13 de julho de 2021
Por Flávio Francisco, Kethelyn Santos, Enrique Lima e Mohammed Nadir (Foto: AfCFTA)
Com políticas orientadas para o fortalecimento das bases necessárias para a livre circulação de capital, bens, serviços e pessoas, o tratado possui mais força e tração do que os elaborados no passado. O mesmo não será capaz de solucionar todos os desafios encontrados em África, mas poderá aumentar o grau de inserção econômica de diversos países no comércio internacional, assim como diminuir os níveis de pobreza em muitas nações.
Em 1999, os chefes de Estado e de governo africanos, por meio da Declaração de Syrte, concordaram com a criação da UA-União Africana. Assim, com base no Ato Constitutivo de 11 de julho de 2000, a Organização da Unidade Africana (OUA, 1963-1999) foi substituída pela UA, cujas atividades tiveram início no ano 2001. Ela é composta, atualmente, pelos 55 Estados membros que constituem os países do Continente Africano. A sede permaneceu em Addis Abeba. Trata-se de um organismo continental.
O principal objetivo foi acelerar o processo de integração no continente para permitir que a África desempenhasse seu papel legítimo na economia global ao mesmo tempo em que aborda problemas sociais, econômicos e políticos multifacetados, agravados como eram por certos aspectos negativos da globalização.
De fato, a decisão de relançar a organização panafricana da África foi o resultado de um consenso entre os líderes africanos de que, para realizar o potencial da África, era necessário desviar a atenção da luta pela descolonização e pela libertação do continente do apartheid, que havia sido o foco da OUA, no sentido de uma maior cooperação e integração dos estados africanos para impulsionar o crescimento e o desenvolvimento económico continental. Desse modo, a linha orientadora da UA é alcançar “Uma África Integrada, próspera e pacífica, impulsionada pelos seus próprios cidadãos e representando uma força dinâmica na arena global”.
Ato constitutivo
Se nós analisamos o Ato Constitutivo da União Africana e o Protocolo sobre Emendas ao Ato Constitutivo da União Africana constataremos a ênfase dado ao campo econômico de modo a permitir – de um lado – ao continente africano desempenhar o seu papel legítimo na economia global e nas negociações internacionais, promover o desenvolvimento sustentável a nível económico, social e cultural, bem como a integração das economias africanas e por fim coordenar e harmonizar as políticas entre as Comunidades Económicas Regionais existentes e futuras para a concretização gradual dos objetivos da União.
Ora uma das instancias de relevo é as Comunidades Económicas Regionais (CERs) que são agrupamentos regionais de Estados africanos. Os RECs (sigla inglesa) desenvolveram-se individualmente e têm como propósito facilitar a integração econômica regional e eventual continental entre os membros das regiões individuais e através da Comunidade Económica Africana (AEC sigla inglesa) que foi estabelecida ao abrigo do Tratado de Abuja (1991).
A UA reconhece oito RECs, as:
- União do Magrebe Árabe (UMA)
- Mercado Comum para a África Oriental e Austral (COMESA)
- Comunidade dos Estados do Sahel-Saharan (CEN-SAD)
- Comunidade da África Oriental (EAC)
- Comunidade Econômica dos Estados da África Central (CEEAC)
- Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO)
- Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD)
- Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC).
Assim, a entrada em vigor da Zona de Livre Comércio Continental Africana 1 de janeiro de 2021, simboliza o culminar de todo um processo de décadas.
A articulação da AfCFTA
A Zona de Comércio Livre Continental Africana (AfCFTA) é um dos carros-chefes da agenda 2063 da União Africana. Em abril de 2015, a União Africana estabeleceu um plano de compromissos para impulsionar o crescimento econômico no continente. As iniciativas da agenda destacam investimentos em infraestrutura, educação, ciência, tecnologia, cultura e manutenção da paz para serem implementados em 47 anos. Na área de energia, por exemplo, há a proposta de construção de estações nas quedas Inga na República Democrática do Congo; em relação aos transportes, surgiu o projeto de integração de transporte aéreo comercial. A AfCFTA já havia sido idealizada em 2012 para intensificar o comercio entre africanos em evento da União Africana no qual lideranças africanas concordaram em criar uma zona de livre comércio.
Em um primeiro momento, a intenção era iniciar a AfCTA em 2017, porém as negociações somente foram concluídas no ano seguinte. Os países africanos se reuniram em Kigali, na capital de Ruanda, em assembleia para a assinatura de três acordos para promover a integração. O primeiro foi o Protocolo sobre Livre Circulação de Pessoas, que tinha o objetivo a facilitação do deslocamento dos cidadãos africanos entre as fronteiras nacionais, institucionalizando o processo através da criação de um passaporte continental. Os outros acordos foram a Declaração de Kigali e o AfCFTA que oficializaram a zona de livre comércio, com o compromisso dos países de eliminar 90 por cento de tarifas sobre bens, serviços e produtos em um período de cinco anos e estabelecer uma união aduaneira.
Já nessa reunião em 2018, no mês de março, cerca de 44 dos 55 países do continente assinaram a AfCFTA. Cinco meses depois, na Cúpula da União Africana, cinco países aderiram á área de livre comércio: África do Sul, Suazilândia, Serra Leoa, Lesoto e Namíbia. Já em fevereiro de 2019, Guiná Bissau, Zâmbia e Botswana. Entretanto, a Nigéria demorou a ingressar na AfCFTA e preocupou os demais países por ser a principal economia do continente ao lado da sul-africana. O país não aderiu no início porque resolveu estudar o impacto do acordo sobre diferentes setores de sua economia. Os nigerianos criaram um comitê para desenvolver um estudo para identificar os efeitos positivos e negativos, sobretudo no setor manufatureiro, chegando a um parecer no mês de julho. Quando o país, enfim, assinou, acordo, a AfCFTA já iniciava as suas operações que, por conta da pandemia, foram efetivadas no início de 2021.
Perspectivas para 2021
Com a Zona de Livre Comércio Continental Africana em vigor desde janeiro deste ano, as perspectivas para um aprofundamento na integração regional africana são grandes. O projeto da União Africana (UA) é ambicioso e 54 dos 55 países participantes do órgão regional assinaram o tratado de livre comércio. Possuindo um mercado de 1.2 bilhões de pessoas e 3 trilhões de dólares em PIB, o esforço político para mover a África no caminho da integração regional e cooperação é crucial. Com o AfCFTA sendo implementado devidamente por todos os Estados participantes, estima-se que poderá ocorrer um aumento de 1 a 3% no PIB de diversos países. A livre circulação de bens, serviços e pessoas irá aquecer o mercado africano, possibilitando maior desenvolvimento econômico e melhor distribuição de riqueza.
O Banco Mundial prevê um aumento dos salários, principalmente na Costa do Marfim, Zimbábue, Quênia e Namíbia, onde podem atingir mais de 10% de crescimento até 2035. Também é estimado um aumento na receita regional de 7%, o que representa 450 bilhões de dólares. Os desafios enfrentados por uma integração regional dessa magnitude precisarão ser superados com resiliência pelos líderes africanos, que não podem recuar na visão proposta pelo AfCFTA. Assim como a União Europeia enfrentou, e continua enfrentando, diversas turbulências advindas de protecionismos, assimetrias econômicas e outros atritos sociopolíticos, não será diferente para as nações africanas. Apesar do imenso desafio e da amplitude de pessoas que o mesmo envolve, os possíveis benefícios são animadores para um continente que enfrenta crises humanitárias, elevados graus de pobreza e subdesenvolvimento acentuado em muitas regiões.
Mesmo com o tratado comercial em vigor, os países estão em processo de internalização e implementação das medidas, desde sanitárias e criação de infraestrutura, até a redução de tarifas de importação e exportação. Dessa maneira, ainda não há mudanças latentes nos preços de produtos do cotidiano da população. Além disso, uma transformação tão profunda nas estruturas econômicas de um continente inteiro pode gerar tensões, afinal, o desenvolvimento não será igual para todos. Países com bases industriais mais consolidadas, economia diversificada e população com maiores graus de instrução tendem a crescer e prosperar mais que outros que não possuem tais condições. Haverá um desenvolvimento geral, mas é necessário manter a atenção para o aumento de assimetrias que ocorrerá entre os países, e como isso poderá gerar conflitos políticos-diplomáticos.
Diferentemente da União Europeia, a África possui desafios mais peculiares entre suas regiões, com economias muito diferentes entre si, aumentando o desafio no âmbito regional, fazendo-se necessário que os principais líderes mantenham o foco na cooperação. Com isso em mente, foi lançado em 2020 o AfCFTA Vision, uma combinação de campanhas de defesa social e incentivo à inovação e tecnologia em diferentes grupos de interesse no continente. A meta é reforçar o grande projeto regional por trás da AfCFTA com o fomento de pequenos empresários, e a potencialização de ideias que irão permitir evoluções na infraestrutura e economia africana. Busca-se através de tal iniciativa, consolidar o pensamento africano regional, para que as assimetrias políticas, econômicas e culturais entre as nações não se sobressaiam ao desenvolvimento proposto para todo o continente.
Com políticas orientadas para o fortalecimento das bases necessárias para a livre circulação de capital, bens, serviços e pessoas, o tratado possui mais força e tração do que os elaborados no passado. O mesmo não será capaz de solucionar todos os desafios encontrados em África, mas poderá aumentar o grau de inserção econômica de diversos países no comércio internacional, assim como diminuir os níveis de pobreza em muitas nações.
AfCFTA e a China
A China está marcando sua presença na África com programas que apoiam a infraestrutura, o comércio e a industrialização do continente, contando com incentivos oriundos de seu projeto mais ambicioso, o Belt and Road Initiative (BRI). O BRI representa a reorientação da agenda econômica chinesa, que pretende fortalecer os mercados consumidores domésticos como fonte de crescimento econômico, priorizar a exportação de tecnologia e serviços para diminuir a dependência em relação a renda de exportação de bens de baixo valor agregado, bem como reduzir a dependência de fontes singulares de importação de matérias primas para a China.
Quanto ao aspecto político, a China vê como oportuno preencher a lacuna de investimentos em infraestrutura de regiões periféricas – em especial causada pela fuga de capitais de países ocidentais desde a recessão global de 2008 – para manter boas relações de cooperação com países do Sul, visando obter uma legitimidade que lhe garantisse maior poder de barganha dentro do Sistema Internacional.
Atualmente o país figura como o maior investidor em infraestrutura dentro do continente africano, de modo a compensar as assimetrias de uma pauta de comércio primário-exportadora por parte da África, além de financiar o desenvolvimento econômico e tecnológico da região.
Quanto ao AFCFTA, para que o acordo funcione de maneira eficiente, é necessário não só a eliminação de tarifas, como o desenvolvimento de infraestrutura que permita tanto o transporte quanto a operacionalização do comércio continental. Diante disso, para o bom funcionamento do acordo, o investimento direto estrangeiro é crucial. Por outro lado, os setores manufatureiros apontam para brechas nos acordos da zona de livre comércio que não protegeriam os produtos africanos da competividade dos produtos chineses. Os quenianos, por exemplo, afirmam que a baixa exportação de cimento produzido no país está associada ao cimento chinês.
Apesar do ceticismo em relação à presença chinesa tanto por parte da África, quanto por parte da opinião pública ocidental que chega a caracterizar essas relações como uma espécie de “novo imperialismo”, uma ajuda chinesa para a operacionalização do acordo comercial é interessante para África, pois diferentemente das relações com os países ocidentais, esses investimentos chineses não pressupõem nenhuma condicionalidade.
Além disso, a presença chinesa na região poderia despertar o interesse de potências rivais que desejam limitar a projeção de influência mundial chinesa – como EUA ou Índia,- o que desencadearia em uma maior presença dessas potências na região para contrabalancear o poder chinês. Por sua vez, como o investimento chinês é mais competitivo, esses países teriam que ser igualmente competitivos para negociar com os países africanos e portanto, caberia aos governos regionais a garantir que a atraente oferta de comércio chinesa não crie a mesma dependência na venda de recursos naturais, commodities e produtos agrícolas que os africanos estabeleceram com outros países desenvolvidos.