19 de outubro de 2021
Por Davi Reis Procaci Gonçalves, Júlia Luvizotto Nóbrega, Luiza Gouvêa e Rios Cobra e Tatiane Anju Watanabe
(Foto: Diário de Notícias)
O movimento por direitos reprodutivos e sexuais das mulheres na América Latina passa por um momento empolgante de descriminalizações e legalizações do aborto. No último ano foram três grandes conquistas, na Argentina, no México, e mais recentemente no Chile, embora neste último a legislação ainda precise ser aprovada no Senado. Fala-se em uma “maré verde” – em referência aos lenços de origem argentina, simbólicos desta luta – no continente onde, segundo pesquisa da Organização Mundial da Saúde de 2017, três a cada quatro abortos são considerados inseguros.
O último dia 28 de setembro foi de suma importância para pensar o direito ao aborto seguro na América Latina. Nesta ocasião, a Câmara dos Deputados chilena aprovou o projeto de lei que permite a interrupção da gravidez até a 14ª semana, enquanto aconteciam manifestações pelo direito ao aborto legal e seguro em todo o continente. Os protestos foram desde El Salvador, onde o aborto é totalmente proibido, sem exceções, passando pela Venezuela, onde só é permitido quando a gravidez representar risco eminente para a vida da gestante, até o Chile, onde se aguardava o resultado da votação do Congresso.
Não se estranha que tenha sido nessa data que tantas mobilizações aconteceram. O 28 de setembro é bastante significativo para os movimentos feministas. Trata-se do Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, e também o Dia de Ação Global pelo Aborto Legal e Seguro. O primeiro foi definido em 1990 no V Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho, que reuniu na Argentina mais de duas mil mulheres. Já o Dia de Ação Global foi marcado em 2016 por um grupo de relatores de Direitos Humanos da ONU. É, portanto, uma jornada de luta, não somente regional mas mundial, que coloca no centro das discussões a importância de tratar a interrupção voluntária da gravidez como questão de saúde pública, para garantir a segurança de milhões de mulheres, meninas e pessoas com útero que abortam de maneira clandestina, possibilitando-as controle sobre sua vida reprodutiva.
O passo chileno em direção à despenalização é dado num momento de renovação política no país, na esteira das poderosas manifestações de 2019 e das atividades da Assembleia Constituinte. A lei, se aprovada pelo Senado, substituirá a norma de 2017, que proíbe a escolha, a não ser em casos de inviabilidade fetal, violação sexual ou risco de vida da gestante. A pena para o não cumprimento destas regras é de cinco anos de prisão. Até 2017, o aborto era completamente proibido, como herança dos anos ditatoriais de Augusto Pinochet.
Assim como em outros países em que a prática é amplamente proibida, é difícil saber os números do aborto clandestino no Chile. O Ministério da Saúde fala em mais de 33.000 abortos anuais, uma média de 90 diários. Entre 2018 e 2020, também segundo a pasta da saúde, teriam sido registrados apenas 1.827 abortos legais no país. Já estudos como o Informe Anual sobre Direitos Humanos no Chile, de 2013, do Instituto Chileno de Medicina Reprodutiva, falam em pelo menos 60.000 interrupções gestacionais por ano.
O caso mexicano
No México, a interrupção voluntária da gravidez é regulada no âmbito estadual. A capital e os estados de Oaxaca, Hidalgo e Veracruz são os únicos que têm a prática descriminalizada até a 12ª semana, enquanto nos outros 28 gestantes são restritas às condições de malformação do feto, riscos para a mulher e casos de estupro, punindo aquelas que incorrerem no procedimento ilegal. Anualmente são entre 750 mil e um milhão de abortos clandestinos no país, dentre os quais ¾ requerem ajuda médica de urgência.
A Suprema Corte de Justiça decidiu, unanimemente, em 7 de setembro, pela descriminalização no território nacional, uma resposta ao Código Penal do estado de Coahuila,. Lá, a punição por realizar aborto ilegalmente é de três anos. Estabelece-se, assim, um precedente que pode proteger mulheres processadas criminalmente e já significou a liberdade de algumas encarceradas. A decisão é um importante passo em direção ao pleno exercício do direito reprodutivo e sexual das mulheres, especialmente em uma região tão religiosa e punitivista quanto a latino-americana.
Contudo, é necessário pontuar que a decisão não remove o aborto dos Códigos Penais estaduais. Ademais, o direito dos médicos de se recusarem a realizar procedimentos abortivos com base nas suas crenças foi assegurado pela mesma Corte, o que impõe obstáculos práticos à decisão pela despenalização.
O caso argentino
Na Argentina, os últimos dias de 2020 foram marcados pela aprovação do projeto de lei de descriminalização e legalização do aborto, permitindo a interrupção da gravidez de forma livre e gratuita até a 14ª semana de gestação. Nas ruas, multidões vestindo verde e com lágrimas nos olhos comemoraram a decisão. A lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (Interrupción Voluntaria del Embarazo – IVE) substitui a norma de 1921, que restringia o aborto a casos de estupro ou perigo à vida da mãe – parecida com a legislação brasileira hoje -, e tornou a Argentina o país latino-americano mais populoso a regularizar a prática.
Organizações de mulheres na Argentina deram início à Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Livre em 2005, e desde então foram seis projetos de lei apresentados. Em 2018, ainda durante a gestão Maurício Macri, o movimento feminista conseguiu uma vitória na Câmara dos Deputados, aprovando um projeto de legalização do aborto que acabou rejeitada pelo Senado. Apesar da derrota, a aprovação inicial na Câmara foi bastante significativa, demonstrando a força da luta feminista.
Para compreender essa aprovação, é necessário considerar que outra campanha de mulheres ganhou força a partir de 2015, o Ni Una a Menos – originada para combater o feminicídio -, que também ajudou a articular movimentações em prol do aborto legal e seguro. Além disso, o movimento secundarista foi fundamental para garantir o avanço da luta pelo direito ao aborto, tendo ocupado uma dúzia de escolas públicas de Buenos Aires às vésperas da votação no congresso em 2018. Assim, menos de dois anos depois, no final de 2020, com apoio do presidente – a legalização era uma das promessas de campanha de Alberto Fernández – e a pressão ainda mais forte e articulada do movimento feminista, o cenário era mais favorável, e os votos contrários caíram em 23,7% em relação à votação anterior.
Desde a sanção da lei IVE, nenhuma mulher ou pessoa com capacidade de gestar morreu em decorrência de um aborto voluntário, seja ele legal ou clandestino, segundo Elizabeth Gómez Alcorta, ministra da pasta de Mulheres, Gêneros e Diversidade, criada na gestão de Alberto Fernández. Também segundo a ministra, hoje são 1.154 lugares no sistema de saúde público para o cumprimento da lei. A regularização se faz importante no país, dentre outros motivos, pelo alto número de internações decorrentes de tentativas de aborto ilegal. Segundo dados do Ministério da Saúde argentino, em 2013 49.000 mulheres foram internadas em hospitais públicos com problemas relacionados ao aborto, o que equivale a 135 mulheres por dia. Destes, 362 foram considerados abortos legais, menos de 1%.
Dentre as dificuldades para a implementação da legislação estão as mais de 30 ações judiciais para que a legalização não se efetue, bem como a resistência de profissionais da saúde, por objeção de consciência, alegando motivo íntimo para não realizar a prática médica. Na ocasião em que todos os profissionais da instituição de saúde se declarem impedidos de realizar o aborto, obriga-se a unidade de saúde a encaminhar a gestante a outro estabelecimento para realizar a interrupção. A oposição é maior nas províncias ao norte do país, caracterizadas pela influência de igrejas católicas e evangélicas.
Panorama da descriminalização e legalização do aborto
Analisando mundialmente o acesso ao aborto legal e seguro, há uma disparidade visível entre os países. Primeiro de tudo, há uma diferenciação no tempo que levou para os países legalizaram o procedimento. O primeiro país do mundo a legalizar o aborto foi a União Soviética em 1920, como uma das várias conquistas da luta das mulheres, sendo seguido pela Islândia, em 1935. Na Ásia, o primeiro país a legalizar foi o Japão em 1948, e nas Américas, Cuba foi o primeiro país a garantir o aborto legal, seguro e universal, em 1963. Porém, apesar do número de países com legislações que garantam o direito ao aborto estar aumentando, de acordo com a Organização não-governamental Center for Reproductive Rights, 41% das mulheres no mundo ainda vivem em países com leis mais restritas, e observando o mapa abaixo, constata-se que a luta pela garantia ao aborto legal e seguro ainda tem um longo caminho pela frente.
A partir da leitura do mapa acima, outro ponto que também precisa ser observado é a disparidade geográfica. Em 2017, uma pesquisa publicada na revista The Lancet, estimou que 90% dos abortos inseguros realizados no mundo ocorreram em países subdesenvolvidos na Ásia, África e América Latina. E de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 23.000 mulheres morrem todos os anos de abortos inseguros. Atualmente, entre os países desenvolvidos, a maioria possui legislações que garantem o direito. Entre os países da União Europeia, Malta é o único que proíbe a prática; os países da Oceania estão entre os que garantem o direito, assim como Estados Unidos e Canadá. Já quando se observa os países subdesenvolvidos, na África os únicos que garantem o direito ao aborto são Etiópia, Guiné-Bissau, Ruanda, Zâmbia, Moçambique, África do Sul e Tunísia; na Ásia há uma diferenciação menor, mas ainda se predomina mais os países onde o aborto legal e seguro não é garantido, considerando que 23 entre os 50 países e territórios no continente asiático permitem o aborto sem grandes restrições; e no caso da América Latina, será visto melhor a seguir.
A situação na América Latina
A legalização do aborto em Cuba se deu ainda na década de 1960, como fruto da luta das mulheres e da ampliação dos direitos sociais conquistados pela Revolução. As cubanas podem realizar o procedimento de interrupção da gravidez até a 10ª semana, de maneira gratuita em instituições públicas com profissionais experientes. Estima-se que em 2018 tenham sido realizados mais de 85 mil abortos na ilha de forma segura e gratuita. O código penal de 1987, trouxe maior segurança ao penalizar as práticas de aborto caso visem lucro, sejam realizadas fora de instituições hospitalares e/ou sem o consentimento da mulher.
O embargo econômico imposto pelo governo de Washington à Cuba causa o desabastecimento de métodos contraceptivos como preservativos, dispositivos intra uterino e pílulas anticoncepcionais. Dessa forma os abortos têm se constituído como instrumento de controle populacional e planejamento familiar, porém o aborto reiterado traz riscos para a saúde para as mulheres e não deve ser adotado como política pública de método contraceptivo.
Outro país que está na vanguarda da luta pelos direitos reprodutivos na América Latina é o Uruguai, que desde 2013 garante que pessoas com útero tenham o controle de seus próprios corpos e possam decidir interromper uma gravidez indesejada de forma segura. As uruguaias podem realizar o aborto até à 12ª semana, as vítimas de estupro podem tomar a decisão até à 14ª semana, enquanto que em caso de risco à saúde da mãe ou em caso do feto ser inviável biologicamente não há prazo para a realização do procedimento. Elas são encaminhadas a uma consulta com um ginecologista, um psicólogo e um assistente social, em seguida cumprem um prazo de cinco dias para reflexão final.
O Uruguai adotou uma política de abortos por medicamentos, zerando o número de mortalidade materna, o único caso foi um provocado em uma clínica ilegal, demonstrando de forma bem nítida os resultados dessa política pública. Outro aspecto que chama a atenção no caso uruguaio é o aumento dos números de abortos realizados, porém trata-se de um comportamento esperado quando se tem a legalização de uma prática pois está se partindo de zero casos, no último relatório publicado pelo Ministério de Saúde local, observa-se um crescimento de 1,1% em 2017 .
A Guiana Francesa é um território ultramarino da França e segue sua legislação, portanto é legalizado o aborto até a 14ª semana de gestação. Já na Guiana, devido a forte influência do Reino Unido, também é legalizado o aborto até a 12ª semana.
Desde 2006, a Colômbia permite o aborto em três casos: em risco a saúde física ou mental da gestante, violência sexual ou inviabilidade fetal. Por ter um entendimento mais amplo quanto à preservação da saúde, leva-se em consideração o fator mental, uma vez que levar uma gravidez até o fim é impor uma violência psicológica à pessoa gestante. O procedimento é realizado no sistema público de saúde e clínicas privadas prestam o serviço às estrangeiras.
No último dia 28 de setembro os movimentos feministas venezuelanos foram às ruas para reivindicar a revogação dos artigos 430, 431, 433 e 434 de sua Constituição Federal que criminalizam o aborto no país que possui uma das legislações mais duras sobre o assunto na região latinoamericana. O aborto é autorizado apenas em caso de risco eminente a vida da gestante. A pena para quem o pratica varia de 6 meses a 2 anos.
Os abortos realizados clandestinamente na Venezuela representam a 3ª principal causa de mortes femininas. Além disso, o país também enfrenta o bloqueio econômico estadunidense, o que dificulta o acesso a métodos contraceptivos como preservativos e pílulas anticoncepcionais, quadro que se agravou com a pandemia. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas, a taxa de gravidez na adolescência é de 85,3% no país, uma das mais altas da região.
No Paraguai a legislação permite o aborto apenas em caso de risco eminente a vida da gestante, a prática clandestina é responsável por um quarto das mortes maternas. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas, em 2019, foram realizados 700 abortos em meninas de 10 a 14 anos, muitas vítimas de estupro.
O aborto é totalmente proibido independentemente das circunstâncias no Suriname, na Nicarágua, Honduras, El Salvador, Jamaica, Haiti e República Dominicana.
O caso brasileiro
O Brasil faz parte de um grupo de países que possuem legislações restritivas quanto à interrupção da gravidez. Realizar um aborto induzido é considerado um crime contra a vida, como disciplinado entre os artigos 124 e 128 do Código Penal desde o ano de 1984. Deste modo, a gestante que provocar ou consentir com a realização do procedimento pode ser punida com pena de detenção de um a três anos. A pena pode variar de três a dez anos para quem realizar o aborto sem o consentimento da mulher, e de um a quatro quando o processo é feito com a sua anuência.
As poucas instâncias em que um aborto é considerado legal são quando a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mulher, conforme estabelece a lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Mais recentemente, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que é permitido interromper a gestação quando se nota que o feto é anencéfalo. Tendo em vista a criminalização e restrição das práticas abortivas, muitas mulheres recorrem a clínicas clandestinas ou realizam o procedimento em suas próprias casas. Como resultado disso, aproximadamente 4 mulheres morrem por dia no Brasil tentando realizar um aborto sem sucesso, segundo dados do Ministério da Saúde.
Com a presidência de Jair Bolsonaro e a ascensão do conservadorismo de extrema-direita, o país vive um momento de retrocesso no que diz respeito aos direitos reprodutivos femininos, ainda distante da realidade dos vizinhos argentinos, por exemplo. Para além dos entraves a avanços nesta pauta, o governo se organiza para o desmonte de políticas públicas e da atual legislação, contando com o apoio ferrenho de grupos religiosos fundamentalistas. Dentre as práticas desses grupos estão as tentativas de invasão de hospitais em que se realizam abortos legais, em tentativas de impedí-los. Uma das figuras mais importantes para este movimento é a ministra Damares Alves, da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, uma das fundadoras do movimento Brasil sem Aborto.
A opinião dos brasileiros acerca do aborto segue muito conservadora, classificando o país como quinto menos favorável à legalização total da prática, dentre os 27 analisados na edição de 2021 da Global Views on Abortion, pesquisa da Ipsos. Apenas 31% dos brasileiros consideram que o aborto deve ser permitido sempre que a mulher desejar, e 33% acreditam em restringir a algumas circunstâncias, como é o caso do estupro, totalizando 64% de apoio parcial ou total ao aborto, um aumento em relação aos 53% de apoio em 2014. Na mesma pesquisa, a Argentina aparece como 7ª colocada, com 79% de apoio parcial ou total. O próximo latino-americano é o Chile, com 73%, seguidos do Brasil (64%), Colômbia (62%), México (59%) e Peru (53%).