A Plataforma Biofuturo e a posição do governo brasileiro diante da bioeconomia

24 de abril de 2021

Por Lucas Rocha, Pedro Mendes, Sara de Paula e Olympio Barbanti Jr

O debate sobre bioeconomia e transição energética sustentável ganha relevância a partir das discussões sobre mudanças climáticas. Está claro nas discussões sobre clima e outras dimensões de sustentabilidade que a ultrapassagem de fronteiras ecossistêmicas por processos produtivos insustentáveis ameaça a própria vida na Terra.

Desde a década de 1970, diferentes governos têm implementado em suas agendas nacionais e internacionais a questão ambiental. São medidas de mitigação das emissões de gases do efeito estufa (GEE), que têm como finalidade o controle da temperatura média do planeta, entre outros problemas a serem debatidos. 

Nesse sentido, no âmbito internacional, muitas conferências têm sido realizadas com o intuito de colaborar com esse debate, como a Conferência de Estocolmo em 1972, a Rio-92, e a Rio+20. Assim, em um cenário mais recente, a 22ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 22) realizada em Marraquexe (Marrocos), no ano de 2016, retomou o debate sobre a diminuição das emissões de GEE preconizada no Acordo de Paris, que entrou em vigor naquele mesmo ano. Nesse evento, houve o lançamento da Plataforma Biofuture, presidida pelo Brasil no momento de seu lançamento, e integrada por Argentina, Canadá, China, Dinamarca, Egito, Estados Unidos, Filipinas, Finlândia, França, Índia, Indonésia, Itália, Marrocos, Moçambique, Países Baixos, Paraguai, Suécia, Reino Unido e Uruguai. 

A iniciativa baseia-se na necessidade de se realizar a transição do atual modelo de produção, intensivo em carbono, para produção e uso de biocombustíveis, bioenergia e produtos de base biológica. Há uma forte incidência da agenda de energia e combustíveis, mas o chamado biofuturo vai além, com vistas a uma ampla alteração da base tecnológica do atual processo de acumulação do capital por meio do uso sustentável de insumos provenientes de recursos naturais. Haverá uma oportunidade de desenvolvimento bioeconômico para o Brasil, em função de sua desindustrialização e da riqueza de sua biodiversidade?

Reorientação do desenvolvimento

É patente que a crise climática traz consigo questões relativas à necessidade de reorientação do modelo de desenvolvimento para que sejam alcançadas metas ambiciosas de redução de emissões de GEE. Nesse contexto, pode-se identificar no momento atual duas principais forças-motrizes: de um lado a retomada da presença dos Estados Unidos nas discussões sobre meio ambiente/clima, pobreza e direitos humanos; de outro, o desenho de uma retomada da economia pós-Covid-19. Não são questões excludentes. A pandemia global, de fato, insere a discussão em uma possível estratégia de recuperação econômica “verde” ou “sustentável” pós-Covid-19, de forma a criar empregos e gerar renda – uma alternativa “climática” aponta para setores estratégicos ligados à economia de baixo carbono. Nesse contexto, a Plataforma Biofuture lançou, também, os cinco princípios para a recuperação e a aceleração da bioeconomia para o pós-COVID-19:

  1. Não retroceder / Continuidade dos projetos: não retroceder em programas existentes. Garantir a continuidade, no longo prazo, de programas e sistemas de produção de biocombustíveis e produtos sustentáveis.
  2. Apoio de curto prazo a produtores: criar programas de incentivos e/ou financiamento para reduzir, no curto prazo, perdas econômicas na cadeia produtiva de biocombustíveis decorrentes da pandemia.
  3. Concorrência mais justa: reavaliar a necessidade de manutenção de subsídios aos combustíveis fósseis, tendo em conta a atual queda no preço do petróleo.
  4. Bio como parte da solução: integrar o setor de bioeconomia sustentável aos planos mais amplos de retomada econômica, requerendo, por exemplo, metas e/ou investimentos em bioenergia como condição para acesso a programas de recuperação de setores como o de transportes e aviação.
  5. Premiar a sustentabilidade: criar mecanismos para incentivar a produção sustentável de biocombustíveis, bioenergia e bioprodutos, promovendo as chamadas externalidades positivas. 

Nesse “cardápio”, novos setores podem ganhar amplitude e gerar espaço para inovação técnica e tecnológica – o que amplia as margens para mudanças tecnológicas, que certamente necessitam de apoio político. Assim, a plataforma Biofuture prevê a necessidade de promoção de um debate amplo com diferentes atores – a chamada iniciativa multistakeholder. Trata-se de uma ação integrada entre representantes de vários diversos setores da sociedade, tanto da esfera pública como privada, como se viu na 1ª Biofuture Summit, evento organizado pelo Ministério das Relações Exteriores em parceria com representantes de indústrias e  centros de estudos enérgicos, realizada em 2017. 

Potencialidades amplas

A Plataforma vai além da questão de biocombustíveis, e deve ser compreendida pelas suas potencialidades mais amplas, relacionadas à bioeconomia. O conceito foi inicialmente proposto pelo economista romeno Nicholas Georgescu-Roegen, que trouxe para a economia o princípio termodinâmico da entropia, pelo qual a dissipação de energia mostra o caráter antieconômico das relações ditas produtivas no modelo econômico atual, assentado no uso de recursos naturais, em especial o uso intensivo de carbono. Atualmente, pode-se destacar na literatura sobre bioeconomia três proposições sobre o conceito que buscam aplicá-lo a práticas produtivas: uma visão biotecnológica que enfatiza a importância de pesquisa, aplicação e comercialização de biotecnologia; uma visão que foca no papel de pesquisa, desenvolvimento e demonstração de materiais biológicos em setores como agricultura e bioenergia; e uma visão bioecológica que destaca a importância de processos ecológicos que otimizem o uso de energia, promovam biodiversidade e evitem monoculturas e degradação de solos. Tais visões não devem ser consideradas como completamente incompatíveis umas das outras, mas sim como tipos ideais de visões sobre bioeconomia

A Comissão Européia, por exemplo, integra algumas dessas visões em sua definição, pois entende bioeconomia como a produção de recursos biológicos renováveis tanto da natureza como de resíduos de processos produtivos, convertendo-os em produtos de base biológica e bioenergia. Ainda de acordo com a comissão, a bioeconomia envolve conhecimentos em biomassa renovável, biotecnologias e integração em todas as aplicações. Já a Plataforma Biofuture usa a definição de bioeconomia como um conjunto de atividades econômicas para a produção de energia renovável, materiais e produtos químicos, focando no desenvolvimento de conhecimentos biotecnológicos e biomassa renovável.

Transição energética

O debate sobre bioeconomia e transição energética sustentável ganhou relevância com o tempo, e deve alcançar maior importância a partir das discussões sobre mudanças climáticas, neste ano. Está claro nas discussões sobre clima e outras dimensões de sustentabilidade que a ultrapassagem de fronteiras ecossistêmicas por processos produtivos insustentáveis ameaça a própria vida na Terra. O Nobel Prize Summit, por exemplo, irá resgatar, este ano, o tema “Nosso Planeta, Nosso Futuro”, uma iniciativa da Academia Nacional de Ciências dos EUA, do Potsdam Institute for Climate Impact Research e do Beijer Institute. O documento, que servirá de base para as discussões da cúpula do Nobel, reconhece que é responsabilidade da humanidade manter as bases de sustentação da vida na terra – uma retomada da ideia do Relatório Brundtland, Nosso Futuro Comum, de 1987. Além disso, em vez de se basear na visão de que o progresso técnico resolverá o problema climático, insere-se a perspectiva de que é preciso respeitar e aprender com o que a evolução da biosfera ao longo da história do planeta tem para oferecer. A questão ambiental se insere, também, na discussão sobre desigualdade, posto que sem redistribuição de riqueza e renda são menores, se existentes, as possibilidades de que o aumento do bem-estar humano ocorra dentro dos limites que a biosfera impõe ao crescimento econômico. E, para isso, o documento destaca a importância de amplas coalizões entre cidadãos, empresas, sociedade civil e governos, com a ciência tendo um papel essencial nisso.

O Brasil tem um papel central nesse tema pois, além do já comentado papel na Biofuture Platform e na bioeconomia — em especial pela produção de etanol — o país tem uma enorme responsabilidade em fomentar sistemas produtivos que façam uso sustentável da biodiversidade, posto que é um país megabiodiverso. Porém, segundo o Instituto Clima e Sociedade (ICS), só em 2016 houve uma elevação de 9% nas emissões de GEE, diretamente ligado ao desmatamento na região amazônica. As emissões por mudanças no uso da terra, segundo o ICS, corresponderam a 51% de todas as emissões de GEE do Brasil. Emissões que poderiam ser evitadas por meio de práticas bioeconômicas capazes de gerar sustentabilidade com valor agregado substantivo por meio de produtos e serviços avançados.

A atividade agropecuária brasileira é a principal fonte dessas emissões de GEE, respondendo por 74% de todas as emissões nacionais no ano de 2016, seja por fontes diretas (22%) ou pelas já mencionadas mudanças no uso da terra. A figura a seguir mostra como a composição setorial das emissões brasileiras estão mudando, com a diminuição da participação de setores energéticos e industriais em aproximadamente -7,4%, e com o aumento da participação de mudanças de uso da terra e agropecuária em aproximadamente 24,7%.

A política externa brasileira, marcada historicamente pelo papel de protagonista nas conferências internacionais sobre meio ambiente e mudanças climáticas, parece não ter como prioridade, neste momento, os princípios para a transição bioeconômica sugeridos pela Plataforma Biofuture, ainda mais considerando sua proposição para o período pós-pandemia e para a Amazônia. 

Papel relevante do Brasil

Porém, apesar da desastrosa política ambiental do governo Bolsonaro, a presidência da plataforma pelo Brasil demonstra a relevância do tema para a agenda de relações exteriores do país, bem como o potencial do Brasil em assumir papel relevante em uma bioeconomia sustentável de baixo carbono. No entanto, há muito pela frente para que o Brasil possa alicerçar seu desenvolvimento e a sua inserção estratégica no cenário global pela bioeconomia, a começar por um compromisso do Estado Brasileiro a ser expresso em uma Política Nacional para Bioeconomia, como defende a Confederação Nacional da Indústria. 

Para que o Brasil avance na transição para uma economia de baixo carbono no pós-pandemia é fundamental a adoção de políticas públicas de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I). Nesse sentido, o projeto Oportunidades e Desafios da Bioeconomia (ODBio), desenvolvido pela Coordenação Geral de Bioeconomia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (CGBE-MCTI) em conjunto com o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (GEE-MCTI), visa subsidiar estratégias para a implementação de políticas em CT&I capazes de promover o desenvolvimento da bioeconomia nacional. Entre os consultores do ODBio, destaca-se os pesquisadores Arilson Favareto (UFABC) e Gabriela Lotta (FGV), que apresentaram o referencial teórico e os modelos de governança para a bioeconomia brasileira. Contudo, os projetos relacionados à bioeconomia e à economia de baixo carbono, como a Plataforma Biofuture e o ODBio, parecem não fazer parte da agenda principal do Governo Federal, o que limita os resultados dos projetos.

Sem uma estratégia nacional contundente voltada à transição para uma bioeconomia de baixo carbono, o que inclui investimentos massivos em CT&I e uma ação integrada entre os setores da sociedade (públicos e privados), o Brasil perderá a chance de liderar essa frente econômica tão promissora, ao passo que reforçará a inserção externa do país baseada no fornecimento de  commodities.

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