10 de abril de 2021
Por Tatiana Berringer, Gabrielly Almeida, Gabriel Soprijo, Thiago Fernandes, Flávia Mitake, Fernanda Antoniazzo, Gabriela Leite
A queda do chanceler negacionista coloca em cena os temas da pandemia, da vacinação e do desmatamento. A nova gestão do Itamaraty terá de responder a esses desafios.
A saída de Ernesto Araújo do Ministério das Relações Exteriores (MRE), no dia 29 de março, pode significar uma mudança de tom na política externa brasileira. Sua gestão marcou um realinhamento das relações internacionais do Estado brasileiro, abandonando posições históricas, redefinindo prioridades, atacando antigos aliados e subordinando a agenda externa às pautas ideológicas defendidas pela base eleitoral de Bolsonaro e pelo governo de Donald Trump. De interlocutor e referência em questões como direitos humanos e aquecimento global, o Estado brasileiro passou a ter posições polêmicas e a se alinhar com países conservadores. Ernesto chegou a acusar a China de conceber um plano de dominação mundial com a pandemia do “comunavírus” (1) Esses ataques verbais causaram um conflito diplomático entre Brasília e Pequim. Em janeiro de 2021, o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, chegou a pressionar pela demissão de Araújo em troca da liberação de insumos para a produção das vacinas de Oxford e Coronavac no Brasil.
Seguidor e admirador de Trump e de seus ideais, como mostra em seu texto “Trump e o Ocidente” (2) Araújo defendeu a reeleição do então presidente dos EUA. Essa postura também impactou negativamente as relações diplomáticas Washington-Brasília. A aversão puramente baseada em questões ideológicas com Biden provocou um distanciamento de Washington e, consequentemente, uma ausência de interação dos dois governos no contexto da pandemia. Por isso, pode-se dizer que a política externa vigente em conjunto com a incapacidade de diálogo e negociação, tanto com os Estados Unidos como com a China, acabaram se constituindo como as principais causas da deterioração da gestão do ex-ministro.
Relação com o Congresso
Esse cenário de ineficiência afetou sua própria relação com o Congresso, que passou a defender sua saída, alegando má gestão da política externa brasileira em meio à pandemia. Além disso, pode-se ressaltar a publicação, no dia 27 de março, de uma carta (3), escrita por cerca de 300 diplomatas, criticando a postura de Araújo no comando do Itamaraty, dando a entender que também desejavam sua saída. Por fim, formou-se um conjunto de circunstâncias em que a demissão de Ernesto Araújo tornou-se inevitável. Em sua carta de demissão, o ex-ministroalega ser vítima de uma narrativa falsa “a serviço de interesses escusos nacionais e estrangeiros” (4). Araújo aponta o tema das vacinas contra a Covid-19 e a questão da tecnologia 5G da China como as causas principais para a pressão pela sua demissão, mas estes são apenas dois pontos de toda uma gestão conturbada que fadou o país ao quase isolamento internacional.
Apesar de a revista Veja (5) ter publicado matéria compartilhando o parecer de “um funcionário da embaixada dos EUA no Brasil”, a representação diplomática ainda não se pronunciou oficialmente sobre o caso. Já na mídia estadunidense, a recepção da demissão de Araújo foi positiva. Veículos como o New York Times²² e o Bloomberg²³, retrataram a demissão do ex-ministro como uma mudança estratégica do governo Bolsonaro para administrar a crise pandêmica. Até então, o que podemos esperar é uma administração menos polêmica e mais discreta do MRE com o novo ministro, Carlos Alberto França, à frente da instituição.
O plano Biden
O novo presidente dos Estado Unidos, Joe Biden, por seu turno, manteve sua promessa de promover a recuperação econômica diante da crise imposta pela pandemia do novo coronavírus. No dia 11 de março, foi ratificado pelo Congresso americano o chamado Plano de Resgate para 2021 (6), um amplo pacote de estímulos no valor de US $1,9 trilhão. A iniciativa está dividida em várias frentes de atuação e prevê apoio às famílias, empresas e diversas instituições americanas. Nele, também foram estipulados o pagamento de até US$1.400 a boa parte dos cidadãos e a destinação de US$500 milhões a um amplo programa de imunização e tratamento da Covid-19. Com este oneroso pacote, somam-se US$3 bilhões em investimentos federais relacionados à pandemia desde dezembro de 2020. Além disso, o Fed (Banco Central Americano) determinou que as taxas de juros se mantenham próximas a zero. Através dessas medidas, a equipe econômica do governo Biden, assim como grande parte dos investidores, espera que os EUA se recuperem completamente da crise já no ano que vem, com uma taxa de desemprego abaixo dos 4% (7).
No dia 9 de março, a OCDE previu que no fim de 2022 a economia americana será maior do que o previsto antes da pandemia e a única do mundo a atingir tal resultado. Contudo, como alertou The Economist (8), esta é uma política com “níveis históricos de estímulos fiscais” e há importantes preocupações relacionadas ao superaquecimento da economia, com alta da inflação e o consequente (e possivelmente brusco) aumento das taxas de juros, o que impactaria negativamente países com grandes déficits comerciais, como o Brasil.
Em relação à pandemia, Biden anunciou um plano que coloca o uso de máscaras como obrigatório e como meta acelerar a produção de vacinas (9). Como demonstrado, Bolsonaro se identificou ao longo de seu governo com Donald Trump, que enquanto esteve à frente da Casa Branca, nunca encorajou as pessoas a tomarem as vacinas, chegou a dizer que o COVID “vai desaparecer” e que “não uso máscaras” (10). O discurso foi mudado apenas durante as eleições presidenciais. Mesmo com essa postura, o presidente e sua esposa silenciosamente tomaram as doses da vacina, antes de deixarem a Casa Branca, após perderem as eleições (11). Bolsonaro, por sua vez, seguiu o exemplo de Trump e disse ao longo da pandemia: “É só uma gripezinha”, e que “Se tomar vacina vira jacaré” (12). O historiador francês Laurent-Henry Vignaud (2021) (13) chegou a pontuar que Bolsonaro seria o primeiro líder da história a ser abertamente contra a vacinação.
Subordinação sanitária
Um relatório feito na gestão de Trump, demonstra que o Brasil foi persuadido a não comprar a “Sputnik V”, vacina produzida pela Rússia. A justificativa está em “combater as influências malignas nas Américas” (14). Além disso, Ernesto Araújo não queria que o Brasil participasse do consórcio da “Covax Facility” (15), responsável por entregar doses da AstraZeneca/Oxford. O motivo da rejeição era que a aliança fortaleceria a Organização Mundial da Saúde (OMS), constantemente atacada por Trump, e estimularia o “Globalismo”, do qual o ex-chanceler sempre se mostrou contrário. Mesmo assim Ernesto teve que ser convencido posteriormente a aceitar o acordo.
Quando o Butantan procurou parceiros para desenvolver a vacina no Brasil, dois fabricantes disseram que não poderiam continuar as negociações por terem sido“avisados” pelo Ministério da Saúde, que teriam problemas com o Governo Federal. Assim, foi feito um acordo com a SinoVac. O Butantan chegou a enviar três ofícios para o Governo Federal, o primeiro em julho de 2020, no segundo, o Instituto chegou a prometer 45 milhões de doses em dezembro e mais 15 milhões no primeiro trimestre de 2021. A resposta só veio em outubro. Em reunião no dia 14 daquele mês, o ministério da Saúde apresentou aos secretários estaduais um plano contra o Covid, que não incluía a CoronaVac (16).
Negacionismo nas negociações
Em relação a vacina da Oxford, Andrew Pollard, diretor do Exford Vaccine Group, entrou em contato com Sue Ann Costa, pesquisadora brasileira que trabalha na Fiocruz, para desenvolver uma vacina nova no Brasil, devido às boas instituições de pesquisa do país. Ou seja, a vacina veio por conta da Fiocruz exclusivamente, devido a essa colaboração feita pelos pesquisadores. Em relação à Pfizer, o Ministério da Saúde chegou a não responder à oferta de 70 milhões de doses, sendo adquiridas apenas 2 milhões de doses em janeiro de 2021. As vacinas de Janssen foram ignoradas até março de 2021, quando ficou insustentável, e comprou 38 milhões de doses, aprovadas por uso emergencial (17).
De todas as vacinas que o Brasil tem, a “CoronaVac” e a “AstraZeneca” foram recusadas, e só vieram por conta do Butantan e da a Fiocruz respectivamente. A “Covax” teve complicações devido a Ernesto Araújo, que teve de ser convencido posteriormente. A “Sputnik V” foi negada por pedido dos EUA e a Pfizer ignorou uma oferta de 70 milhões de doses. Enquanto isso, Biden garante vacinas para todos os americanos antes de agosto e incentiva o uso de máscaras e isolamento social (18), sendo que atingiu 100 milhões de doses aplicadas, em 58 dias após a posse (19). Os números demonstram:
Gráfico 1 – “Novas mortes diárias confirmadas de COVID-19 por milhão de pessoas”
Gráfico 2- “Novos casos de COVID-19 confirmados por milhão de pessoas”
Observa-se que após janeiro, quando acontece a troca do presidente dos EUA, e Biden assume, ocorre uma queda considerável no número de mortes e de novos casos. Enquanto isso, Bolsonaro continua seguindo a linha ideológica de Trump, negando a vacina e o vírus. Por esse motivo, as mortes e o número de casos só aumentam.
Outro ponto que merece destaque é o fato de que milhões de doses de vacina estão neste momento guardadas nos EUA, sem que tenham certeza que serão utilizadas. Trata-se de doses dproduzidas pela empresa AstraZeneca, as quais não têm ainda a autorização definitiva para uso no território yankee e aguardam resultados da fase 3 de testes no processo para a aprovação pela agência federal estadunidense que regula o setor de fármacos, FDA. Devem chegar atualmente à soma de 30 milhões as doses já prontas, guardadas em um armazém no estado de Ohio, em refrigeração, além de outras dezenas de milhões que ainda estão por ser envasadas.
A vacina da AstraZeneca já tem liberação para uso em mais de 70 países, e segundo especialistas consultados pelo NYT, as vacinas correm até mesmo o risco de terem sua qualidade afetada se passarem um prazo maior que seis meses em refrigeração,. Vale ressaltar que alguns países utilizam um intervalo de 3 meses entre a aplicação da primeira e a segunda dessa vacina, o que poderia dificultar o aproveitamento dessas doses. (20)
Ansiedade pelas doses dos EUA
Muitos países estão agora ansiosos pelo acesso a essas doses dos EUA, dentre eles o Brasil. Na perspectiva do brasileiro – aquele que observa a atual conjuntura com apreensão diante da necro-política incentivada pelas lideranças de Brasília – o momento em que vivem os “vizinhos do Norte” com a vacinação a todo vapor, e se mostrando capaz de fazê-la em ritmo acelerado, é, enfim, uma realidade que a nós beira a utopia. Por um lado, os EUA de acordo com o NYT, vislumbram a possibilidade de chegarem à marca de 1 BILHÃO (com “B” mesmo) de doses até o fim de 2021, ou seja uma disponibilidade futura de vacinas em maior número que toda a população estadunidense. Por outro lado, o Brasil tem de lidar com uma realidade da qual não se pode alimentar grandes esperanças em ver a pandemia ser vencida tão em breve., As vacinas são insuficientes , e o ritmo de vacinação segue caminhando lentamente, imunizando uma parcela quase que ínfima dos brasileiros.
O receio do governo de Joe Biden estaria relacionado a ainda não ter certeza de que todas as doses prometidas serão de fato entregues no prazo esperado. O principal objetivo é ter toda a população adulta dos EUA seja vacinada até Maio, estabelecendo como prioridade que a população tenha vacinas disponíveis (21). No entanto, já existiram diversos contatos de países interessados nas vacinas excedentes dos EUA. (22)
Diante do atual cenário político brasileiro, e seus “novos jogadores”, colocou-se novamente em evidência o ex-presidente Lula. Parte de uma “oposição informal”, e que hoje não tem mandato, Lula deu entrevista à CNN estadunidense pedindo a Joe Biden que considerasse doar as vacinas que os EUA teriam a mais para o Brasil, além de pedir que o presidente convoque uma reunião do G20 para discussão unicamente a respeito da vacinação, como uma forma de fazer uma distribuição mais justa também nos países mais pobres. (23)
Contudo, de acordo com o embaixador americano, Todd Chapman, existe uma lei aprovada nos EUA que só permitiria a venda ou doação de vacinas do país para o exterior quandotoda a população dos EUA estiver vacinada (24). O prazo estimado para que o governo estadunidense decida “se” e “para quem” serão doadas essas vacinas é até o fim de abril, quando se espera haver uma previsão de conclusão da imunização nos EUA.
Diplomacia e meio ambiente
Por fim, no que tange à questão ambiental, o governo de Biden vem dando um enfoque especial ao tema nas relações com o Brasil. A negligência do presidente Jair Bolsonaro em relação ao desmatamento e às queimadas na Amazônia trouxe receio aos compradores americanos, que estão tomando mais cuidado quando se trata da importação de produtos brasileiros. Um exemplo é o senador democrata Brian Schatz, do Havaí, que pretende aprovar um projeto de lei que visa restringir o acesso do mercado americano a matérias-primas originadas de terras desmatadas ilegalmente e criar um comitê consultivo para monitorar o fornecimento dos produtos aos americanos (25), o que faria com que a exportação de carne brasileira fosse severamente afetada, uma vez que parte da sua produção está em terras ilegais.
A cobrança ficou ainda mais evidente quando, no dia 29 de março, um integrante do Departamento de Estado afirmou que o governo estadunidense deseja ver ações reais e efetivas contra o desmatamento ilegal, e que espera ver resultados já neste ano, “sem esperar cinco ou dez anos, ou compromissos em 2050”. Segundo o diplomata, o Brasil só receberia ajuda financeira da comunidade global, prometida por Biden nos debates presidenciais de 2020, caso mostrasse resultados efetivos, sem pagamentos adiantados. Nesse mês de abril ocorrerá a Cúpula de Líderes sobre o Clima, e as autoridades americanas esperam ver metas e projetos concretos de fiscalização e combate às queimadas e ao desmatamento ilegal que afetam a Floresta Amazônica. (26)
Vê-se, portanto, que há vários pontos pendentes nas relações bilaterais Brasil-Estados Unidos: a relação com a China, o combate à pandemia e a vacinação e o desmatamento. A nova gestão do Itamaraty terá de responder a esses desafios.
NOTAS:
[1] https://www.metapoliticabrasil.com/post/chegou-o-comunav%C3%ADrus
[2] https://segundasfilosoficas.org/trump-e-o-ocidente/
[3] https://www.dw.com/pt-br/em-carta-diplomatas-pedem-sa%C3%ADda-de-ernesto-ara%C3%BAjo/a-57032691
[4] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56570801
[7] Em abril do ano passado, essa taxa atingiu seu maior pico durante a pandemia, 14,8%, e em fevereiro deste ano ela caiu para 6,2% (https://www.nytimes.com/2021/03/22/business/biden-coronavirus-stimulus.html)
[9] https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/01/21/biden-anuncia-plano-para-conter-a-pandemia-de-covid-19-nos-eua.ghtml
[10] https://www.brasildefato.com.br/2020/10/02/vai-desaparecer-e-nao-uso-mascaras-relembre-quando-trump-minimizou-a-pandemia
[11] https://www.nytimes.com/2021/03/01/us/politics/donald-trump-melania-coronavirus-vaccine.html
[12] https://www.poder360.com.br/1-ano-de-covid-no-brasil/251-mil-mortes-por-covid-relembre-as-falas-de-bolsonaro-sobre-a-pandemia/
[13]https://www.google.com/url?q=https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55939354&sa=D&source=editors&ust=1617624960039000&usg=AOvVaw2HzUY8P5Tu5_gTlXBQSuXQ
[14]https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/03/15/eua-pressionaram-brasil-a-nao-comprar-vacina-russa-contra-covid-diz-documento-do-governo-trump.ghtml
[15]https://epoca.globo.com/guilherme-amado/ernesto-araujo-nao-queria-que-brasil-assinasse-covax-facility-embaixadora-interveio-24941382
[16] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-sabotador/
[17] https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-sabotador/
[18] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2021/02/17/biden-garante-vacina-contra-covid-para-todos-os-americanos-antes-de-agosto.htm
[19] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/03/20/governo-biden-atinge-100-milhoes-de-doses-de-vacinas-contra-a-covid-19-aplicadas
[20] https://www.nytimes.com/2021/03/11/us/politics/coronavirus-astrazeneca-united-states.html
[21]https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/04/02/brasil-troca-comando-do-itamaraty-e-ve-eua-adiarem-possivel-doacao-de-vacinas
[22]https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,biden-diz-que-eua-estao-conversando-com-varios-paises-sobre-excedente-de-vacina,70003649874
[23] https://veja.abril.com.br/mundo/em-entrevista-nos-eua-lula-pede-que-biden-doe-vacinas-excedentes/
[24] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/04/02/brasil-troca-comando-do-itamaraty-e-ve-eua-adiarem-possivel-doacao-de-vacinas
²³https://www.nytimes.com/2021/03/30/world/americas/brazil-bolsonaro-military-resignations.html