Política de desafios: combate à pandemia e as novas turbulências nas relações Brasil – EUA

19 de outubro de 2021

Por Tatiana Berringer, Gabrielly Almeida, Gabriel Soprijo, Fernanda Antoniazzo, Flávia Mitake, Gabriela Leite, Thiago Fernandes
(Foto: Mercado&Consumo)

A figura do presidente Jair Bolsonaro estampou os jornais internacionais durante a reunião da Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2021, propagando uma imagem bastante negativa do Brasil na arena internacional. Enquanto isso, a pandemia continuou a impor novos desafios ao país e aos Estados Unidos de Joe Biden. Menos de um mês após o desgaste, foram divulgados os lucros offshore milionários do ministro da economia brasileiro, Paulo Guedes, que foi a Washington advogar pela agenda de privatizações no Brasil ante os maiores órgãos financeiros internacionais, o FMI e o Banco Mundial. Por fim, no Congresso estadunidense, um importante projeto de lei começou a ser discutido para conter o avanço do desmatamento no Brasil, o que poderia transformar em medidas concretas uma das principais divergências entre as atuais administrações dos dois países.

A pandemia lá e cá 

Após longos meses de espera, milhares de mortes e inúmeras dificuldades, o mundo tem assistido ao início do que parece ser a recuperação da grande crise sanitária gerada pela pandemia do novo coronavírus. A esperança tem se espalhado por inúmeros países, como Portugal, que está no topo do ranking de número de completamente imunizados no mundo, tendo quase 87% da sua população já com as duas doses da vacina, ou dose única, tomadas. Lá, inúmeras restrições importantes já caíram e o uso de máscaras é obrigatório em um pequeno grupo de lugares. Apesar da incerteza de que essas medidas se sustentarão, a marca de imunizados nesse país é notória, especialmente porque está de acordo com o que especialistas têm apontado como uma margem segura para o retorno à normalidade, dada a alta transmissibilidade da variante delta. 

Nesse contexto, os Estados Unidos de Joe Biden tem enfrentado um forte impasse: apesar do enorme esforço do governo em manter uma forte política de incentivo à vacinação e testagem em massa, a porcentagem da população com esquema vacinal completo está estagnada em um número muito distante daquele ostentado pelos portugueses: cerca de 56%. Especialistas apontam que o país chegou a um ponto de difícil evolução por causa do expressivo número de estadunidenses que se recusam a se vacinar. Já no Brasil, no lugar do convencimento dos não vacinados, a conclusão do esquema vacinal será fundamental para que marcas promissoras como a de Portugal sejam atingidas. Quanto aos completamente vacinados, o país se encontra atrás do norte-americano, com cerca de 47% da população neste grupo. Porém, somando-se toda a população vacinada com pelo menos a primeira dose, o Brasil atingiu a marca dos 72%, contra cerca de 65% dos Estados Unidos. 

No dia 13 de outubro, a média móvel de mortes por Covid-19 no Brasil chegou a 316, a menor desde abril de 2020, no início da pandemia. Em abril deste ano, na fase mais crítica da pandemia por aqui, essa média girava entre 3 e 4 mil mortes diárias.Comparativamente, são claros os efeitos da vacinação sobre esses números. 

Atualmente, Estados Unidos e Brasil são os países com o maior número de mortos por Covid-19 no mundo. A marca dos 600 mil mortos pela doença foi atingida no Brasil no dia 08 de outubro. Mais uma vez, mantendo sua frieza sobre os dados mais trágicos da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro rebateu: “Qual país não morreu gente?”, mostrando-se, ainda, como parte do problema a ser superado para que a pandemia chegue ao fim no Brasil. 

Por sua vez, nos Estados Unidos somaram-se 700 mil mortos pela doença em 1 de outubro. Pouco antes dessa data, no dia 27 de setembro, o presidente Biden tomou a dose de reforço da vacina contra o coronavírus, e aproveitou a oportunidade para realizar uma entrevista coletiva exaltando a vacinação no país e alertando aqueles que ainda não haviam se vacinado de que estavam fazendo com que o país sofresse muito. No dia 2 de outubro, o presidente se dirigiu à nação lamentando as mortes ocorridas pela doença e voltou a afirmar a importância da vacinação. Em um novo apelo aos que ainda não se vacinaram, finalizou: “Se ainda não se vacinou, vacine-se. Isso pode salvar sua vida e a vida de quem você ama”

Bolsonaro em Nova York

Em setembro de 2021 , o Presidente da República formou uma comitiva junto a membros de seu governo para viajar aos Estados Unidos, onde ele próprio compareceria à Assembleia Geral da ONU, em  Nova York. O grupo era composto pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, o filho do Presidente e deputado federal, Eduardo Bolsonaro, Marcelo Queiroga (cargo) e mais sete ministros, além do presidente da Caixa Econômica Federal, e um advogado como convidado especial. Bolsonaro, entretanto, declarou  que não estava vacinado, apesar de já em Janeiro deste ano ter colocado seu cartão de vacinação sob sigilo por até um século.

Assim sendo, a presença do Presidente na reunião já estava rodeada de polêmicas, uma vez que a vacinação era dada como obrigatória para comparecer à plenária devido a decisão da prefeitura de Nova Iorque sobre atividades realizadas em ambientes fechados. O prefeito de Nova York, Bill de Blasio, chegou a dizer para o presidente Jair Bolsonaro “não se incomodar” em viajar para a cidade, já que o brasileiro não está vacinado. Apesar desse “desconvite”, Bolsonaro foi aos EUA e sua participação na Assembleia não foi impedida. Na cidade, o Presidente do Brasil entrou no hotel que lhe foi reservado pela porta dos fundos, escondendo-se dos manifestantes que o chamavam de “genocida”. Além disso, teve de comer na rua para driblar as recomendações locais para não-vacinados.

As polêmicas dessa viagem não pararam por aí. Dentre os quinze membros da comitiva, quatro testaram positivo para Covid-19. Ademais, enquanto Bolsonaro, orgulhosamente, deixava o mundo saber que ele não se vacinou, a primeira-dama foi vacinada em Nova Iorque.

Paulo Guedes em Washington 

Uma investigação chamada Pandora Papers, conduzida pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, divulgou a notícia de que o ministro da economia, Paulo Guedes, mantém uma empresa nas ilhas Virgens Britânicas – um paraíso fiscal. A empresa é ilegal, uma vez que, de acordo com o artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal, é vedado ao funcionalismo público de alto escalão manter aplicações financeiras que possam afetar a situação econômica do país. Com a alta do dólar e a desvalorização do real, Guedes lucrou R$14 mil por dia, já que os investimentos subiram, aproximadamente, de 35 para 51 milhões de dólares. 

Dada a repercussão da notícia, foi requerida uma convocação do ministro por 310 deputados do Congresso. Porém, Guedes não compareceu, uma vez que viajou para Washington, para a Reunião Anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial e para o encontro de presidentes dos Bancos Centrais e ministros da Fazenda do G20. Guedes teria sido aconselhado a ficar fora dos holofotes após o desgaste político e somente focar nessa visita com os investidores estrangeiros. De acordo com Adriana Fernandes (2021), cada vez mais aumenta o rumor de que o ministro pode perder o cargo se as explicações sobre o offshore não forem convincentes aos parlamentares. 

Nos EUA, Guedes defendeu medidas neoliberais e apoiou a privatização de setores estratégicos. O ministro declarou apoio para que o governo venda ações da Petrobrás, quando o preço do combustível subir, na intenção de distribuir dinheiro aos mais pobres. Além disso, ressaltou que o Brasil quer ser uma “potência verde”, afirmou que deve anunciar uma linha de financiamento de R$2,5 bilhões com o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) – vinculado ao BRICS,  com o intuito de financiar ações de sustentabilidade. Outro ponto a ser destacado em sua fala foi a campanha de vacinação realizada pelo Brasil, que estaria possibilitando uma volta segura dos trabalhadores ao mercado. Pediu que os investidores estrangeiros “acreditem” no Brasil e ressaltou que as instituições funcionam. Em sua fala, pontuou estar otimista em relação a reformas tributárias e administrativas, que seriam responsáveis por um sucateamento de diversos setores estratégicos e importantes para o Brasil.

Por fim, um dos principais pontos que chamou atenção foi a declaração de que o Brasil estaria pronto para adentrar a OCDE. De acordo com Guedes, o país já teria aderido a 100 dos 247 instrumentos legais. Em nota, ele reiterou que “O país tem trabalhado especialmente para a adesão aos instrumentos da OCDE voltados à melhoria do ambiente para serviços ambientais”. Além disso, durante sua participação na Reunião Plenária do Comitê Monetário e Financeiro Internacional (IFMC) ressaltou a importância do apoio do FMI aos países mais vulneráveis, falou sobre apoio de países com melhores condições às nações mais pobres e na necessidade de novas linhas de crédito. Guedes reiterou apoio às economias avançadas a aumentarem as contribuições ao Fundo para a Redução da Pobreza e para o Crescimento (PRGT) e para manutenção do Fundo de Resiliência e Sustentabilidade.

As commodities agrícolas no Congresso dos EUA

A pauta ambiental, importante bandeira levantada pela administração Biden desde a sua campanha, tornou-se foco do Congresso estadunidense na última semana. No dia 06 de outubro, um projeto de lei intitulado Forest Act 2021 foi levado simultaneamente ao Senado e à Casa de Representantes, pelos democratas Brian Schatz e Earl Blumenauer, respectivamente. A proposta tem como alvo a importação de commodities agrícolas como óleo de palma, madeira, carne e outros produtos derivados do gado, cacau e soja. Seu objetivo é promover a redução do desmatamento nas regiões produtoras, exigindo que os produtos que chegam aos Estados Unidos sejam comprovadamente livres de desmatamento em toda a sua cadeia produtiva, o que demanda maior controle sobre a cadeia de suprimentos das indústrias estadunidenses e, especialmente, dos produtores locais. 

Esta é a primeira ação efetiva proposta pelo governo Biden em resposta às violações do meio ambiente no Brasil, que têm ocorrido de maneira sistemática desde o início do governo Bolsonaro. O Brasil é citado nominalmente no texto do projeto, que o aponta como origem de uma fatia expressiva de carnes e produtos bovinos consumidos nos Estados Unidos. No ano passado, essa fatia correspondeu à movimentação de mais de US$ 500 milhões, segundo o texto. A atividade pecuária, lembram os congressistas, é responsável pelo avanço do desmatamento da Amazônia e outros biomas, e ocorre majoritariamente à sombra da lei. É importante salientar que uma medida como essa, de restrições aos produtos ligados ao desmatamento no Brasil, vem sendo discutida no âmbito da União Europeia e deve ser levada a cabo em um futuro mais próximo

Também vale lembrar que, no início do mandato do presidente Joe Biden, ainda em fevereiro deste ano, diversos acadêmicos e ONGs ambientalistas brasileiros enviaram um dossiê ao presidente pedindo justamente que medidas como essas fossem tomadas. Os autores sugeriram que as relações bilaterais com o Brasil fossem dificultadas até que medidas efetivas contra o desmatamento na Amazônia tomassem forma. A prioridade, segundo eles, deveria ser a de restringir as importações de commodities de risco florestal, o que é justamente o que os democratas tentam emplacar no Congresso atualmente. Nesse mesmo esforço, quando foi realizada a Cúpula sobre o Clima, em abril deste ano, diversas ONGs, sindicatos e outras entidades se manifestaram em carta aberta ao presidente Joe Biden, solicitando que este não firmasse nenhum acordo de cunho climático com Bolsonaro. O mesmo foi feito por diversos artistas brasileiros e estadunidenses

Apesar de representar uma possibilidade importante de avanço do combate às mudanças climáticas e da proteção da biodiversidade e comunidades locais, para a administração Biden, essa medida é um movimento político bastante relevante e, para o Brasil, um alerta ao governo e aos pecuaristas.

Versão ampliada do texto originalmente publicado em 15 de outrubro de 2021 na coluna do OPEB no Brasil de Fato.

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