Imunizantes e o 5G: o fracasso do antagonismo de Bolsonaro à China

27 de março de 2021

Por Luiz Gustavo Ferreira da Silva, Rafael Almeida Ferreira Abrão, Vanessa Cristina Pitondo Rodrigues, Vitor Gabriel da Silva e Ana Tereza Marra

Atuação ambígua do governo federal diante da China prejudica eficiência tecnológica e controle da pandemia. Resultado é isolamento internacional e problemas internos nas duas áreas.

Dois assuntos têm sido destaque nas relações Brasil-China: a aquisição de vacinas contra o coronavírus e a possibilidade de participação da empresa chinesa Huawei no leilão nacional do 5G. Ao longo de 2020, continuando em 2021, o presidente Jair Bolsonaro optou por não tomar medidas eficientes contra a pandemia de Covid-19: ocorreram quatro trocas de Ministros da Saúde, foi incentivada a ingestão de medicamentos sem eficácia comprovada, minimizou-se a gravidade da doença e foi adotado um discurso contrário às vacinas, particularmente as de origem chinesa, dentre outros aspectos.

Na questão do 5G, o governo brasileiro viu-se no meio da disputa entre duas grandes potências. De um lado, os EUA têm pressionado países no mundo todo para que impeçam a Huawei de participar da construção de suas redes 5G, afirmando que a empresa representaria uma ameaça à segurança nacional, roubando informações e comprometendo a privacidade dos cidadãos a partir de supostos “backdoors” em seus equipamentos, que seriam meios potenciais de espionagem. De outro, a China argumenta que o objetivo dos EUA é frear o avanço chinês num setor estratégico, utilizando-se de coerção e intimidação para manter a sua hegemonia digital.

Reviravoltas diplomáticas

Alinhado ideologicamente ao governo de Donald Trump, o Brasil caminhava para banir a participação da Huawei no 5G nacional, auxiliando a estratégia estadunidense de contenção da influência da China na América Latina. Contudo, ocorreram duas reviravoltas: primeiramente, a eleição de Joe Biden representou uma derrota político-ideológica para o governo brasileiro, e outro ponto importante tem sido a dinâmica internacional de fornecimento de insumos para a fabricação das vacinas contra a Covid-19, que evidenciou a dependência de importações dos institutos brasileiros em relação à China.

A entrada de Biden no comando da Casa Branca se por um lado resultou na continuidade da ofensiva estadunidense contra a Huawei, com a imposição de restrições mais duras, por outro representou a emergência de um governo pró-ciência no combate à pandemia e com pautas, principalmente relacionadas ao Meio Ambiente, que contrariam a postura brasileira. Assim, o Brasil perdeu os EUA como maior aliado ideológico no cenário internacional. Em paralelo, o início da vacinação contra a Covid-19 em vários países, inclusive na América do Sul, antes do Brasil, e em velocidade maior do que se consegue imunizar nacionalmente, juntamente com o fim do auxílio emergencial, levaram a queda de popularidade do presidente, obrigando-o a simular preocupação com a aquisição de vacinas.

Essa preocupação ocorreu em um momento de dificuldade de acesso aos Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFA), necessários para a produção nacional da vacina Oxford AstraZeneca, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e da Coronavac, pelo Instituto Butantan. 

Os insumos necessários são produzidos em território chinês e têm passado por diversos entraves burocráticos para a liberação. Tal situação fez com que o governo federal percebesse a necessidade de articulação mais próxima com a diplomacia chinesa visando acelerar a chegada de IFA no país,  o que foi, contudo, obstaculizado pela ausência de diálogo entre o Itamaraty e a embaixada chinesa no Brasil (lembra-se que Ernesto Araújo havia solicitado a China que mudasse o embaixador em 2020, depois de discutir com Yang Wanming por causa de mensagens no Twitter) e por outras discordâncias nas relações bilaterais, cujo destaque foi a ofensiva realizada por agentes brasileiros, como Eduardo Bolsonaro e o próprio Aráujo, contra a participação da Huawei no 5G nacional.

Conduta errática do governo federal

Diante do mau relacionamento de Aráujo com as partes chinesas, outros ministérios do governo, a exemplo do Ministério da Saúde e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), bem como governos subnacionais, em especial o Escritório do Estado de São Paulo em Shangai, que lograram negociar com a China o desembaraço de IFA. Os esforços diplomáticos exigiram um recuo da ala ideológica do governo e a interrupção dos ataques do Presidente da República à vacina desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Butantan. Recentemente, Bolsonaro chegou a afirmar que o imunizante chinês “é a vacina do Brasil”, após meses criticando o uso de qualquer vacina de origem chinesa. 

O recuo da ala ideológica do governo produziu também efeitos em outra questão: a participação da Huawei no leilão nacional do 5G. Em fevereiro de 2021, ocorreu a publicação da minuta do edital pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), definindo as regras do leilão para a instalação da rede 5G no Brasil, sem nenhuma restrição, a princípio, à participação da Huawei. Sabe-se que a decisão sobre a Huawei poderia trazer grandes implicações para o país, tanto em termos do 5G, uma vez que a Huawei possui equipamentos com melhor custo-benefício e ainda com a possibilidade de reaproveitamento da infraestrutura existente, o que ditaria o ritmo de implementação e a qualidade do 5G no Brasil; como pela própria disposição que uma negativa a participação da empresa poderia implicar para as relações bilaterais, tão necessárias não só pela já apontada necessidade de negociação para a importação de IFA, mas também pela crescente importância comercial da China para o país no cenário da pandemia.

Porém, um aspecto das regras da minuta do edital chamou a atenção: a necessidade para os vencedores de construir uma rede privativa de comunicação para a administração federal, com estruturas de segurança mais robustas e criptografia, em duas frentes: uma rede fixa de fibra ótica ligando todos os órgãos da União e uma rede móvel apenas no Distrito Federal para atividades de segurança pública, defesa, serviços de emergência e resposta a desastres. Neste caso, haveria requisitos mínimos que empresas fornecedoras teriam que cumprir para compor a rede, sendo um deles ser de capital aberto respeitando padrões de governança da bolsa brasileira, o que, de acordo com o Ministro das Telecomunicações, Fábio Faria, a Huawei não faz, sendo que este dispositivo, então, pode ser usado para constranger a participação plena da empresa chinesa no 5G nacional.

Interesses contraditórios

Tal decisão – de permitir de modo geral a participação da Huawei no leilão do 5G, mas criar dispositivos que igualmente limitam sua ação – pode ser vista como uma forma de acomodar os interesses contraditórios com relação à China. De um lado, o país tem se tornado cada vez mais importante economicamente para o Brasil, o que mobiliza grupos internos a defender o pragmatismo nas relações, bem como sabe-se que há dependência dos chineses na questão das vacinas. De outro, não se pode afirmar que o antagonismo criado por figuras como Eduardo Bolsonaro e Aráujo não voltarão a causar tensões bilaterais. Mesmo que o Brasil tenha perdido, com a extinção do governo Trump, seu principal aliado ideológico externo, não está claro ainda o impacto que isso trará para as relações Brasil-China, se contribuirá para ocorrer uma acomodação pragmática nas relações, ou se o Itamaraty continuará desdenhando do país.

Por fim, chama a atenção ainda o apequenamento do Brasil diante da geopolítica das vacinas, particularmente em comparação com os pares do BRICS que foram capazes, a exceção da África do Sul, de desenvolver rapidamente seus próprios imunizantes: a Rússia, com a Sputnik V, a Índia, com a Covaxin, e a China, com três vacinas (Coronavac, BBIBP-CorV, Convidicea), ampliaram sua influência político-econômica e ocuparam espaços de poder, inclusive o vácuo deixado pelo Brasil na América Latina e, em menor medida, na África. Aponta-se também que nas discussões sobre a suspensão de patentes das vacinas na Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil tem apoiado, em contrariedade a Índia, China e África do Sul, os países desenvolvidos  na decisão de não suspensão. Assim, fica cada vez mais evidente que o alinhamento aos EUA, o afastamento em relação ao BRICS e, especialmente, o forte antagonismo à China no discurso do governo brasileiro fracassou em atender as necessidades do país.

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