A história de uma tripla “traição”

19 de outubro de 2021

Por Mohammed Nadir
(Foto: RFI/Reuters/Stephane Mahe)

Le Drian disse que o anúncio tripartite foi brutal, unilateral, desprezou a França, e que a atitude de Biden não difere, afinal, do errático Trump.

Em 2016, a França ganhou uma licitação de venda de doze submarinos para a Austrália, considerado o contrato do século. Porém, a França acaba de perder o contrato de 56 de bilhões de euros. A decisão da Austrália de abrir mão do contrato e comprar dos Estados Unidos submarinos com propulsão nuclear muda o cenário geopolítico no Índico e no Pacífico e abre caminho para uma nova tensão geopolítica.

Em termos simbólicos, a decisão australiana representou um choque para o orgulho da França. Ainda por cima, o anúncio foi feito da Casa Branca numa declaração conjunta com Estados Unidos, Grã-Bretanha e Austrália, comunicando com pompa e circunstância não apenas a venda de submarinos com propulsão nuclear, e muito provavelmente capazes de transportar mísseis nucleares, mas de um novo bloco político militar constituído pelos três países anglo-saxônicos chamado de Aukus, que declara visar a contenção do gigante chinês.

O anúncio caiu como um terremoto em Paris, não só pela perda do negócio bilionário, mas pelo sentimento de marginalização da França como Estado, como nação, como potência e como antigo aliado dos Estados Unidos.

A primeira reação da França veio da ministra da Defesa, Florence Parly, que considerou a decisão lamentável, dizendo que “a escolha americana, que leva à retirada de um aliado europeu como a França de uma parceria estruturante com a Austrália, num momento em que enfrentamos desafios sem precedentes na região do Indo-Pacífico, seja em termos de nossos valores ou no respeito de um multilateralismo baseado no Estado de Direito, marca uma ausência de coerência que a França só pode notar e lamentar”.  Mas as duras críticas vieram do ministro de Negócios Exteriores, Jean-Yves Le Drian, que qualificou a retirada do acordo por parte da Austrália e seu acordo de compra com Estados Unidos, feito em segredo e anunciado sem aviso à França, como uma facada nas costas. Le Drian disse que o anúncio tripartite foi brutal, unilateral, desprezou a França, e que a atitude de Biden não difere, afinal, do errático Trump. Em relação à Grã-Bretanha, Le Drian deixou de lado o manual da diplomacia, chamando a Inglaterra de “quinta roda da carroça”.

A realpolitik e a crise transatlântica  

Apesar das tentativas do chefe da diplomacia americana, Antony Blinken, de remediar o assunto dizendo que os Estados Unidos consideram a França um parceiro vital, não parece que isso irá atenuar a grave crise franco-estadunidense. Para Paris, o acontecido significa uma quebra de confiança que levará muito tempo para consertar. Mais do que isso, há quem veja na nova aliança anglo-saxônica Aukus um desprezo não só à França, mas a toda a Europa.  Consequentemente, toda a relação transatlântica enfrenta sua pior crise desde o fim da Guerra Fria. Um conjunto de questões começam a ser discutidas no seio da União Europeia, como o projeto de defesa comum europeu, que a França defende há anos, mas enfrenta divisões dos países europeus, principalmente os antigos países do Leste Europeu. Pode vir daí o silêncio e falta de solidariedade para com a França na sua crise com Estados Unidos, o que, de certa forma, prejudica sua pretensão de ser a liderança da Europa.

O que significa essa virada da política norte-americana em relação à Europa?

Historicamente, as relações euro-americanas nunca foram tão equilibradas e amigáveis. É bastante conhecido o antiamericanismo francês e dos intelectuais europeus. Basta lembrar o que ocorreu no Conselho de Segurança da ONU em 2003, na véspera da invasão do Iraque, para constatar que há muito mais que os separa do que o que une os dois lados do Atlântico.

Um célebre artigo do Robert Kagan escrito em 2003, “Power and Weakness: Why the United States and Europe see the world differently[1], faz uma análise crua e fria das relações transatlânticas. Para Kagan, os europeus e os americanos já não compartilham a mesma visão do mundo, principalmente em relação a questões como a eficácia do poder, a moralidade de poder e a desejabilidade do poder – as perspectivas americanas e europeias são divergentes. A Europa, segundo Kagan, está se afastando do poder, em um mundo independente de leis e regras, negociação e cooperação transnacionais. Isto é, entrando em um paraíso pós-histórico de paz e prosperidade, a realização da “perpétua paz” kantiana. Enquanto isso, os Estados Unidos continuam exercendo poder em um mundo hobbesiano anárquico, onde as leis e regras internacionais não são confiáveis, e a verdadeira segurança, a defesa e promoção de uma ordem liberal ainda dependem da posse e uso de força militar. É por isso que, nas principais questões estratégicas e internacionais de hoje, os americanos e os europeus divergem.

Kagan continua analisando as relações transatlânticas e enumerando as divisões. Quando se trata de definir prioridades nacionais, determinar ameaças, definir desafios, formular e implementar políticas externas e de defesa, Estados Unidos e Europa se separaram, visto que não compartilham mais a mesma “cultura estratégica” e já não conduzem da mesma forma a política externa.  Ao confrontar adversários reais ou potenciais, os americanos em geral favorecem políticas de coerção em vez de persuasão, enfatizando sanções punitivas em vez de incentivos para melhorar comportamentos. Os americanos tendem a buscar finalidade em assuntos internacionais: querem problemas resolvidos, ameaças eliminadas. E, claro, cada vez mais tendem ao unilateralismo nas relações internacionais e estão menos inclinados a agir por meio de instituições internacionais como as Nações Unidas, menos propensos a trabalhar cooperativamente com outras nações para buscar objetivos comuns, mais céticos em relação ao Direito Internacional e mais dispostos a operar fora de suas restrições quando julgam necessário, ou mesmo meramente útil[2].

Eis as linhas mestras da política estadunidense baseada no eterno hard power, enquanto a Europa tende a usar ao máximo seu soft power, por isso hoje, mais do que nunca, existe a ruptura nas relações transatlânticas. Os fracassos da guerra no Iraque, no Afeganistão e agora a obsessão pela China faz com que o divórcio entre Europa e Estados Unidos seja mais nítido do que nunca. A Europa parece estar cansada das aventuras bélicas da maior potência do mundo.

Para a França, o unilateralismo americano e a crise dos submarinos fizeram relembrar o General De Gaulle, que desafiou a liderança americana e acreditou que o estabelecimento de uma paz duradoura na Europa exigia ir além do confronto dos blocos do Oeste e do Leste, dominados respectivamente pelos americanos e pelos soviéticos. O auge do braço-de-ferro franco-americano foi a saída do comando integrado da Otan em 7 de março de 1966, embora tenha permanecido como membro da Aliança Atlântica.

Hoje, como no passado, a Europa está numa encruzilhada e vê com muita apreensão o duelo sino-americano.

Novas alianças para novas ameaças: a doutrina Biden

A virada da política americana com Joe Biden veio mostrar o quão a política estadunidense é cada vez mais distante da europeia. O novo conceito de coligações de interesse, que veio superar as alianças permanentes, não é algo novo. Foi G. W. Bush quem fragmentou o princípio das alianças permanentes. O princípio não poderia ser mais pragmático: é a missão que define a coalizão, um meio prático de contornar os obstáculos jurídicos e a oposição política à intervenção armada. Esse princípio, articulado na estratégia de Segurança Nacional de setembro de 2002, e repetidamente afirmado pelo executivo dos Estados Unidos na Guerra do Iraque, é agora usado contra a China.

O surgimento dessa linha está ligado em boa parte ao establishment de uma ultradireita agora capaz de contrabalançar a intelectualidade democrática e liberal que dominou a política americana até a era Reagan; agora no comando de certas alavancas do poder político, intelectual e da mídia, os arautos neoconservadores estão pondo em marcha toda a sua ideologia unilateralista, belicista e anti-europeia.

Trump aplicou seu slogan America First (América Primeiro) até as últimas consequências. É sob a presidência de Trump que os Estados Unidos impuseram tarifas unilaterais para o aço e o alumínio e, assim, desencadearam retaliações da União Europeia. O governo Trump também ameaçou impor tarifas sobre as importações de automóveis, alegando preocupações com a segurança nacional, e renegociou o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) para restringir as demandas de conteúdo americano em automóveis. Em julho de 2020, os Estados Unidos anunciaram a imposição de taxas alfandegárias sobre produtos franceses no valor de US$1,3 bilhão, devido a uma disputa sobre a proposta de imposto sobre serviços digitais da França. Um objetivo central da política comercial dos EUA sob Trump foi a recuperação da balança comercial dos EUA ao longo das linhas do nacionalismo econômico.

Se o governo Trump foi um desastre, a chegada de Biden ao poder trouxe uma enorme esperança para os europeus e para o mundo. Novas perspectivas estavam surgindo, conforme evidenciado pela comunicação conjunta da Comissão e do Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e de Segurança, em dezembro de 2020, sobre uma nova agenda transatlântica. Este programa é uma oportunidade para renovar a parceria UE-EUA com base no compromisso, coordenação e cooperação reforçados em nível multilateral e bilateral. Pretende responder aos atuais desafios e crises da política externa e de segurança, incluindo a pandemia global, recessão económica, alterações climáticas, barreiras comerciais, a ascensão da China, transformação digital e competição tecnológica, crescimento, bem como a defesa da democracia e dos Direitos Humanos[3]. A opção pelo Aukus, e agora a Quad (um outro bloco constituído por EUA, Austrália, Japão e Índia), sem a consulta da União Europeia, coloca a aliança transatlântica em xeque.

Com isso, Biden mostrou uma outra faceta, a de um unilateralista convicto, prestes a sacrificar as alianças permanentes quando os interesses estratégicos dos Estados Unidos estão em jogo. Nisso, ele não difere da linha dos neoconservadores que estão dominando o Estado profundo norte-americano. A pergunta é: já podemos falar em uma doutrina Biden?

De fato, analisar a linha política de Biden necessita voltar a escrutinar a longa trajetória do veterano Biden, de modo a captar se realmente existem elementos pessoais e /ou objetivos que são inerentes à política externa estadunidense, tal como teóricos como Kagan defendem, isto é, o hard power e nada mais que isso.

Numa entrevista ao jornalista Steven Craig Clemons[4] datada de 2016, é possível captar alguns elementos que mostram que sua política externa seja algo que reflete a personalidade e a forma como olha o mundo. Trata-se de um realista que acredita na enorme capacidade militar. Da mesma forma que o uso da força deve obedecer a natureza do interesse estratégico dos Estados Unidos. Biden insiste – segundo a mesma entrevista – que os EUA devem “se engajar porque o mundo mudou”, mas que isso deve envolver “compartilhar responsabilidades, compartilhar inteligência e alocar força nos alvos”.

Com isso, Biden transparece como um “realista de personalidade” da nação. Sobre sua doutrina, Biden considera que deve ser priorizado o que realmente são as ameaças e preocupações mais importantes e alocar recursos relativos à natureza da ameaça. As ameaças para Biden não são o terrorismo, nem mesmo o Estado Islâmico (Isis), mas sim a perspectiva de “armas nucleares soltas e o conflito nuclear não intencional que irrompe com outra potência nuclear”, como a Rússia ou China. Outras grandes ameaças incluem “aquela figura instável da Coreia do Norte”, Kim Jong Un, e o Paquistão, que ele apelidou de “a nação mais perigosa do mundo”.

Portanto vemos quatro pilares da doutrina Biden: não usar a força, a menos que seja importante e sustentável; apoiar e fortalecer alianças – e construir uma causa comum em projetos com outras partes interessadas; ter um senso de perspectiva e pensar em respostas proporcionais às ameaças – o terrorismo não é existencial, mas as trocas nucleares são; e um quarto ponto sobre relacionamentos e o lado pessoal da formulação da política externa.

Ora, se confrontamos esses elementos com seu discurso na ONU, observamos algumas dissonâncias, uma vez que ao mesmo tempo em que fala que pretende estimular o multilateralismo e a diplomacia e que não procura uma nova guerra fria, nem um mundo dividido em blocos rígidos, a realidade das medidas unilaterais como no caso da saída do Afeganistão e a declaração da aliança anglo-saxónica, sem englobar ou informar seus aliados europeus, evidenciam ambivalências entre o dito e o feito.

A nova aliança anglo-saxónica Aukus e a Quad querem transmitir uma mensagem clara, de que os Estados Unidos estão iniciando um novo e prolongado ciclo de guerra fria, desta vez no Indo-pacifico. É que, para Biden, a China é um competidor existencial da América, a Rússia é um desregulador, o Irã e a Coréia do Norte são proliferadores nucleares e as ameaças cibernéticas e o terrorismo são um perigo constante e em evolução.  Nesse sentido, segundo Biden, o mundo atingiu um ponto de inflexão com duas visões do mundo, e isso vai determinar se este século marca outra era de domínio democrático ou uma era de ascendência autocrática.

Desse modo, a conclusão é que Trump direcionou Washington para a competição das grandes potências e Biden colocou essa questão dentro de um quadro estratégico mais amplo. Até o início da pandemia, Trump frequentemente parecia ver a rivalidade EUA-China como uma luta pelos interesses econômicos. Em contraste, Biden vê essa competição como parte de “um debate fundamental” entre aqueles que acreditam que “a autocracia é o melhor caminho a seguir” e aqueles que acreditam que “a democracia irá e deve prevalecer”. Aqui constata-se claramente que Biden recorre à sua habilidade de veterano político ao dar uma cobertura ideológica a um conflito que sempre foi geopolítico.

Por outro lado, Biden também parece esquecer um elemento estrutural que é a própria decadência da democracia liberal. Em todo o mundo liberal, os sentimentos antidemocráticos e a insatisfação com as instituições representativas atingiram níveis nunca vistos desde a Segunda Guerra Mundial. Essas tendências são alarmantes por si só, deixam os Estados Unidos e seus aliados mais vulneráveis ​​e sem legitimidade. Esta crise de governança democrática interna é idêntica à crise de influência democrática no exterior.

São esses os grandes desafios de Biden, para os quais tenta colocar em marcha uma doutrina ampla, global e agressiva, que vai desde a esfera militar (Aukus e Quad) e econômica (um plano de infraestrutura que promoverá projetos transparentes e de alta qualidade no mundo em desenvolvimento), como uma resposta democrática à iniciativa Belt and Road de Pequim; cooperação internacional (distribuir quase dois bilhões de vacinas Covid-19 para nações em desenvolvimento); cultural e ideológica (Cimeira para a Democracia) e tecnológica, baseada na criação do “techno-democracies”, que é uma espécie de coalizão global para conter o que considera influências autocráticas na tecnologia e a guerra cibernética, bem como o domínio das tecnologias 5G e 6G.

São essas as premissas da doutrina Biden, que parecem inovadoras e ao mesmo tempo ortodoxas, oscilando entre a America is back (América está de volta!) e America first, e que querem por um lado moldar, aglutinar e galvanizar o mundo em torno dos valores da democracia e dos Direitos Humanos, e por outro querem guiar o mundo para uma cruzada sem mapa contra uma das civilizações mais antigas da humanidade

[1] Robert Kagan, Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order, New York, 2003, pp.3-4

[2] Ibid.

[3] Relations Transatlantiques : Les États-Unis et le Canada inhttps://www.europarl.europa.eu/ftu/pdf/fr/FTU_5.6.1.pdf acesso 27-09-2021

[4] Steven Craig Clemons, “The Biden Doctrine” in  The Atlantic, AUGUST 22, 2016 https://www.theatlantic.com/international/archive/2016/08/biden-doctrine/496841/

Artigo publicado originalmente em 15 de outubro de 2021 no Le Monde Diplomatique.

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