o general Eduardo Villas-Bôas, o havia contatado para saber de Temer. A partir dessa iniciativa do militar, Rosenfield tratou de marcar um encontro sigiloso com o político do PMDB.

O jornal Valor Econômico trouxe uma matéria na qual é informado que Mourão endossou o pagamento de um contrato que estava sob investigação do TCU. Nela, Murillo Camarotto informou que em 2010, quando era general da ativa, Hamilton Mourão havia atuado pessoalmente para agilizar o pagamento de 5,6 milhões de euros à empresa espanhola Tecnobit, fornecedora de um sistema de simulação de artilharia para o exército.

Em 14 de outubro, Rubens Valente informa, e+m sua coluna no UOL, que o comandante do exército, o General Edson Pujol, tem omitido, de sua agenda oficial, o encontro com parlamentares, juízes, empresários e agentes públicos, e que isso pelo menos por treze vezes. Na matéria, o jornalista observa que a prática fere a resolução No 11, de 11.12.2017, da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. A resolução orienta que a agenda de agentes públicos seja divulgada em detalhe. 

No dia 5 de outubro, foi noticiado que o Almirante Flávio Rocha dever ser indicado pelo presidente Bolsonaro ao cargo de ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. Atualmente, Rocha tem o cargo de chefa da secretária de assuntos estratégicos. O Almirante tem desenvolvidos fortes laços com Bolsonaro, e ainda faz parte do serviço militar ativo. Já há especulações de que haverá uma pressão da força naval para que ele vá para a reserva, algo semelhante com o que ocorreu envolvendo o ministro Ramos e sua instituição de origem, o exército.  

Empregados das multinacionais

A Folha de São Paulo traz uma matéria em que afirma que multinacionais de armas estariam contratando militares brasileiros para lobby no setor de defesa. Nessa empreitada, estariam envolvidos oficiais como o General reformado Paulo Chagas, que, junto com outros oficiais da reserva, estaria realizando reuniões com membros do governo Bolsonaro. Chagas atuaria como consultor da corporação italiana Leonardo Internacional, uma das dez maiores fornecedoras de armas e sistemas militares do mundo segundo um estudo do SIPRI (PG.8). 

Chagas é um conhecido general conservador, e habitual utilizador do twitter e que foi, em 2018, candidato do bolsonarismo pelo PRP ao governo do DF. Em seus posts nessa rede social, são comuns ataques ao STF e a partidos de esquerda.

Na matéria, também é informado que outras empresas, como a israelense ISDS e a produtora de mísseis européia MBDA, tem utilizado dos préstimos de militares da reserva com amplo trânsito no governo – e conhecimento do funcionamento dos mecanismos de compras das forças armadas – para marcar posição, dentro da perspectiva de abocanhar possíveis aumentos de compras de armamentos que deverão ocorrer caso o orçamento das FAs seja aumentado para 2% do PIB brasileiro. Entre os militares citados, estão Flávio Pelegio, coronel da reserva do exército, o contra-almirnte Antonio Fernandes, também um oficial reformado, e Flávio Passos, coronel da reserva da Força Aérea. As reuniões estariam sendo feitas com integrantes do alto-comando e do ministério da defesa.

Lobistas fardados

Nos Estados Unidos, é comum a prática do uso de ex-membros do governo, tanto civis como militares, em lobbies montados pelo complexo industrial-militar. Estão inseridos dentro do que a literatura estadunidense chama de revolving-doors. É relativamente normal que comissões parlamentares de inquérito sejam feitas periodicamente em Washington para analisar desperdício de dinheiro público nesses processos, e sempre há o questionamento, por parte da imprensa norte-americana e de especialistas civis, da lisura desses procedimentos e de sua real efetividade para as forças armadas e para os cidadãos desse país. 

Resumindo: há a suspeita de que esses consultores são excelentes para as corporações que os contratam, mas que terminam encarecendo os custos de aquisição de equipamentos militares, e isso mesmo em atuações que não fere a lei norte-americana. Nos próximos anos, muito provavelmente veremos o mesmo tipo de questionamento surgindo entre estudiosos e jornalistas brasileiros, e o governo Bolsonaro poderá ser visto como o divisor de águas em processos pouco transparentes na relação orçamento público/defesa/forças armadas.

Seguindo no setor de defesa, o Clube Naval – que aglutina reservistas da marinha e tem fortes ligações com a mesma – realizou dois seminários, com o almirante José Augusto Vieira da Cunha de Menezes, sobre dois programas da força naval, o das Fragatas Classe Tamandaré, e a mordenização do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ). Cabe destacar que o almirante confirmou a compra do estaleiro Oceana que construíra as fragatas, pela alemã ThyssenKrupp. 

Armas na academia

No setor acadêmico, observa-se o aumento de trabalhos e seminários tentando entender o papel das forças armadas nesse governo, tanto no plano da atuação política doméstica como no setor da defesa. No programa Pensamento Crítico, apresentado no canal do Youtube do IELA-UFSC, foi feita uma discussão sobre o pensamento dominante nas FAs brasileiras e latino-americanas. Nele, o pesquisador Leomar Rippel discorreu sobre a falta de compromisso com a democracia presente no estamento militar brasileiro. Na Fundação Fernando Henrique Cardoso, vários debates envolvendo o tema da defesa, Forças Armadas e relações entre militares, civis e a democracia brasileira, tem ocorrido desde setembro. Além dos acadêmicos ligados a Fundação e ao PSDB, como o cientista político Sérgio Fausto, também tem participado nomes como Raul Jungman, ministro da defesa do governo Temer, e militares como o Almirante Eduardo L. Ferreira, o Brigadeiro Antonio C.E. Amaral, e o General Sérgio Etchegoyen. O que chama a atenção nessas iniciativas é a presença de militares que participam do atual governo Bolsonaro e de oficiais como Etchegoyen, que foram muito ativos durante o impeachment de 2016. Aliás, Etchegoyen é presença constante em eventos relacionados aos militares e patrocinado pela fundação ligada ao PSDB. 

Fica aqui a hipótese de que um partido de extração conservadora-liberal, o PSDB, tem em suas fileiras políticos e acadêmicos que demonstram crescente atenção em relação ao funcionamento das Forças Armadas, seja por genuíno interesse em questões de defesa, seja pela preocupação com a ascensão de um governo de extrema-direita que conta com o apoio profissional do alto comando do exército, da marinha e da aeronáutica. 

O site de O Globo trouxe a notícia da realização de um exercício de simulação de guerra de grandes proporções na região amazônica. Tal exercício ocorreu em setembro, e, segundo a matéria, reflete a nova política de defesa, apresentada em setembro, e que leva em consideração a possibilidade de conflitos militares na América do Sul. Vários especialistas consultados analisaram os aspectos “técnicos” do exercício, mas alguns deles observaram que poderia haver a manipulação política da operação por parte do governo Bolsonaro. Também houve a menção de que a visita de Mike Pompeo fez a região em data que coincidiu com a realização do exercício. A pesquisadora Adriana Marques, uma das acadêmicas civis entrevistadas, viu a coincidência da visita com preocupação, e declarou que seria necessário investigar as razões que levaram o MRE a autorizar a visita do Secretário estadunidense naquela data e dentro daquela simulação. 

Rocha Paiva, o interventor

A embaixada da Alemanha também realizou um seminário sobre “o papel dos militares na democracia”, com a presença do General da reserva Rocha Paiva, o prof. João Roberto Martins Filho da UFSCAR e o prof. Carlos Masala, da Universidade das Forças Armadas da Alemanha (Universität der Bundeswehr). Chamou a atenção a fala de Rocha Paiva, que repetidamente emitiu críticas ao STF, defendeu a possibilidade de intervenção das forças armadas em caso de “anomia institucional”, ao mesmo tempo em que negava que as forças fossem um poder moderador. 

Finalmente, vale a pena a leitura do artigo de Roberto Amaral. Nele, o ex-ministro da ciência e tecnologia chama os militares do governo bolsonaro de uma guarda pretoriana que conspira contra o país. 

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