29 de junho de 2021
Por Gabriel Pimentel, Isabela Montilha, Letícia Tokusato e Gilberto M. A. Rodrigues (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
A ausência de políticas públicas no combate à epidemia da violência contra a população LGBTI+ e o descaso e falta de incentivo a denúncia aos casos de LGBTcídio no Brasil é um ponto fortemente questionado pelas autoridades internacionais e revela a face de um país que figura como um dos mais LGBTfóbicos do mundo
Mês do orgulho, celebração pandêmica e conscientização sobre HIV/AIDS
Pela segunda vez em seus 25 anos de existência, a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo teve de abrir mão da Avenida Paulista como palco de suas festividades. Graças à ininterrupta crise da COVID-19 no Brasil, os meios de comunicação digitais foram responsáveis por sediar, neste mês do orgulho, a ParadaSP ao vivo, versão virtual do conhecido evento que contou com mais de oito horas de duração. Apesar das limitações que o contexto atual impõe em grandes celebrações como essa, a Parada o transformou em ferramenta: além da democratização do evento, que agora pode ser acompanhado por telespectadores de todo o Brasil, a Associação da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo (APOLGBT-SP) fez de seu principal evento uma plataforma de conscientização poderosíssima. Por meio do tema de 2021 HIV/AIDS: Ame + Cuide + Viva +, o evento promoveu com extrema sensibilidade o combate ao estigma de pessoas vivendo com HIV e AIDS, informações sobre profilaxia e a celebração da vida e da união, de pessoas LGBTQIA+ e da sociedade brasileira.
Apoiada pelo Programa Conjunto da ONU sobre HIV/AIDS (UNAIDS) e por diversas ONGs com a mesma temática, a ParadaSP resgatou um importante estudo do Programa: o Estigma em Relação às Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (2019), para junto a médicos infectologistas e pessoas soropositivas tratar sobre os pífios avanços da sociedade brasileira quanto ao assunto. Segundo o estudo, que detecta e mede a mudança de tendências discriminatórias relacionadas com soropositividade em sete capitais brasileiras (1), a experiência em se revelar soropositivo para brasileiros vivendo com HIV ou AIDS tende a ser avaliada como ruim para a maioria (54,3%). Este dado pode ser relacionado diretamente com o estigma construído sobre os entrevistados, e é apontado como um dos fatores que fundamentam o “sigilo da condição sorológica” destes. O estudo traz também uma série de dados sobre a experiência pessoal dos entrevistados com a discriminação: dentre todos os participantes do estudo, 64,1% já sofreu alguma forma de discriminação sobre sua soropositividade. Destes, 41% afirmam terem sido discriminados por familiares, 25,3% afirmam ter sofrido assédio verbal, 6% afirmam ter sofrido agressões físicas e 19,6% afirmam ter perdido suas fontes de renda por serem alguém vivendo com HIV ou AIDS.
Especificamente sobre a população queer, o estudo da UNAIDS é uma ferramenta valiosa para demonstrar que a discriminação acontece diferentemente a depender dos marcadores sociais que as pessoas trazem consigo. Dentre todos os entrevistados que se identificam como homens, 78,8% não se encaixam na heterocisnormatividade; dentre as entrevistadas que se identificam como mulheres, este total é de 8%. Entretanto, os índices de discriminação e estigmatização são consideravelmente mais comuns entre eles do que entre os entrevistados heterocisnormativos: 74,9% desses homens e 62,3% das mulheres já sofreram alguma forma de discriminação em virtude de suas orientações sexuais. Tais discriminações incluem rejeição por familiares e amigos, comentários vexatórios, agressões verbais e físicas, entre outros. Portanto, é evidente que, em um país como o Brasil, pessoas LGBTQIA+ são expostas a violências das mais diversas formas, que são ainda mais agravadas por serem afetados pelo HIV e a AIDS.
Ano de 2020 registra queda de 28% nas mortes LGBTI+, mas não há o que comemorar
Segundo o relatório do “Observatório das Mortes Violentas de LGBTI+ No Brasil – 2020” realizado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) e pelo Acontece Arte e Política LGBT+, de Florianópolis, 237 mortes foram registradas no Brasil em 2020 pela LGBTIfobia. Desse total, 224 são homicídios (94,5%) e 13 são suicídios (5,5%).
O Grupo Gay da Bahia, há mais de 40 anos coleta e divulga informações sobre a violência contra a comunidade LGBTI+ no Brasil com seu relatório anual. Segundo os pesquisadores, a LGBTfobia surge da quebra da normatividade sistêmica da sociedade, na qual as diferentes formas de expressões sexuais e afetivas perturbam o padrão heterocisnormativo. No ano de 1990, 194 pessoas foram assassinadas vítimas da LGBTfobia. Após 20 anos, esse número cresceu aproximadamente 60%, registrando 260 mortes. Mas foi em 2017 que foi registrado o maior número, com 445 mortes de LBGTI+. Acompanhando a tendência de redução de mortes em 2019, o ano passado registrou uma queda de 28% na taxa de mortalidade. Entretanto, esses dados não trazem motivos “factíveis para se comemorar”. A redução no número de mortes não é justificada pela implementação de políticas públicas voltadas para a inserção e proteção da comunidade LGBTI+, mas sim pela oscilação numérica “imponderável” e pela grande subnotificação identificada durante as pesquisas. O desmonte das políticas de incentivo à denúncia contra LGBTfobia também contribuíram com a falta de informação para a pesquisa.
Efeitos da pandemia e do negacionismo na subnotificação de mortes LGBTI+
A pandemia foi um dos fatores que mais contribuiu para a elevada subnotificação de casos, aponta o relatório do Grupo Gay da Bahia. A intensificação do isolamento de pessoas LGBTI+ e o fechamento de atividades não essenciais, como boates, bares e locais de cunho cultural, levaram à diminuição do convívio social externo da comunidade LGBTI+, que já tinha espaços de socialização limitados devido à discriminação sofrida nos demais ambientes sociais. Junto à ausência de dados oficiais (2), a dificuldade de identificação dos casos que ocorrem em ambientes fechados auxiliou na queda dos registros.
O professor e antropólogo Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, aponta que o discurso LGBTfóbico do presidente Jair Bolsonaro e as constantes ameaças à comunidade LGBTI+ por parte de seus seguidores nas redes sociais levou ao acautelamento de membros da comunidade. O comportamento preventivo observado, que decorre da tentativa de evitar situações de risco e se tornar uma vítima em potencial, intensificou-se na pandemia e, de forma semelhante ao que ocorreu durante a epidemia de AIDS, a população LGBTI+ vem adotando novas estratégias de sobrevivência e se resguardando, o que, segundo Mott, pode ter contribuído para a diminuição dos casos de mortes.
O relatório ainda destaca a dificuldade de registro dos suicídios ocorridos entre a população LGBTI+. A subnotificação dos casos de suícidio é apontada pelo relatório como superior ao de casos de homicídio. Isso se deve principalmente a três estigmas associados a esses dados: a homossexualidade, o gênero diverso e a morte intencional.
Por fim, o mestrando Alexandre Bogas, coordenador do Acontece LGBTI+, ressalta o negacionismo do governo federal na condução da pandemia. Ele questiona quantas vidas LGBTI+ foram perdidas pela incompetência da gestão do atual governo e quantas poderiam ter sido evitadas caso tivessem sido adotadas as medidas corretas. A reflexão sobre a ausência de políticas públicas no combate à epidemia da violência contra a população LGBTI+ e o já mencionado descaso e falta de incentivo a denúncia aos casos de LGBTcídio no Brasil é um ponto fortemente questionado pelas autoridades internacionais e revela a face de um país que figura como um dos mais LGBTfóbicos do mundo.
NOTAS
1 – Sendo estas: Manaus (AM), Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Salvador (BA), Recife (PE), São Paulo (SP), e Rio de Janeiro (RJ).
2 – Os levantamentos foram feitos com base nas mortes noticiadas pela imprensa e por movimentos sociais
FONTES:
Parada LGBT tem música, ferramenta contra ódio e crítica ao desmonte do SUS. São Paulo: UOL, 6 jun. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2021/06/06/com-musica-e-critica-ao-desmonte-do-sus-parada-lgbt-foca-na-informacao.htm. Acesso em: 15 jun. 2021.
SOUZA, Ludimilla. SP: Parada do Orgulho LGBT tem shows e conscientização sobre HIV/aids. Brasília: Agência Brasil, 6 jun. 2021. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2021-06/sp-parada-do-orgulho-lgbt-tem-shows-e-conscientizacao-sobre-hivaids. Acesso em: 15 jun. 2021.
Índice de Estigma 2019 Brasil. UNAIDS, 2021. Disponível em: https://unaids.org.br/indice-estigma/. Acesso em: 15 jun. 2021.
Observatório de Mortes Violentas De LGBTI+ No Brasil – 2020. Acontece Arte e Política LGBTI+; Grupo Gay da Bahia, 2021. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2021/05/Observatorio%E2%80%90de%E2%80%90Mortes%E2%80%90Violentas%E2%80%90de%E2%80%90LGBTI-13mai2021.pdf. Acesso em: 15 jun. 2021.
Relatório: Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ No Brasil, 2020. Salvador: Grupo Gay da Bahia, 14 maio 2021. Disponível em: https://grupogaydabahia.com.br/2021/05/14/relatorio-observatorio-de-mortes-violentas-de-lgbti-no-brasil-2020/. Acesso em: 20 jun. 2021.
SEGALLA, Vinícius. Dia Internacional contra a LGBTfobia: mortes foram subnotificadas no último ano. São Paulo: Brasil de Fato, 17 maio 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/05/17/dia-internacional-contra-a-lgbtfobia-mortes-foram-subnotificadas-no-ultimo-ano. Acesso em: 15 jun. 2021.
Dia Internacional Contra a LGBTfobia: subnotificação e pandemia levam Brasil a registrar menos mortes de pessoas LGBT+ em 2020. O Globo, 17 maio 2021. Disponível em: https://oglobo.globo.com/celina/dia-internacional-contra-lgbtfobia-subnotificacao-pandemia-levam-brasil-registrar-menos-mortes-de-pessoas-lgbt-em-2020-25019575. Acesso em: 20 jun. 2021.
‘Epidemic of violence’: Brazil shocked by ‘barbaric’ gang-rape of gay man. The Guardian, 9 jun. 2021. Disponível em: https://www.theguardian.com/global-development/2021/jun/09/epidemic-of-violence-brazil-shocked-by-barbaric-gang-rape-of-gay-man. Acesso em: 20 jun. 2021.
Publicado originalmente em 28 de junho de 2021 na coluna do OPEB no Brasil de Fato.