Haverá mudanças na política externa?

24 de abril de 2021

Por Cássia Fernandes de Lima, Davi Reis Procari Gonçalves, Ingrid Meirelles, Júlia Luvizotto Nóbrega, Luiza Gouvêa e Rios Cobra e Gilberto Maringoni

O ex-chanceler Ernesto Araújo e seu substituto, Carlos Alberto Franco França, se colocaram publicamente há alguns dias. O primeiro divulgou uma avaliação fantasiosa de sua gestão, que revela as inúmeras fragilidades da política externa empreendida desde o início de 2019. O segundo pronunciou um curto e pragmático discurso de posse. A pergunta no ar é: haverá alterações reais nas diretrizes recentes do Itamaraty?

O ex-chanceler Ernesto Araújo publicou, em 10 de abril no seu blog pessoal, um balanço informal de sua gestão à frente do Itamaraty.  O diplomata parece aludir a um certo “excepcionalismo à brasileira” que teria pautado o papel do país na defesa da democracia e da prosperidade na região, como “condição indispensável para a integração latino-americana”. 

Num texto em que abusa da primeira pessoa –  “pensei”, “fiz”, “mandei”, “promovi”, “organizei”, “lancei”, “resolvi”, “decidi”, “consegui”, “conquistei”, “ “defendi”, “realizei” etc. – , Araújo adota um agressivo tom defensivo (sim, é contraditório, mas é o estilo) para justificar pouco mais de dois anos de uma política externa que isolou o país no mundo e rompeu com várias condutas históricas de nossa diplomacia. 

O diplomata se gaba de ter transformado centros de formulação de reconhecida excelência numa extensão de think tanks da extrema-direita, como assegura a seguir:

“Abri a Funag [Fundação Alexandre Gusmão] e o Instituto Rio Branco a novas correntes de pensamento, principalmente ao pensamento conservador, antes completamente ausente desses espaços. Criei um curso de clássicos no Rio Branco, onde os novos diplomatas discutem os 30 séculos de filosofia e literatura ocidental dentro de sua formação diplomática”. 

Nos anos do ex-chaneceler, o que se viu foi a tentativa de se abolir o pluralismo e a abertura para distintas visões de mundo do debate institucional sobre política externa. E, num estilo em linha com o moralismo de fachada do presidente da República, Araújo acusa aleatoriamente seus antecessores:

“Não me surpreendeu a hostilidade do establishment brasileiro de política externa, formado por Embaixadores aposentados, lobistas, ex-Ministros acusados de corrupção ou ligados a empresas acusadas de corrupção, ex-Presidentes corruptos ou acusados de corrupção, parlamentares acusados de corrupção, escritórios de lobby de países estrangeiros disfarçados de institutos de pesquisa, acadêmicos e comentaristas ligados direta ou indiretamente ao grande sistema corrupto que quer estrangular o Brasil. Para esse grupo, o Itamaraty deveria ser uma província do sistema, um enclave do sistema, dentro do governo Bolsonaro. Nunca permiti que assim fosse.”

Tentativa de ingerência externa

No início de 2019, o flerte da chancelaria com as alas mais belicistas de Washington chegou ao ponto de se aventar uma invasão da Venezuela. Na defesa de sua política externa, Ernesto Araújo diz: “Abandonei a concepção que via os Estados Unidos como uma espécie de inimigo da América Latina e a substituí por uma visão dos EUA no papel de aliado indispensável […] em nossa busca de democracia, prosperidade e segurança. Opinei que o mundo de hoje continua a precisar dos Estados Unidos como superpotência da liberdade”. Em contraste com a diplomacia anterior à sua gestão, o ex-ministro também ressalta seus esforços no sentido do que seria uma “desideologização”, ignorando o fato de que a política externa nunca teve um viés tão discutível como agora, com alinhamentos e iniciativas muitas vezes dissonantes das necessidades do país. 

As alegações de ter construído “uma política, não de afastamento em relação à China, mas de objetividade e cautela” não param em pé, diante da sucessão de agressões gratuitas ao país e ao embaixador chinês em Brasília. Vão pelo mesmo caminho as avaliações de ter concebido “uma nova relação Brasil-África baseada na integração econômico-comercial e cooperação pela segurança e combate ao crime” e “as bases para um novo relacionamento com a América Central e o Caribe”. Fraseado vazio. Em 2020, o Brasil fechou sete embaixadas na África e no Caribe, reduzindo nosso intercâmbio com ambas as regiões. 

Araújo retomou sua retórica conflitiva: Coloquei a diplomacia como instrumento para combate ao crime organizado e ao terrorismo, esse grande flagelo que ameaça a segurança dos brasileiros e a democracia em nossa região, procurando trabalhar, juntamente com a OEA e outros parceiros, para entender e enfrentar o fenômeno pernicioso da junção narcotráfico-terrorismo-corrupção-socialismo na América Latina (o complexo criminoso-político consubstanciado no foro de São Paulo)”.

A avaliação é longa e gongórica. Nela, o ex-chanceler busca aprovação pública de uma diretriz externa que não trouxe resultados positivos ao Brasil.

Troca de comando

Ernesto Araújo pediu demissão em 29 de março. Em 6 de abril, o novo chanceler, Carlos Alberto Franco França, tomou posse. Houve nítida mudança de postura. Em lugar das provocativas intervenções do antecessor, França pronunciou um curto, pragmático e objetivo discurso de posse, fazendo uso de poucos recursos retóricos. Ele apontou como prioridade “a urgência no campo da saúde, a urgência da economia e a urgência do desenvolvimento sustentável”, temas que estiveram em segundo plano até então, chegando no máximo a serem objetos do negacionismo, prática comum nas gestões de crise do governo Bolsonaro.

A intervenção de França contrasta com a longa e alucinada auto-avaliação de Ernesto Araújo. Superadas todas as teorias conspiratórias e auto-elogios usados pelo ex-ministro, contudo, podemos encontrar pontos em comum com o discurso breve do chanceler que nos permitem compreender e prospectar sobre o futuro das relações externas brasileiras. 

A retórica acerca da pandemia e do papel do Ministério de Relações Exteriores em articular esforços para a obtenção de insumos e contratos com novos laboratórios foi a mudança mais esperada, tendo em vista seu papel na substituição do ministro. Assim, ao mencionar três urgências, França atribuiu ao Itamaraty um trabalho associado ao do Ministério da Saúde:  “[…] asseguro que os recursos da nossa diplomacia permanecerão mobilizados para atender às demandas das autoridades de saúde”. Em seguida, afirmou que “as Missões diplomáticas e Consulados do Brasil no exterior estarão cada vez mais engajados numa verdadeira diplomacia da saúde”.

Além de acenos ao Congresso Nacional, França afirma que seu “compromisso […] é engajar o Brasil em intenso esforço de cooperação internacional, sem exclusões. E abrir novos caminhos de atuação diplomática, sem preferências desta ou daquela natureza.”

Perspectivas futuras

Apesar de pouco detalhar sua ação futura, França alude a uma possível cooperação entre países latino-americanos. Menciona diretamente os acordos entre Brasil e Argentina como “símbolos do predomínio da cooperação sobre a rivalidade”, gesto que soa como resposta às rusgas do presidente brasileiro com o homônimo de Buenos Aires. No âmbito Mercosul, não é improvável que mantenha, de seu antecessor, a pauta de reestruturação do bloco, tema com apelo nos governos do Uruguai e Paraguai. O novo ministro não fala diretamente da  Venezuela, mas é pouco provável alguma aproximação maior. Mas estão fora de cena alucinações como as de Araújo. Este sublinhou em seu balanço o seguinte:

França ainda destacou que “temos a mostrar ao mundo uma matriz energética que é predominantemente renovável. Um setor elétrico que, três vezes mais limpo do que a média mundial, já pode ser considerado de baixo carbono”. É uma clara tentativa de evitar a imagem oficial de descaso com o meio ambiente. Segundo ele, temos “uma legislação ambiental – Código Florestal – que é das mais rigorosas do mundo”. 

Também dentre as mudanças, chama a atenção o papel que cada um dos titulares atribui ao multilateralismo. Para o novo titular do MRE,  “O Brasil sempre foi ator relevante no amplo espaço do diálogo multilateral. Isso não significa, como é evidente, aderir a toda e qualquer tentativa de consenso que venha a emergir, nas Nações Unidas ou em outras instâncias. Não precisa ser assim e não pode ser assim. O que nos orienta, antes de tudo, são nossos valores e interesses. Em nome desses valores e interesses, continuaremos a apostar no diálogo como método diplomático. Método que abre possibilidades de arranjos e convergências que sempre soubemos explorar em nosso favor. O consenso multilateral bem trabalhado também é expressão da soberania nacional.” 

É uma mudança significativa em relação aos anos recentes. Veja-se o palavreado de Araujo:

“Representei o Brasil em dezenas de reuniões multilaterais, onde sempre levei a mensagem da necessidade de bom funcionamento dos organismos internacionais como espaço de coordenação e cooperação entre nações soberanas, e não como agências ‘superiores’ aos Estados membros incumbidas de ditar normas para toda a humanidade”.

O tom da frase demonstra seu entendimento acerca da natureza hostil e “globalista” de tais organizações. 

Rompimento pontual

França é funcionário de carreira do Itamaraty e foi promovido a embaixador no final de 2019. Nunca comandou um posto no exterior e tem como foco de estudos o tema da energia elétrica. Apesar de não demonstrar até aqui uma ruptura radical em relação a Ernesto Araújo, o novo chanceler fez modificações pontuais na estrutura do ministério. Dois dias após sua posse, nomeou para a secretaria-geral do órgão o embaixador Fernando Simas Magalhães, atual representante permanente do Brasil na Organização dos Estados Americanos (OEA). O ministro ainda optou por trocar o atual presidente da Agência de Promoção de Exportações (Apex-Brasil), o contra-almirante Sergio Segovia, pelo diplomata Augusto Pestana. 

No último dia 16, França fez novas alterações internas. Escolheu a embaixadora Cláudia Buzzi para fazer a intermediação entre a pasta, o Congresso Nacional, governos estaduais e prefeituras. Além disso, optou por Luiz Fernando Botelho de Carvalho como seu assessor especial. Pedro Wollny, ex-chefe de gabinete de Ernesto Araújo, assumiu a Secretaria de Gestão Administrativa e Achilles Zaluar se tornou o chefe de gabinete. São quadros profissionais, com baixo perfil ideológico.

No dia 10 de abril, Carlos Alberto França ligou para Felipe Solá, chanceler da Argentina, demonstrando sua disposição em recuperar a relação com o país vizinho, desgastada por disparates externados pelo presidente Bolsonaro e por seu vice, Hamilton Mourão. Com relação a China, a substituição também parece ter sido bem recebida em Pequim.

Isolado interna e externamente, Jair Bolsonaro parece apostar em um ministro mais discreto e pragmático. A questão que fica é se o novo titular do MRE conseguirá colocar freios na ala extremista do governo, responsável por uma política pautada por teorias conspiratórias e negacionistas, além de submetida aos interesses norte-americanos. 

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