Cuba, protestos e embargo

27 de julho de 2021

Por Davi Reis Procaci Gonçalves, Júlia Luvizotto Nóbrega, Luiza Gouvêa e Rios Cobra e Tatiane Anju Watanabe (Foto: )

Manifestantes insatisfeitos com o agravamento das crises econômica e sanitária foram às ruas em diversas cidades cubanas nos dias 11 e 12 de julho. As expressões mais evidentes dos problemas são a expansão da pandemia e a escassez de remédios e alimentos nos mercados. A situação é agravada pelo embargo de mais de 60 anos patrocinado pelos EUA. O Governo se vê diante das mais sérias turbulências sociais desde o início dos anos 1990.

Desde o último dia 11 de julho, ocorreram em várias cidades cubanas mobilizações reclamando da falta de acesso a bens básicos, dos constantes apagões e da nova onda de casos de Covid-19, agravados pela tentativa de reabertura do turismo, no início do ano. Os movimentos, considerados os maiores desde o Maleconazo de 1994, começaram em San Antonio de los Baños, a cerca de 35 quilômetros da capital. Eles se dão num momento de crise e adaptação à reforma econômica implementada em 2020 e diante do agravamento do embargo estadunidense que afeta Cuba há 60 anos. 

Os constantes apagões são motivados pelo impedimento da chegada de carregamentos de petróleo, que abastecem as termelétricas, responsáveis pela geração de energia em todo o país. Remédios e alimentos, por sua vez, também são afetados pela crise econômica e pelo embargo. Em entrevista coletiva no dia 12 de julho, o presidente Miguel Díaz-Canel reconheceu os gargalos de abastecimento e o agravamento da pandemia, reforçando o papel das sanções na economia e nos próprios distúrbios sociais. As críticas se estendem também ao sistema político.

Dentre os oposicionistas mais ferrenhos estão artistas que compõem o Movimento San Isidro e 27N, que desde 2018 – quando entrou em vigor o Decreto 349, para regulamentar atividades artísticas e culturais – ganharam força política. Mykel “Osorbo” Castillo, um dos líderes do MSI, apelou a Washington por um “bloqueio total” e intervenção militar à ilha; outros ecoaram tais desejos sob gritos por “liberdade” e “paz e vida”. Segundo governistas e seus apoiadores, essa parcela seria composta por contrarrevolucionários financiados pelos Estados Unidos. Tal grupo foi contraposto por outros atos populares em defesa do regime, chamados pelo presidente, que também foi às ruas, uma semana depois dos protestos.

O Ministério do Interior confirmou, até o momento, a morte de um manifestante e que ocorreram conflitos entre participantes dos atos e policiais ao longo do dia de protestos, mas não divulgou o número de presos. A oposição fala em até 130. Outra reação associada aos atos é a queda do acesso de internet e do serviço de telefonia, que os oposicionistas e a mídia hegemônica internacional acreditam ser um ataque à liberdade de expressão. Em resposta, o ministro das Relações Exteriores cubano, Bruno Rodríguez, afirmou: “É verdade que faltam dados [móveis], mas faltam medicamentos também”.

No dia 19, entrou em vigor uma medida excepcional como resposta à escassez de comida, medicamentos e produtos de primeira necessidade, permitindo a eliminação de restrições alfandegárias. O Ministério de Finanças e Preços, que aprovou a resolução, a manterá até pelo menos 31 de dezembro. Outra reação foi um grande comício convocado pelo governo no sábado, 17, para denunciar o embargo e reafirmar o apoio à Revolução. O evento contou com milhares de pessoas, dentre as quais Raúl Castro. 

O papel da internet e das redes sociais

Os protestos foram convocados nas redes sociais, com o uso da hashtag #SOSCuba para divulgação de transmissões ao vivo, fotos e vídeos, que ganharam atenção em todo o mundo. De acordo com o analista digital Julián Macías Tovar, diretor do Pandemia Digital (Observatorio contra la desinformación), a primeira conta no twitter a usar a hashtag foi um bot (conta automatizada por robôs ou robôs e humanos operando), sendo movimentada por outros bots, considerando a velocidade de replicação dos tweets. Observa-se também que muitos dos tuitaços vieram do exterior – inclusive da Flórida, lar de cubanos-americanos direitistas -, e houve o uso de vídeos e imagens de manifestações antigas de outros países divulgadas como se fossem da ocasião. Aconteceu, ainda, a divulgação de fake news sobre a situação no país, que noticiaram um suposto pedido de demissão por parte do vice-ministro da pasta de Interior, a fuga de Raúl Castro para a Venezuela e ainda o envio de tropas de Caracas à ilha. Desde 2015 o acesso à banda larga aumentou, como em outros países latino-americanos. 

O acesso de Cuba à internet sofre com a política estadunidense, tendo impedido, ao longo dos anos, o acesso aos canais de comunicação e a aquisição de tecnologia para o desenvolvimento desta área. Só em 1996 foi possível a conexão por meio de um link de satélite, e em 2011 começou a instalação de um cabo de fibra óptica submarino que ligaria Cuba e Venezuela, garantindo uma saída para maior independência de comunicações. Atualmente, os cubanos têm acesso à internet por meio de dados móveis – com 3,4 milhões de usuários, dentre os quais 650 mil em 4G -, zonas de Wi-Fi em espaços públicos e salas de navegação em hotéis e no Clube Jovem de Computação. O preço de acesso a esses serviços ainda é alto, mas vêm vendo uma queda nos últimos anos, além do aumento da própria conectividade. 

Reações da comunidade internacional

Os protestos chamaram atenção por todo o mundo. O presidente dos EUA, Joe Biden, disse estar “ao lado do povo cubano”, apesar de manter as rígidas restrições que o governo de Donald Trump estabeleceu em seu mandato. O chefe de Estado ainda chamou Cuba de “sistema falido e repressivo”, e afirmou que não enviaria carregamentos de vacina do coronavírus à ilha porque “o governo confiscaria as doses ou parte delas”. A maior potência tecnológica do mundo ainda disse que iria considerar se possuíam a tecnologia necessária para reestabelecer o acesso à internet em Cuba. 

Biden anunciou no dia 22 de julho sanções contra o ministro da Defesa, Álvaro López Miera, e a Brigada Especial Nacional (BEN), conhecida como boinas negras, por conta da “repressão das forças de segurança” durante os atos do início do mês, congelando os bens e interesses do ministro. 

No Brasil, Jair Bolsonaro ecoou apoio aos manifestantes, que disse pedirem “o fim de uma ditadura cruel que por décadas massacra a sua liberdade enquanto vende para o mundo a ilusão do paraíso socialista”. O alto representante para a Política Externa da União Europeia, Josep Borrell, pediu a Havana que manifestações pacíficas fossem permitidas, seus participantes escutados e que os cidadãos detidos fossem soltos imediatamente. 

Na América Latina, Alberto Fernández, presidente argentino, exigiu o fim do embargo estadunidense, e Luis Arce, líder boliviano, disse que “quanto mais Cuba avança com a saúde e a ciência, mais enfrenta a desinformação e o ataque estrangeiro”, usando #EliminaElBloqueo em seu tuíte. Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, ofereceu ajuda humanitária ao país, rejeitou políticas “intervencionistas” e também se posicionou pelo fim do embargo.

Economia

Cuba realizou muitas mudanças econômicas durante os anos 1990, e tinha até ali como fontes de renda as exportações de açúcar e tabaco. Desde o fim da União Soviética, o país passou a enfrentar problemas econômicos em relação à importação e exportação de seus produtos. Na tentativa de mudar a situação, o governo começou a estimular fortemente a atividade turística tornando-se a principal atividade econômica nos últimos 25 anos. Porém, com a chegada do Covid-19, a disfunção econômica da ilha se agravou e tornou-se um grande problema para o atual governo.

Com os embargos econômicos, a ilha encara maiores dificuldades para promover o seu crescimento financeiro. O produto interno bruto (PIB) de Cuba caiu em 8,5% em 2020, de acordo com a Cepal. Para o Banco Mundial o número é ainda maior, alcançando cerca de 11%.

No dia 1º de janeiro, em homenagem aos 62 anos do triunfo da revolução cubana, o país teve o “Dia Zero” em sua economia, com a unificação de suas moedas, o peso cubano (CUP) e o peso cubano conversível (CUC). Passou a existir o peso cubano, que teve seu câmbio fixado em US$ 1/24 pesos. Tal reforma, considerada a maior desde os anos 1990, ocasionou o aumento dos preços de alimentos, serviços, bens básicos, e também dos salários e pensões. Ao elevar o custo de vida dos cubanos, contribuiu para o descontentamento da população, que sofre com a crise econômica e sanitária, agravadas pelo bloqueio de Washington. O governo afirma que as medidas são essenciais para acabar com décadas de ineficiência na economia socialista e aumentar a produtividade. 

No dia 2 de junho, o governo aprovou a criação de pequenas e médias empresas privadas em setores não-estratégicos para o desenvolvimento do país. A mudança que só deve entrar em vigor em 2022 é a continuação de um movimento de abertura econômica iniciado ainda em 2010 por Raúl Castro, que vinha sofrendo com entraves dos membros da “geração histórica” do Partido Comunista Cubano. O presidente Miguel Díaz-Canel se mostrou disposto a acelerar as mudanças econômicas e afirmou que busca “acabar com os entraves burocráticos que impedem o desenvolvimento dos atores econômicos e, em particular, das empresas estatais.” As reformas econômicas transmitem uma mensagem aos EUA e ao mundo em busca de maior diálogo e pelo fim do embargo. 

Embargo

O bloqueio econômico dos EUA contra Cuba teve início em etapas materializadas entre 1960 a 1963. Assim, em dezembro de 1960, os EUA primeiro se recusaram a pagar por 3 milhões de toneladas de açúcar cubano que já tinham sido contratadas. A partir daí, a escalada se desenvolveu. Em setembro do ano seguinte, por meio do Foreign Assistance Act, o país vetou investimentos do capital privado em Cuba; em fevereiro de 1962 o presidente John Kennedy proibiu que o comércio entre os dois países; em agosto a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) declarou que não assistiria países que ajudassem Cuba; em fevereiro de 1963 foi estabelecido que cidadãos estadunidenses não poderiam mais viajar à Cuba (afetando o contato de milhares de famílias cubano-americanas); e em dezembro foi exigido por parte dos EUA, que o os países que quisessem obter empréstimos, rompessem as relações diplomáticas e comerciais com a ilha.

O país então teve que voltar suas atividades comerciais para o mundo socialista. Em 1972, Cuba passa a fazer parte oficialmente do Conselho de Ajuda Mútua Econômica (CAME), cujo objetivo era a integração com os países do leste europeu, através de ajuda mútua. Em 1989, 79,9% das exportações passam a ser dirigidas para o bloco socialista, enquanto as importações correspondiam a 85,3% do total. Vale assinalar que em 1960 eles alcançavam, respectivamente, entre a 75% e 81% em trocas com economias capitalistas. 

Com o fim da União Soviética e a dissolução do CAME, a situação interna se deteriorou fortemente. A URSS acabou em 1996. Cinco anos depois, os EUA recrudesceram o bloqueio, aprovando a lei Helms-Burton, que  previa mais sanções contra países que estabelecessem contatos comerciais ou mesmo de solidariedade com a Ilha..

Vale a pena detalhar algumas medidas. O embargo implica a proibição de cidadãos estadunidenses de realizarem transações financeiras com a ilha; congelamento de ativos cubanos nos EUA; proibição de importações de bens cubanos; proibição de subsidiárias de empresas estadunidenses de fazer comércio com Cuba; embarcações que atracarem em portos cubanos ficam proibidos de entrar em território dos EUA por 180 dias; entre outros. Segundo informe de julho de 2020 do governo cubano sobre o bloqueio, publicado anualmente, o cerco de seis décadas gerou um prejuízo que já ultrapassou a cifra de US$1 trilhão, se considerada a desvalorização do dólar frente ao padrão ouro nesse meio século. 

Os efeitos internos são devastadores: aumento dos preços de produtos importados como sementes, livros, máquinas, etc; atraso e impossibilidade de se obter suprimentos médicos; falta de acesso a tecnologias de ponta; limitação no desenvolvimento do turismo; restrições de acesso a internet; entre outros.  

Durante o governo de Donald Trump, 242 novas sanções foram adicionadas no bolo do embargo, 50 no contexto pandêmico da Covid-19. Com a chegada de Joe Biden, nada mudou. No dia 23 de junho, a assembleia geral da ONU votou novamente a pertinência do embargo. O resultado: 184 países votaram pelo seu fim, e, como sempre, apenas dois países votaram contra, EUA e Israel. O Brasil de Jair Bolsonaro se absteve.

Deve-se considerar, ainda, que os impactos causados estadunidenses na ilha não se dão somente por meio do embargo, mas também através de organismos que alegam “promover a democracia” em outros países, como é o caso da Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional (USAID, sigla em inglês), seu principal órgão de assistência externa. As iniciativas, não raro, se materializam em aberta interferência em assuntos internos.

Assim, a USAID entre os anos de 2001 a 2020, investiu US$ 171 milhões em programas voltados principalmente para a sociedade civil e meios de comunicação privados cubanos, podendo ser destacados projetos da National Endowment for Democracy (NED), agência privada que recebe financiamento da USAID. Esta, por sua vez, bancou, em 2020, organizações civis e jornalistas para disseminar informações sobre os impactos da covid-19 na economia cubana, e a suposta falta de liberdade e direitos humanos. 

No último 30 de junho, a USAID divulgou documento de um projeto denominado Apoiando a sociedade civil local e direitos humanos em Cuba, em que oferece US$ 2 milhões para opositores ao governo. Os objetivos alegados: avançar na eficácia de grupos independentes da sociedade civil para alcançar maior liberdade e direitos humanos; e desenvolver coalizões mais amplas para expandir o impacto da sociedade civil na política da ilha.

Por conta disso tudo, a posição de Havana tem sido a de apontar Washington como responsável pelos problemas domésticos. Assim, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, após os atos de 11 de julho, disse que “Seria um grave erro (…) interpretar o que está acontecendo em dezenas de vilas e cidades em toda a ilha como resultado ou produto de qualquer coisa que os Estados Unidos tenham feito”. Mesmo que não se entre na pertinência das argumentações de Blinken não se pode ignorar os programas estadunidenses voltados para a sociedade civil e meios de comunicação.

Pandemia

Cuba conseguiu, em 2020, implementar medidas restritivas visando o controle da pandemia, fechando suas fronteiras ao turismo. Contudo, diante da escassez de divisas, o país foi reaberto em novembro, mantendo uma série de medidas de segurança. Uma nova alta de infecções aconteceu. Hoje o país conta com mais de 300 mil casos confirmados de Covid-19 e mais de 2 mil mortes desde o início da pandemia. Matanzas, onde está Varadero, o principal balneário de Cuba, concentra mais da metade dos novos casos. 

Desde o início da doença, o governo apostou na capacidade de desenvolvimento de vacinas próprias, não aderindo também ao consórcio Covax Facility. Os laboratórios estatais desenvolveram cinco imunizantes em diferentes fases de testes e aplicação na população. A vacina Abdala apresentou 92,2% de eficácia nos ensaios clínicos e recebeu autorização para o uso de emergência, tornando-se a primeira vacina 100% latino-americana contra a covid-19. A vacina Soberana 2 aguarda autorização e apresenta 91,2% de eficácia. Apesar do sucesso, o governo encontra dificuldades para a aquisição de seringas, por força do embargo. O Movimento de Solidariedade à Cuba nos EUA arrecadou cerca de 500 mil dólares, utilizados para a compra de 6 milhões de seringas que serão enviadas aos cubanos. A Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) também providenciou o envio de 800 mil seringas com agulhas adequadas para a imunização.

Segundo Ciro Ugarte, diretor de Emergências em Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), cerca de 3,3 milhões de pessoas receberam ao menos a primeira dose das vacinas candidatas Abdala ou Soberana, administradas no âmbito das intervenções sanitárias autorizadas até o dia 17 de julho. O número corresponde a cerca de 30% da população, considerado ainda um nível baixo de imunização. As autoridades cubanas planejam vacinar 70% até agosto.

Relações Brasil-Cuba 

As relações diplomáticas entre Brasil-Cuba se iniciaram em 1906, sendo rompidas em 1964, com o golpe de Estado brasileiro. Foram restabelecidas 22 anos depois. Nos governos petistas houve uma aproximação significativa entre os países, mas a situação se reverteu após o golpe de 2016. Michel Temer e Bolsonaro apresentaram franca hostilidade ao país.

Vale recordar que no governo Temer se iniciou o desmonte do programa Mais Médicos, pelo seu ministro da Saúde, Ricardo Barros, gerando falta de profissionais em regiões do interior, nas quais poucos médicos brasileiros buscam se estabelecer. O programa foi criado durante o governo Dilma, em 2013, com o intuito de suprir a necessidade sanitárias nas periferias e no interior do Brasil. Com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, e devido às suas declarações discriminatórias, o governo cubano anunciou a saída dos últimos médicos do país.

Sob o governo Bolsonaro, as relações entre Brasil e Cuba, que já não estavam boas, pioraram. Em 2019 o Brasil rompeu com a tradição de votar em apoio à resolução na Assembleia Geral da ONU pelo fim do embargo – posição que mantinha desde 1992 – , aderindo à posição dos EUA. Quanto às relações comerciais,a ilha apareceu em 70º lugar dos destinos das exportações brasileiras, em 2020, tendo uma participação de apenas 0,1% nessas transações. De forma comparada com o ano anterior, houve uma queda de mais de 21,6%, muito por conta da covid-19. Os principais produtos brasileiros exportados para Cuba são: carne de frango, em primeiro lugar, e arroz, em segundo. Já sobre as importações, em 2020 corresponderam a 0,005% das compras brasileiras, sendo majoritariamente produtos semi-acabados, lingotes e outras formas primárias de ferro e aço, e tabaco. Vale ressaltar que a balança comercial entre os dois países sempre foi favorável ao Brasil.

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