27 de julho de 2021
Por Brenda Neris Gajus, Rafael Almeida Ferreira Abrão e Vitor Hugo dos Santos (Foto: NurPhoto / Colaborador/Getty Images/Exame)
Grupos bolsonaristas no Telegram difundem constantemente fake news envolvendo a China, visando construir uma imagem do país como inimigo do Brasil e, especialmente, do presidente Bolsonaro.
No passado recente, o aplicativo de mensagens WhatsApp era o principal canal de disseminação de informações entre bolsonaristas, mas após medidas para restringir a divulgação de informações falsas, ocorreu uma migração massiva dessas pessoas para o Telegram. A rede social se tornou o novo reduto das correntes de mensagens em decorrência das poucas restrições colocadas ao compartilhamento em massa de informações: no WhatsApp os grupos são limitados a 256 participantes, o Telegram suporta grupos com até 200 mil membros.
Durante três meses, de maio a julho de 2021, nos inserimos em grupos bolsonaristas do Telegram para analisar as mensagens de apoiadores da extrema direita sobre uma suposta ameaça que se materializaria, por diversas vezes, na construção do inimigo em torno da China. Foram monitorados 10 grupos de mensagens, que somam cerca de 170 mil participantes. Buscou-se identificar: i) as principais ideias que enquadram a China como ameaça nacional ou global, e; ii) as relações das mensagens com o discurso político do governo brasileiro, em especial, as declarações do Presidente da República.
“É guerra química, bacteriológica e radiológica”, diz Bolsonaro
Propagam-se, diariamente, diversas informações sobre as vacinas e a Covid-19. Supostas proibições de pessoas não vacinadas de entrarem em locais públicos na China são compartilhadas como uma opressão do PCCh. Tais regras são chamadas de “apartheid da ditadura da nova ordem mundial chinesa”, embora estejam em consonância com aquilo que propõe a comunidade cientifica internacional como medida de combate a pandemia.
A possibilidade de criação de um passaporte sanitário no Brasil e em outros países do mundo, com exigência de vacinação contra a Covid-19, é descrita com palavras como holocausto, escravidão, apartheid e genocídio, cujo objetivo seria reduzir drasticamente o tamanho da população e instalar no Brasil a ditadura de um conjunto de países (China, Cuba, Venezuela e Coréia do Norte).
Os chineses teriam, sobretudo, se preparado para lucrar com a pandemia, que seria uma guerra biológica, a partir de exportações de bens e da vacina – que teria sido fabricada antes mesmo da pandemia ter se iniciado. Ao mesmo tempo, nesses grupos foram propagados vídeos de cidades da China com alta circulação de pessoas, visando afirmar que medidas de distanciamento social não foram adotadas e que seriam ineficazes, não havendo necessidade da aplicação delas no Brasil, mesmo com a China tendo sido pioneira na estratégia de distanciamento social para conter o contágio da Covid-19.
Há ainda críticas à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia e tentativas de desacreditá-la. Ganham conotação negativa vídeos verídicos em que o presidente da Comissão, Omar Aziz, solicita aos demais parlamentares para não citarem mais a China, para que a relação com o país não seja estremecida. Compartilha-se ainda uma notícia falsa de que a China teria comprovado a eficácia da cloroquina no tratamento da Covid-19, mas que o relator da CPI, Renan Calheiros, não irá convocar os chineses para prestar depoimento à Comissão.
Conspirações sobre a origem em laboratório da Covid-19 ou do vazamento do vírus ao ser manipulado em um laboratório de Wuhan são compartilhadas diariamente, inclusive as que já foram averiguadas como falsas. As mensagens dizem que auditorias estão sendo solicitadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e acompanhadas de perto pelo PCCh, que não teriam intenções de cooperar com a investigação, mesmo após as missões da OMS terem descatado a possibilidade do vírus ter escapado do laboratório.
Há ainda constantes questionamentos à eficácia da Coronavac, cujas mensagens indicam que diversos países do mundo estariam desistindo de utilizar o imunizante. Alega-se falsamente que as altas em casos de Covid-19 estariam ocorrendo apenas nos países que utilizam os imunizantes fabricados na China. Outras mensagens vão além:
(…) É um golpe mundial. Pessoas estão morrendo devido à “radiação eletromagnética mundial 5G amplificada (veneno)”. Os médicos na Rússia violaram a lei da Organização Mundial da Saúde (OMS), que “não autoriza autópsias (post mortem) em corpos de pessoas que morreram com o vírus da Covid-19” para descobrir cientificamente que não se pode presumir que seja um vírus, mas uma bactéria que causa a morte (…) (mensagem extraída de grupo do Telegram)
Segundo tal mensagem, Unidades de Terapia Intensiva (UTI) nunca foram necessárias. A China sabia que o vírus nunca existiu e que a radiação do 5G causa a suposta bactéria, cujo intuito é eliminar pessoas com baixa imunidade. A solução, segundo a mensagem, seria a ingestão de remédios anti-inflamatórios, antibióticos e anticoagulantes, pois estes curariam a doença causada pela rede 5G. Outra notícia acusa o 5G de causar “diversos problemas de saúde”, especialmente danos mentais à população. Isso ocorre em um momento em que o governo brasileiro discute, sob pressão dos Estados Unidos, a possibilidade de barrar a participação da chinesa Huawei no leilão do 5G no Brasil.
A China como inimigo, Bolsonaro como herói
Fake news que envolvem mensagens sobre o ex-presidente Lula são constantes, compartilha-se que ele está sendo preparado pela “China comunista” para ser recolocado na presidência por meio de uma fraude eleitoral que transformaria o Brasil em uma colônia chinesa, com o objetivo principal de escravizar o povo brasileiro. Os grupos reforçam que essa tem sido uma estratégia da China não apenas no Brasil, mas ao redor do mundo.
O PCCh é chamado de partido escravagista e genocida, e as eleições no Brasil estariam sendo fraudadas desde 1996, com o uso da urna eletrônica, e as liberdades reprimidas desde 1985, ano da redemocratização. O PT e Lula só teriam vencido as eleições por causa de tais fraudes relacionadas à urna eletrônica, cuja implantação no Brasil envolveria nomes diversos: Fernando Henrique Cardoso, Hugo Chávez e George Soros. Do plano para transformar o Brasil em colônia chinesa, fariam parte os governadores e prefeitos, mais especificamente João Doria.
Lula também aparece em mensagens compartilhadas com frequência muito alta que revelariam uma “bomba”. O Diretor da CIA teria entregado, em reunião com Bolsonaro, provas de que José Dirceu estaria articulando a compra de deputados e chantageando ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para não aprovar o voto auditável (neste caso, refere-se ao voto impresso) com dinheiro do China e a mando de Lula. Bolsonaro estaria com as provas em mãos, mas é muito esperto e irá utilizá-las no momento certo. Lula também é criticado por supostamente elogiar a “ditadura chinesa” com frases como “Estado forte, Partido forte”. A “compra” do Brasil pela China é uma preocupação constante. Apoiadores dizem que a China estaria financiando o Partido dos Trabalhadores (PT) e o “grupo terrorista” Foro de São Paulo para derrubar Bolsonaro.
O Grupo Parlamentar Brasil-China, composto por 52 parlamentares de 15 partidos, seria uma “bancada da China” no Congresso e uma ameaça à soberania nacional, enquanto o STF seria uma instituição cooptada pela China, sendo crucial interromper o seu funcionamento. Em outras mensagens semelhantes, acusa-se a China de comprar deputados, senadores, ministros do STF, promotores públicos e alguns generais (traidores de Bolsonaro), além de chantageá-los com vídeos que comprovariam o envolvimento deles em práticas sexuais “com crianças ou com homossexuais”. A prática seria o “mensalão chinês”. Estariam ainda na lista de pagamentos, veículos de comunicação pagos para fazer propaganda do PCCh no Brasil. São citados o Grupo Folha, a Editora Globo e o jornal Correio Braziliense.
De acordo com outra mensagem, Jair Bolsonaro estaria sendo extremamente atacado por ser inimigo do PCCh e de políticos corruptos, sendo necessário que o povo lute pela possibilidade de auditoria dos votos nas eleições. O pretexto de auditoria é utilizado para defesa do voto impresso.
Desinformação acima de tudo, fake news acima de todos
Palavras como apartheid, genocídio, nazi-fascismo, holocausto, escravidão e até mesmo negacionismo são utilizadas com frequência para (1) gerar medo nos leitores das mensagens; (2) criar a ideia de inimigo a ser enfrentando, neste caso, muitas vezes em um tipo de abstracionismo do “comunismo” e, particularmente, do Partido Comunista da China; (3) confundir e descontextualizar conceitos que existem e são por muitas vezes associados à figura de Bolsonaro; (4) esvaziar palavras de ordem adotadas pela esquerda ao caracterizar as políticas do governo federal. Como vemos na mensagem abaixo:
500 mil mortes por falta de tratamento precoce, 500 mil mortes por devios do dinheiro da saúde, 500 mil mortes pelos erros da OMS, (…) 500 mil mortes porque a China escondeu a doença. (…) 500 mil mortes por mentir que máscara protege, 500 mil mortes por um vírus criado em laboratório, 500 mil mortes o único culpado CHINA COMUNISTA… Se você sabe de tudo isso, finge demência e culpa o presidente Bolsonaro, então vc é um NEGACIONISTA. (mensagem extraída de grupo do Telegram)
Compartilha-se que robôs chineses estariam tão avançados, que seriam capazes de interagir e criar laços com humanos, mas a preocupação central é que tais robôs teriam a finalidade de acabar com os empregos. Em outra mensagem, propaga-se que chineses estariam comprando terras no Brasil, como parte de uma estratégia geopolítica para garantir acesso à produção de alimentos e às “espetaculares riquezas” do território brasileiro. As mensagens se opõem à proposta de deputados brasileiros de flexibilização da propriedade da terra por estrangeiros.
Empresas de tecnologia também são um tema recorrente. Bolsonaro, por exemplo, saberia que a Apple está coletando dados de usuários de iPhone sob o comando do PCCh e os transformando em “escravos digitais”. O Facebook teria acordos com a China e com a União Soviética (extinta em 1991) para instalar um sistema de vigilância global. Em outra mensagem, as empresas chinesas Didi, Tencent e ByteDance são colocadas como vítimas de ataques do PCCh, que teria entendido que a geopolítica global se concentraria na coleta de dados e estaria pressionando para que essas empresas cedam aos seus interesses. Quanto aos pagamentos digitais, a criação de uma versão digital do yuan é descrita como uma investida do PCCh para retirar o anonimato das criptomoedas, enfraquecer o dólar, legitimar o controle do Estado sobre a circulação econômica, e por fim, ao ser combinado com o 5G, se tornaria uma forma de dar curso de instaurar o comunismo em outros países.
No mês de julho, foram frequentes as tentativas de associar a China aos protestos políticos em Cuba. A China seria responsável por isolar o povo cubano de qualquer comunicação com o exterior, por meio da tecnologia 5G. Outra mensagem coloca que o sonho da China sempre foi conquistar as Américas, e que o exército brasileiro recebeu informações sobre um plano venezuelano de invasão do Brasil, com apoio de China e Irã.
Sinofobia: o ódio como ferramenta política
Mostram-se presentes diversas mensagens xenófobas, ocorrendo tanto menções ao Covid-19 como o “vírus chinês” e ofensas aos chineses de maneira generalizada, como por exemplo:
Tem que proibir vôo vindo da china cúmunista do vírus CHINÊS, urgente essa Sub-raça de ratos de esgoto da CHINA genocidas são uma raça perigosa, do partido PCC CHINÊS sanguenários violentos do psicopata xi jinping serial killer assassino em série. (mensagem extraída de grupo do Telegram)
Outro recente exemplo foi a divulgação da ameaça proferida pelo presidente do PTB e ex-deputado federal, Roberto Jefferson, ao embaixador da China, proferindo mensagens abertamente preconceituosas, que haviam sido publicadas inicialmente no Whatsapp, e posteriormente no Telegram.
Curiosamente, mensagens preconceituosas e de apologia ao fascismo, se misturam com o compartilhamento de mensagens que criticam a violação de direitos humanos na China. Segundo as mensagens, o PCCh prende, tortura e executa opositores. Aplicativos da Bíblia e sites cristãos estariam sendo fechados. Jornalistas que questionam o regime desaparecem. Grupos “pró-LGBT” e organizações feministas são censurados. Um vídeo compartilhado nos grupos alardeia que os chineses estão sendo “mortos por seus órgãos, torturados em campos de trabalho forçado e perseguidos em todos os níveis da sociedade”. E quanto ao meio ambiente? Até mesmo as mudanças climáticas viram argumento contra o governo chinês: “três quartos dos entrevistados (no Reino Unido) acreditam que a mudança climática é um problema especificamente capitalista, apesar de o maior poluidor do mundo ser a China comunista”, afirma uma das mensagens.
Além disso, propaga-se a notícia de que a China está tentando aumentar a masculinidade da sua população, enquanto no Ocidente se abriria espaço para a agenda feminista, o que tornaria os homens ocidentais mais sensíveis e domesticados. O Brasil, neste caso, estaria completamente sem rumo, sendo o maior exemplo disso o país ter agora um governador assumidamente gay (em alusão à declaração do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que se assumiu publicamente em 3 de julho de 2021).
Por fim, o discurso de Xi Jinping na comemoração de 100 anos do PCCh é descrito nas mensagens como contendo diversos ataques ao Ocidente, com base na declaração do presidente de que “Qualquer um que se atrever a tentar terá suas cabeças esmagadas com sangue contra uma grande parede de aço forjada por mais de 1,4 bilhão de chineses”.
Interesses políticos, o debate público e a manufatura do medo
A partir da análise das mensagens, foi possível notar a forte presença do sentimento anti-China em grupos bolsonaristas, que além de ser fomentado por desavenças ideológicas e ódio, é alimentado por constantes notícias falsas vinculadas à nação asiática. Tais notícias são propagadas, muitas vezes, pelas mesmas fontes, cujas mais frequentes são: News Atual, Terra Brasil e Canal de Brasília. Outros veículos praticam o sensacionalismo para gerar engajamento nesses grupos, como no caso do Jornal do Oeste. Outra estratégia dos compartilhamentos é, em meios às notícias falsas, o disparo de notícias verdadeiras, mas descontextualizadas.
É notório que as declarações de Jair Bolsonaro fazem com que o compartilhamento e o engajamento dos membros dos grupos aumente consideravelmente, como ocorreu, por exemplo, quando o presidente declarou que a China teria criado o coronavírus em laboratório e que isso seria parte de uma guerra bacteriológica. O discurso sinofóbico propagado por Bolsonaro tem tido a função de manter as bases bolsonaristas mobilizadas em torno de um inimigo comum, reafirmando as ações praticadas por atores políticos bolsonaristas dentro da política externa brasileira. Trata-se, portanto, de uma questão interna, que transborda da base de apoiadores para o debate público brasileiro.
Isso ocorreu, por exemplo, na tentativa de desacreditar a vacina produzida pela Sinovac. Por mais que a população em geral não seja cooptada pelo discurso anti-China da mesma forma que a base de apoio do governo, essa narrativa tem repercussões para toda a sociedade. Por exemplo, popularizou-se a prática conhecida como “sommelier de vacinas”. Segundo a Confederação Nacional de Municípios, 74,6% das cidades registraram a prática de escolher qual tipo de vacina tomar, e a Coronavac é o imunizante mais recusado: 50,6% das pessoas que queriam escolher um fabricante, não queriam tomar o imunizante da Sinovac. Ou seja, trata-se de uma minoria barulhenta e que acaba ditando o debate.
A deturpação da realidade através da criação de um inimigo em torno de um conceito abstrato como “o comunismo” e em relação ao Partido Comunista da China, serve ao governo, pois inflama a sua base de apoiadores e dissemina o medo de uma ameaça direta à vida e aos valores básicos da sociedade conservadora. Por fim, destaca-se que temas de política externa e relações internacionais adentram o cotidiano, algo raro no Brasil, e que infelizmente tem ocorrido de forma improdutiva.
Texto publicado originalmente em 27 de julho de 2021 no Le Monde Diplomatique Brasil.