A importância econômica do Canal de Suez e uma breve história do engajamento egípcio

10 de abril de 2021

Por Kethelyn Santos, Enrique Lima, Magaly Morais, Pedro Lagosta e Flavio Francisco

Construído por franceses e tornado símbolo do nacionalismo árabe, o canal voltou ao centro das atenções mundiais pela obstrução causada pelo mega cargueiro panamenho, no final de março. Coloca-se em questão cada vez mais a construção de novas rotas marítimas entre o Ocidente e o Oriente.

Importância econômica do Canal de Suez

O canal de Suez situado no Egito, construído pelos franceses no período de 1859 a 1869,  teve sua inauguração em 1896 pela engenharia de Ferdinand Lesseps, tornando possível o encurtamento da distância marítima entre Europa e as terras ao redor dos oceanos Índico e Leste do Pacífico, que até então, somente era realizada contornando o continente africano.  Tornando-se mais navegável desde o século XX, com a ampliação de suas dimensões que proporcionam acesso de embarcações gigantes, interligando a Europa aos mercados de matéria prima asiática, o canal de Suez expressa significativa importância histórica e geopolítica, constituindo um eixo estratégico do comércio mundial.

Localizado  na província de Suez, a oeste da península do Sinai, o canal  interliga  o centro urbano de Port-Said no mar Vermelho  com o mediterrâneo.  Atualmente possui 24 metros de profundidade, 365 metros de largura e 193 quilômetros de extensão, viabilizando o trânsito de dupla via para grandes embarcações. O canal com mais de 150 anos teve ampliações em diferentes momentos, uma das últimas foi  ordenada  em 2014, pelo presidente do Egito Abdel Fattah al-Sisi, com um projeto de expansão da passagem de Ballah,  incluindo mais  35km de expansão paralela ao canal principal, enquanto o veio principal do canal era aprofundado para que navios ainda mais largos passassem, acompanhando a evolução do comércio marítimo,  dobrando a capacidade do canal em número de navios por dia.

A ampliação do two way transit viabilizou um maior fluxo de cargueiros nos eixos sul e norte. O sentido norte faz o transporte de petróleo bruto e derivados, carvão, metais brutos e metais fabricados, madeira, óleos vegetais e cereais. Via sul, o tráfico consiste em cimento, fertilizantes, metais fabricados, cereais e galões de óleo vazios. Durante 2020, um total de 18.829 navios, representando 1.17 bilhões de toneladas, transitaram pelo canal de Suez. Em 2018 a net anual tonnage ( NT of ship) era cerca de 1.139.630.000 toneladas métricas. Mais de 80% do comércio global por volume é executado via marítima e o custo de interrupções somam bilhões de dólares aos custos da cadeia comercial. Especialistas anteveem uma concorrência ao Canal de Suez pelos esforços da Rússia em desenvolver uma rota pelo Ártico.

O governo egípcio disponibiliza regras e informes com dados atualizados e descritivos das dimensões dos navios e comboios autorizados para trânsito no canal de Suez  apresentado no manual em suezcanal.gov.eg., alinhando informação oficial à segurança  dos sistemas de navegação.

O incidente com o cargueiro

No dia 23 de março um navio cargueiro, entre os maiores do mundo, encalhou no canal de Suez, após uma manobra, bloqueando sua passagem. O MV Ever Given, um navio de transporte de contêineres, possuía bandeira panamenha e estava realizando uma troca entre a Ásia e a Europa, a caminho de Rotterdam, nos Países Baixos, quando ocorreu o acidente no estreito canal. O navio possui aproximadamente 400 metros de comprimento e 59 de largura. A Evergreen Marine Corp, empresa de transporte marinho responsável pelo Ever Given, informou à imprensa que o acidente ocorreu devido a fortes ventos que atingiram o canal, levando o navio a perder o controle e virar de lado. Ninguém da tripulação foi ferido.

Devido ao encalhamento, o navio ficou preso no canal, sua proa estando encostada na parte leste do canal, enquanto sua popa encostava na parede oeste. A grande preocupação em torno do ocorrido foi o congestionamento que seria causado pelo navio caso ele permanecesse encalhado. Salvadore R. Mercogliano, professor adjunto da Universidade de Campbell, afirmou que cerca de 50 navios passam pelo canal por dia, seu congestionamento causou impacto sobre as rotas globais marítimas. 

Sua preocupação fazia sentido, já que alguns dias após o acidente se registrou em torno de 150 navios presos no Canal de Suez após o bloqueio, congestionando e bloqueando uma das mais importantes rotas marítimas entre o norte e o sul. O número de navios esperando o desbloqueio do canal chegou em torno de 420, danificando as mercadorias nos contêineres e colocando em risco os animais que estavam sendo transportados. Além disso, o Ministério do Petróleo e Recursos Minerais da Síria chegou a racionar a distribuição de combustível no país, devido ao atraso causado na entrega de petróleo. O acidente chegou a preocupar o governo estadunidense, fazendo com que o presidente Joe Biden oferecesse ajuda, se necessário.

O plano para desencalhar o Ever Given contou com diversas estratégias, utilizando-se de escavadeiras térreas e escavadeiras marítimas para escavar a areia e a lama para soltar a popa e a proa das paredes do canal, barcos de reboque puxando o navio e a utilização das marés para ajustar a posição do navio. Os esforços foram grandes, porém demoraram a surtir efeito, visto que se esperava desbloquear o canal até dia 27, objetivo que não foi cumprido. Como forma de melhorar a eficácia da operação, foram retirados contêineres do Ever Given para diminuir seu peso. No dia 29, o navio passou a se mover lentamente e seu trajeto foi ajeitado lentamente por meio de barcos de reboque e pela drenagem da areia, até que o navio finalmente desencalhou no final do dia, assim sendo possível que o tráfego de navios pudesse voltar ao normal. Foram necessários 6 dias para que o congestionamento de 425 navios terminasse, fazendo com que o canal voltasse à normalidade no dia 03 de abril. 

As consequências econômicas do evento

Tendo em vista que o Canal de Suez assume um papel crucial nas rotas comerciais entre Europa e Ásia, sendo responsável por 12% do comércio global, qualquer atraso ou contratempo nessa via marítima gera grandes prejuízos. Somente o navio cargueiro Ever Green possui um valor estimado de 1 bilhão de dólares em mercadorias, mas cada dia em que se manteve encalhado bloqueou a passagem de centenas de navios, gerando mais bilhões de dólares em prejuízo (valor diário em torno de 50 bilhões de dólares).

O bloqueio do canal gera diversos problemas, não somente pela interrupção no transporte das mercadorias, mas também pela perda das mesmas. O evento evidenciou um gargalo no frete internacional, que já enfrenta sérias dificuldades desde o início da pandemia do Covid-19. Atualmente, o valor do frete de um contêiner (Twenty-foot Equivalent Unit – TEU) que parte da China para a Europa quadruplicou em relação ao ano passado. Para além do aumento do frete, a perda e o atraso no transporte das mercadorias afetam toda uma cadeia global de suprimentos. Com esse bloqueio, cerca de 2 milhões de barris de petróleo, por dia, ficaram retidos, gerando graves problemas para as empresas que dependem dessa matéria prima. Tanto o canal quanto o oleoduto SUMED (que está no Golfo de Suez) são de suma importância para os fluxos de petróleo e gás natural, sendo responsáveis por 9% de todo petróleo comercializado via marítima e por 8% do gás natural. A interrupção desse fluxo gerou variações no preço do barril de petróleo durante os dias de bloqueio (no dia 23, o preço caiu de R$355 para R$338), mas devido a desobstrução da via o mercado vem equilibrando-se novamente (após 5 dias do bloqueio, o preço já encontrava-se em patamares normais).

Também havia uma grande preocupação referente ao transporte de alimentos. Problema que foi amenizado pelos altos estoques europeus e asiáticos, impedindo uma maior crise no curto prazo. Estima-se que diversos navios recalcularam sua rota e tiveram um acréscimo de 15 dias na viagem (contando a partir do dia do bloqueio).  O impacto mais acentuado foi na exportação de café robusto (usado na produção de cápsulas de café instantâneo) para a Europa. Para o Brasil, tal evento foi benéfico em certo sentido, pois é um dos grandes produtores de café robusto no mundo e um dos únicos que não usa essa rota para exportação do produto (a Costa do Marfim, produtora dessa matéria prima, também não usa o canal).

Na economia brasileira, os efeitos não foram latentes, pois não é uma rota que está diretamente interligada ao país. Mas os preços do frete internacional, atrasos na entrega de mercadorias e a variação no preço do barril de petróleo atingiram o país, mesmo que momentaneamente. Também vale ressaltar que, no ano de 2020, o Brasil exportou 188 mil contêineres (TEU ‘s) para países árabes e importou 24 mil (TEU’ s). A principal rota usada pelos navios de exportação brasileira não é pelo canal de Suez, possuindo como destino portos anteriores ao canal, como o Porto de Alexandria. Mas, para alguns países Árabes, esses navios brasileiros precisam usar a via que estava bloqueada. Com isso, espera-se um impacto na entrega de mercadorias brasileiras para essas regiões, em uma época muito importante para o mundo árabe, que é o Ramadan (13 de abril), momento em que há um grande consumo de comidas e bebidas. Devido ao aumento de fretes e a falta de containers refrigerados para transporte de commodities agrícolas e alimentos, os navios podem ter um atraso de uma a duas semanas. 

Apesar da proporção e dos impactos gerados pelo evento, um grande questionamento levantado é sobre a dependência de 12% do comércio mundial em um único canal. Mesmo com as modernizações e alargamentos da via marítima, representantes de outros países aproveitam o momento para falar da criação de novos canais. Um exemplo disso, é o embaixador iraniano Kazem Jalali que comentou sobre a possibilidade de uma nova via que atravessaria o Irã, reduzindo em 30% o tempo de viagem em relação ao canal egípcio. É nítido que muitos desses discursos estão longe de uma realidade concreta, mas o debate levantado sobre as infra estruturas que sustentam toda essa cadeia global de comércio deve ser acompanhado, pois certamente continuarão sendo grandes palcos da geopolítica contemporânea.

O histórico do Canal de Suez com a luta por soberania dos egípcios

Nos anos antecedentes a 1952, a compreensão da classe média egípcia era de que o elemento estrangeiro era responsável pela barreira ao desenvolvimento e mobilidade social do Egito. Em 23 de julho de 1952, os oficiais arquitetaram um golpe que depôs a monarquia apoiada pelos britânicos. O Movimento dos Oficiais Livres chegou ao poder sob a liderança de Gamal Abdel Nasser, que mais pra frente se consolidaria como maior expoente do nacionalismo árabe.

O regime buscava realizar uma grande obra que simbolizasse uma compensação para as décadas de dominação colonialista e subordinação que o Egito vivenciou. O projeto da Represa de Assuan tratava-se de uma barragem para controlar as enchentes do rio Nilo, eletrificar regiões do Egito, bem como proporcionar a irrigação de áreas rurais.

Para financiar o projeto, o governo solicitou ajuda ao Banco Mundial. No entanto, a instituição negou-se a prover recursos para o empreendimento por influência do então presidente dos Estados Unidos, D. Eisenhower, alegando que Nasser estaria próximo da União Soviética em virtude de um contrato de fornecimento de armas feito com a Tchecoslováquia, país pertencente ao bloco soviético, além da posição de não-alinhada sustentada pelo governo do Cairo durante a Conferência de Bandung em 1955, em virtude da Guerra Fria.

Diante disso, Nasser viu na nacionalização do Canal de Suez, que até então estava sob o controle de capitais privados de origem principalmente britânica e francesa, a oportunidade de pôr fim ao domínio colonial sobre aquele ponto estratégico, bem como de conseguir os recursos necessários para o financiamento da barragem através de impostos.

Temendo que Nasser fechasse o canal e cortasse o fornecimento de óleo do Golfo Pérsico para a Europa, França e Grã-Bretanha se aliaram a Israel e planejaram uma ação militar para retomar o controle do canal e depor Nasser. Em outubro de 1956, Israel invadiu o Sinai e em novembro tropas britânicas e francesas ocuparam a região e assumiram o controle militar sobre o canal.

A campanha militar enfrentou forte oposição na Grã-Bretanha e na França, além de sofrer a ameaça constante de intervenção das Nações Unidas e da União Soviética, que representavam a insatisfação do bloco capitalista e soviético em relação à postura da Grã-Bretanha e França que remetia à velha lógica dos Impérios Europeus, em função do empreendimento militar feito sem a consulta das duas potências no sistema internacional. Em dezembro, forças da ONU evacuaram as tropas europeias e as forças israelenses saíram da região em março de 1957.

Ao fim do conflito, Nasser saiu vitorioso e lhe foi atribuído o símbolo de líder e herói do Terceiro Mundo, por seu exemplo de resistência ao colonialismo e desejo de emancipação das potências europeias. As ações do líder egípcio estimularam insurreições militares e nacionalistas para derrubada de regimes monárquicos pró-ocidentais por todo o Oriente Médio. 

O capital político de Nasser no universo do terceiro mundismo projetou o Egito como ator fundamental na geopolítica do Oriente Médio, mas também africana. Nasser disputaria, ao lado de Kwame Nkrumah, a liderança do processo de articulação de uma aliança pan-africana que, entre resistências e avanços cautelosos, teve como desdobramento a criação da Organização da Unidade Africana em 1963. Em 2000, esta instituição foi reformada e deu origem à União Africana. 

Embora o Egito não privilegiasse os processos políticos no continente africano, já que desde a morte de Nasser passara para o grupo de aliados dos EUA, concentrando-se em suas relações com a Etiópia e o Sudão, assumiu o comando da União Africana em 2019, no esquema de rodízio. Abdel-Fattah el-Sissi, que se consolidou no poder na eleição de 2018 após um período de disputas, conduziu o retorno do país à organização após a suspensão por violação dos direitos humanos. Ao assumir o comando da UA, o chefe de Estado do Egito teve a responsabilidade de concluir a construção da Zona de Livre Comércio Africana. A adesão do país ao projeto, como a terceira maior economia do continente, pode impulsionar as relações comerciais com os países africanos, já que historicamente o engajamento econômico do Egito no continente é baixo. 

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