Por Maryanna Ságio Alves, Kethelyn Santos e Flávio Francisco
Entre 2017 e 2020, os interesses de Washington no continente africano se caracterizaram por interesses e propósitos diretamente vinculados à contenção da influência chinesa e russa.
A história das relações entre os povos africanos e os Estados Unidos ao longo da segunda metade do século XX foi marcada pelo engajamento mínimo dos norte-americanos, se apresentando como um ator para estabilização do continente durante o processo de descolonização, mas ajustando o seu movimento de acordo com as inciativas de franceses e britânicos. O país, em um primeiro momento ainda não tratado como uma força imperialista, redefiniu a sua agenda na década de 1960 para confrontar a União Soviética e, posteriormente, os cubanos que apoiavam os movimentos de libertação de orientação socialista no continente. Na década de 1980, quando a Guerra Fria chegava ao seu fim, os Estados Unidos começaram a investir recursos no continente por meio de organizações multilaterais, apoiando iniciativas humanitárias e a liberação de recursos para as economias africanas em troca de reformas políticas e liberalização do comércio.
Influência russa e chinesa
Os quatro anos de política externa do Governo Trump para o continente africano se caracterizaram por interesses e propósitos diretamente vinculados à contenção da influência chinesa e russa. É importante ressaltar que relações EUA-África nesse período mantêm certos elementos de continuidade em relação a governos anteriores. Durante a Guerra Fria, os EUA concebiam o continente como um espaço de disputa com a União Soviética, portanto era necessário cultivar boas relações para que as nações recém independentes fossem incorporadas à sua esfera de influência. Com o fim da Guerra Fria, a África passou a perder a importância paulatinamente, até que após o 11 de setembro, o continente voltou à agenda, embora ainda de forma secundária, como um dos pontos estratégicos para a “Guerra ao Terror”. No entanto, durante seu mandato o Presidente Donald Trump demonstrou interesse em diminuir a presença militar na região.
Segundo o New York Times, Trump e seu Secretário de Defesa, Mark Esper, estariam planejando o desmonte de parte, talvez até mesmo de toda a infraestrutura de segurança na África Ocidental, incluindo a Africom, um comando militar criado durante o governo Bush. A ideia seria desestimular a presença militar em locais não-estratégicos ou cujo retorno não fosse suficiente aos interesses americanos, e realocar os empreendimentos militares sobre a região da Ásia-Pacifico para conter a presença chinesa e russa.
“Países de merda”
Essa visão da África como uma região não-estratégica demonstra o desdém de Trump, enraizado na sua ignorância sobre o continente, expressa quando o presidente se referiu a vários países africanos como “países de merda”, ao declarar sua oposição à imigração africana aos EUA ou quando seu ex-advogado revelou em um livro que Trump teria dito que Mandela “destruiu seu país”, e também “não era um verdadeiro líder”, causando a revolta de inúmeros líderes do continente. Além desses episódios, Trump protagonizou outra gafe em um discurso para as Nações Unidas, ao referir-se duas vezes a um país africano como “Nambia”, deixando dúvidas se ele estaria se referindo à Namíbia, Zâmbia ou Gambia.
No entanto, em seu segundo ano, a Casa Branca anunciou uma nova orientação de política externa para a África, compreendida em três eixos: estreitar as relações comerciais com países do continente para combater o que aponta como “subserviência” à China, conter a ameaça do terrorismo e usar o dinheiro voltado para ajuda humanitária e manutenção da paz de forma “eficiente” e “eficaz” para países que não representem ameaça aos interesses americanos, além de retirar o apoio às missões “malsucedidas” e “contraproducentes” da ONU.
Ao longo do documento, pode-se identificar diversos ataques à presença chinesa e russa na região, bem como a comparação desse novo paradigma de política externa ao que foi o Plano Marshall no pós-Segunda-Guerra. Ademais, é interessante apontar que embora o documento tenha mencionado inúmeras vezes o interesse norte-americano em promover o desenvolvimento africano e a não subordinação à China e à Rússia por conta de dívidas, afirma-se que países que votam contra os EUA em fóruns multilaterais não merecem o dinheiro para ajuda humanitária, econômica ou pra fins securitários. Paradoxalmente, embora a política externa para a África tenha sido formulada para conter suas rivais China e Rússia, os EUA ao longo desses quatro anos causaram um vazio que tem sido preenchido cada vez mais pela China e Rússia.
Declínio comercial
A política de afastamento de Trump para África se reflete também nas relações comerciais, que desde 2014, apresenta números oscilantes, mas com tendência de declínio para importações e exportações de bens entre as partes. A África é um continente muito dependente da exportação de recursos primários, mas também dependente de importações de commodities, como por exemplo, petróleo e gás como fontes de energia. Além disso, com mercados intracontinentais fragmentados, altos custos de transação, e falta de integração regional, a África é muito mais dependente do comércio exterior do que outros continentes.
Mesmo que aqui não caiba a discussão sobre as razões estruturais para o impedimento do crescimento da economia subsaariana, o pesquisador de economia política africana, Ian Taylor (2016), afirma que as narrativas do crescimento da África na mídia popular não ressaltam o fato de que a transformação estrutural, expressa através do aprofundamento da diversificação, as exportações de valor agregado e a criação de setores de alta produtividade do trabalho, não aconteceu na maior parte do continente.
O que se viu foi, portanto, um crescimento pautado em altos preços de commodities, alívio da dívida e um excesso de investimento estrangeiro no setor primário. Dessa forma, entende-se que muito da economia africana hoje depende da sua relação comercial com o resto as grande economias de fora do continente.
Uma das principais expressões do comércio entre EUA e o continente africano é a Lei de Crescimento e Oportunidades para a África (AGOA em inglês) que foi introduzida pelos norte-americanos em 2000 com o objetivo de expandir e aprofundar as relações comerciais e de investimento com a África Subsaariana, incentivando o crescimento econômico, desenvolvimento e facilitando a integração do continente à economia global. Para atingir tais metas, um dos objetivos do acordo é estimular manufatura fornecendo aos quarenta países africanos participantes, livre acesso de tarifas aos mercados dos EUA (Em 2019, o acordo isentava aproximadamente 6.800 linhas de produtos dos países na África Subsaariana).
A renovação do acordo em 2015, para o vencimento em 2025, não exclui portanto, a vantagem de barganha que os EUA têm sobre os países africanos dele participante. Isso porque, o AGOA é destinado a todos países da África subsaariana desde que estes cumpram com os requisitos de elegibilidade para terem produtos comercializados com os EUA. A África do Sul, por exemplo, para continuar se beneficiando do AGOA, teve que acomodar os interesses dos EUA e estabelecer um acordo de cotas em relação às suas exportações de aves (CNBC África 2018). Assim, os requisitos de elegibilidade são revisados anualmente, e o status de beneficiário pode ser concedido ou rescindido pelos EUA, o que transforma o acordo num importante instrumento norte-americano para definir os rumos do comércio com a África.
Exportação de manufaturados
Embora haja críticas quanto à eficácia de sua implementação, uma vez que os produtos mais explorados são ainda commodities como petróleo, por exemplo, países exportadores de têxteis e vestuário têm sido os destaques entre os beneficiados nas exportações como Quênia, Lesoto, Maurício e Madagascar. No caso específico de Lesoto, o acordo de AGOA e as isenções de tarifas, aumentou drasticamente os números de exportação têxtil para os EUA, o que impulsionou também os investimentos externos diretos no país, o tornando um dos principais em manufatura têxtil na África Subsaariana, o que por sua vez, contribuiu também para geração de empregos na região.
O governo de Trump e sua postura protecionista sempre foi, portanto, uma preocupação para os lesotianos quanto à continuidade das condições de comércio, que possibilitaram a melhora das condições do país. “Seria terrível para todos nós. Se o acordo do AGOA não for estendido, teremos que fechar e todos nós ficaremos desempregados. Não seremos capazes de competir com o mundo exterior ”, afirma David Chen, proprietário de uma fábrica têxtil que emprega 1.600 trabalhadores.
A preocupação é justificada pois, em abril de 2018, a administração Trump anunciou que estava suspendendo os privilégios de isenção de impostos desfrutados por países africanos como Ruanda, que aumentaram as tarifas sobre roupas usadas importadas dos Estados Unidos para estimular a produção interna. Embora tal aumento fosse planejado como ação conjunta da África Oriental, a Tanzânia por exemplo recuou, devido às ameaças comerciais dos EUA de impor concessões. “A mudança é uma extensão do America First, já que, com a diminuição das importações africanas, haveria prejuízo ao setor têxtil de segunda mão, que levaria a perda de 40,000 empregos nos EUA.
Elevação de taxas
Ademais, a África do Sul está na lista de países que devem pagar novas taxas consideráveis sobre as exportações de aço (25%) e alumínio (10%) para os Estados Unidos. As tarifas propostas pelo governo norte-americano sobre as importações de veículos europeus (20%) podem prejudicar ainda mais o país, uma vez que exporta aproximadamente US $ 4 bilhões em componentes automotivos para fabricantes da União Europeia. A situação é preocupante pois a metalurgia e a manufatura são vitais para a África do Sul, empregando 21% por cento da força de trabalho do país.
Embora não tenha demonstrado interesse em desafiar diretamente o AGOA, a administração de Trump também não foi o momento para fazer o acordo atingir as oportunidades que podia. Uma vez que o governo Trump deu preferência por acordos bilaterais em vez de acordos multilaterais, o movimento perde a força conjunta que podia ter para fomentar o desenvolvimento de capital humano e industrial para exportar cada vez mais peças de maior valor agregado para os EUA.
Não foi apenas no comércio que a África sofreu com a postura de distanciamento norte-americano. Esse movimento se manifestou também indiretamente na redução do apoio para organizações de desenvolvimento internacional ou mesmo norte-americanas que atuam na África.
A assistência oficial ao desenvolvimento dos Estados Unidos é substancialmente inferior ao recomendado de 0,7 por cento do PIB segundo a OCDE e a redução de quase USD 300 milhões por ano para financiamento dos EUA para a ONU, bem como suas agências filiadas, resulta em consequências na organização de luta contra a fome, doenças e guerra no continente africano.
Além disso, num dos primeiros atos do Trump como presidente, ele buscou a reestituição da Global Gag Rule (Regra da mordaça) que impede qualquer organização que forneça serviços de aborto, informações, aconselhamento ou referências sobre planejamento familiar receba financiamento dos EUA. Segundo um estudo da revista Lancelet, nos anos em que essa política esteve ativa, entre 1995 e 2014 o número de abortos ilegais cresceu 40% no continente africano e, se o projeto de Trump tivesse apoio do Senado, mais de 1 milhão de mulheres ficariam sem qualquer suporte contraceptivo no mundo todo, até o final de 2020.