Brasil, África e a gestão Bolsonaro: algumas observações

16 de novembro de 2021

Por Mohammed Nadir, Magaly Morais, Enrique Lima, Pedro Lagosta, Flávio Thales (Foto: Marcos Corrêa/PR/Poder 360)

Torna-se difícil manter uma relação comercial apenas de troca de mercadorias, que já não é baseada em investimento e em interesses comuns um pouco mais complexos. É isto que está acontecendo. O caminho parece ser de deterioração e não de melhoria porque não se vê empresas brasileiras interessadas em África neste momento.

Não é segredo que as relações afro-brasileiras sofreram uma queda drástica durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. Que o diga o economista guineense Carlos Lopes, que traçou um quadro frustrante das relações entre Brasil e África. Parece longe a era em que grandes empresas brasileiras faziam a ponte entre o tecido econômico brasileiro e a África, que depois traziam as outras empresas  menores para o continente africano. Foi o caso das grandes empresas de construção como a Odebrecht e a Camargo Correa, e das empresas relacionadas à mineração como a Vale e, de uma certa forma, a Petrobras com a extração de petróleo. Estas empresas todas desertaram da África, foram embora”, disse em entrevista ao Mercados Africanos, Carlos Lopes. Desse modo torna-se difícil manter uma relação comercial apenas de troca de mercadorias, que já não é baseada em investimento e em interesses comuns um pouco mais complexos. É isto que está acontecendo. O caminho parece ser de deterioração e não de melhoria porque não se vê empresas brasileiras interessadas  na África neste momento”. Dados disponibilizados pela Secretaria de Comércio Exterior do Brasil mostram que as exportações brasileiras para a África estão em queda. A título ilustrativo, as vendas de produtos brasileiros ao continente recuaram 7% em 2019 face ao ano de 2018, somando apenas 7,5 mil milhões de dólares. 

Se é difícil apresentar novas iniciativas do atual governo em se relacionar com o continente africano de forma mais direta, tendo mantido pouco contado após a instauração de uma nova visão de nossas relações exteriores, parece que uma corrente de Itamaraty tem tentado evitar o aniquilamento do legado de relações entre o Brasil e o continente africano. A prova é que tem havido uma aproximação por meio da discussão e atuação em torno da segurança alimentar e da fome, dois tópicos que impactam fortemente a África, continente que busca soluções por meio do desenvolvimento interno de sua produção ou por meio de doações internacionais, no caso o Brasil tendo participado de ambas.

Durante o Fórum Brasil-África 2019, realizado nos dias 12 e 13 de novembro, o tema principal da reunião entre representantes do governo, com abertura do vice-presidente Hamilton Mourão, e representantes das Nações Unidas, autoridades africanas e delegações do setor público e privado, foi “Segurança alimentar: caminho para o crescimento econômico”. A ideia do evento foi discutir formas de promover a segurança alimentar na África por meio de compartilhamento de tecnologias e elaboração de novas estratégias, com foco na expansão do setor agrícola, tendo-o como ponto estratégico para se alcançar soluções. Foram discutidos tópicos como novos modelos de produção agro-energética, agricultura verde e democratização do agronegócio, temas fortemente associados a uma forma de alcançar a segurança alimentar, expandindo a capacidade produtiva interna do continente africano. Foi abordada também a capacidade brasileira de exportar sua produção, visto a grande capacidade produtiva da nossa agricultura, por meio de relações comerciais entre o Brasil e os países africanos ou por meio de doações com intermédio das Nações Unidas.

A questão da segurança alimentar do continente africano se tornou mais grave devido à pandemia  de Covid-19,   que agravou a fome pelo globo. Um relatório da ONU publicado neste ano analisou os impactos da pandemia durante o ano de 2020, observando a estimativa de que um décimo da população mundial – 881 milhões de pessoas – enfrentaram a fome durante o ano pandêmico. De acordo com os dados, mais de um terço das pessoas (282 milhões) que enfrentam fome se encontram na África, com um aumento expressivo da fome em 21% da população durante 2020. Assim, a insegurança alimentar por meio da incapacidade de obter alimentação adequada assolou o mundo inteiro, em especial o continente africano, com o agravamento de questões como a má nutrição, desigualdade de gênero em torno da obtenção de alimentos e desnutrição crônica. Um dos grandes impactos da pandemia foram as fortes recessões econômicas nos países, criando novos desafios antes nunca vistos ou ampliando situações de conflito e desigualdade, tornando as nações que já se encontravam em situação de fome ainda mais vulneráveis.

Uma das formas de cooperação com o continente africano pelo governo Bolsonaro foi por meio do Programa Mundial de Alimentos da ONU, o qual lida com a fome e segurança alimentar em âmbito global por meio de um fórum global entre os países.. O Brasil já possuía uma cooperação com o projeto das Nações Unidas e com a Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO), buscando formas de dispersar os conhecimentos agrícolas. Esse apoio se manteve durante o governo Bolsonaro e foi renovado no dia 10 de novembro de 2021, por meio de um protocolo de intenções entre a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o Centro de Excelência contra a fome do Programa Mundial de Alimentos. A parceria tem como foco lidar com a fome e insegurança alimentar na África, Ásia e América do Sul, com o comprometimento brasileiro de aceitar delegações em prol do diálogo e compartilhamento de experiências e conhecimentos relativos à produção agrícola e formas de se alcançar uma maior segurança alimentar.

 

 Projeção do agronegócio brasileiro sobre o continente africano

 

Analisando o relatório das projeções do agronegócio brasileiro, percebemos que os números são bastante otimistas; entretanto, ao vermos paralelamente notícias sobre a representação diplomática enviesada enviada ao continente Africano, entendemos que o relatório ignora a compreensão sobre as interações humanas para que a cooperação visando o desenvolvimento comercial se efetive de modo duradouro. 

No eixo das realidades pode-se inferir que o Brasil tem trabalhado com números sem o cuidado de tratar das variáveis sobre probabilidades negativas que podem emergir em resposta ao racismo e a fatores climáticos em mutação. As intercorrências possíveis sobre esses dois aspectos podem indicar que o relatório de projeções seja questionável. 

O mundo vive hoje a necessidade de aproximação dos povos com base na alteridade, para superação de desafios iminentes em relação à questão climática zelando pelas fontes de matéria-prima como por exemplo as reservas de Lítio na Argentina, Bolívia e Chile, e outros recursos naturais que residem em países do sul global, apontando a propensão da busca por recursos para desenvolvimento tecnológico, energia e alimento no continente africano. Sem um real preparo ético e diplomático que evolua no sentido de reverter o racismo que tem desqualificado parceiros comerciais promissores, cria-se o campo minado nas aproximações comerciais e culturais que deveriam ser solidárias e respeitosas, a exemplo do modelo que a China estrategicamente tem desenvolvido junto a países do continente. 

Preocupação e interesse em estreitar parcerias com países da África parecem existir por parte do Itamaraty conforme indicado no seminário realizado em outubro de 2021 “O Brasil e África no Agro”, onde uma das abordagens apontou a possibilidade de oferta de tecnologia agrária do Brasil para África, contudo os empresários brasileiros e o próprio Estado precisam ampliar os espaços ali, à semelhança do que Rússia, China e outros países têm procurado fazer. 

A produtividade no campo depende tanto de mão de obra técnica, quanto de tecnologia, contando ainda com a cooperação acadêmica, financeira e empresarial principalmente no contexto da agricultura 4.0 em que as fontes de informações sobre clima, solo, economia e tecnologia oferecem dados seguros e atualizados.

 Importante ator doméstico nas relações Brasil-África, o Instituto Brasil-Africa (IBRAF), cujo presidente é João Bosco Monte, professor da Unifor- Universidade de Fortaleza, entende e defende a importância da interação e cooperação entre Brasil, um país de dimensões continentais, e o grande continente africano, com a projeção de crescimento populacional aumentada em 50% nos próximos anos. 

O professor João Bosco aponta que o Brasil pode ascender à posição de exportador não apenas de alimentos, mas de outros produtos e tecnologias agro, para isso o estímulo à participação da iniciativa privada e empresários do setor têm seu lugar. O professor reconhece ainda o importante papel da Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, principal responsável pelo desenvolvimento do setor agropecuário no Brasil desde 1973, atualmente com 48 anos de existência, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Em recentes entrevistas, o professor considerou as principais diferenças e características dos 54 países da África e seus variados modelos de Estado como um vasto campo para investimentos brasileiros, cujo retorno assegurado baseia-se também em algumas semelhanças em “termos de recursos hídricos e climáticos com o Brasil”, enfatizando que sejam aproveitadas demais oportunidades também disponíveis. Compreende que a variação dos biomas presentes no Brasil torna possível a adaptação para a distinta realidade dos biomas em África, segundo a condição de cada país. 

A estratégia da Embrapa tem consistido no estabelecimento de uma agenda de cooperação, oferecendo transferência de tecnologia investindo na capacitação de jovens africanos, em solo brasileiro, nas áreas em que o Brasil se destaca. Intercorrências nessa esfera podem refletir na percepção que esses futuros líderes venham a adotar no futuro quanto a negociações com o Estado brasileiro.  Sendo assim, o racismo constitui uma barreira a ser vencida em território nacional, porém que se espelha para o restante do mundo nas interações comerciais com as quais o Brasil tenha interesse, eliminando definitivamente a ambivalente raiz colonial e histórica que tem ainda gerado prejuízos socioculturais globalmente.

 

A importância do Brasil no projeto Covax e o apoio aos países africanos na pandemia

 

  Outro tema que tem gerado debate é os meios de fazer frente  à pandemia da Covid 19 e suas nefastas consequências. Após um início dramático em termos de gestão da pandemia no Brasil bem como a famosa posição anómala do Brasil ao ser o único país em desenvolvimento a se aliar explicitamente ao grupo de economias ricas, rejeitando aderir a uma proposta de Índia e África do Sul para que todas as patentes de remédios, vacinas e produtos de combate à Covid-19 sejam suspensas. A gestão do novo ministro de Relações Exteriores Carlos França tem incutido uma nova dinâmica nas relações com a África. Uma dessas medidas é a ajuda dada em 6 de outubro de 2020 ao governo sudanês para enfrentar a pandemia do novo coronavírus. Com caráter humanitário, kits de teste de Covid-19 para uso em hospitais foram adquiridos com recursos doados à União Africana pelo Ministério das Relações Exteriores. No total, a doação brasileira foi de US $250 mil e foi viabilizada pelo Programa Mundial de Alimentos.

 Outra mudança do Brasil é a adesão ao programa Covax Facility que é uma aliança internacional de 165 países conduzida pela OMS, entre outras organizações, com o objetivo de acelerar o desenvolvimento e a produção de vacinas contra Covid-19 e garantir o acesso igualitário à imunização em todo o mundo. Mais de 150 países aderiram à iniciativa. A admissão do Brasil, que foi assinada em 25 de setembro de 2020, inclui o acesso a 42,5 milhões de doses. 

O protocolo permite ao Brasil integrar a Covax Facility, aliança da Organização Mundial da Saúde (OMS) para ajudar os países em desenvolvimento a ter acesso a vacinas contra a Covid-19. Essa aliança reúne governos e fabricantes para garantir o desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 e o acesso igualitário a ela. Para isso o Brasil disponibilizou, R $1,68 bilhão para utilização na Covax em janeiro deste ano. As nações concordaram em compartilhar o possível sucesso de uma ou mais dessas vacinas com 90 outros países com menos possibilidades econômicas ou sistemas de saúde mais fracos. No total, 60% da população mundial teria acesso à vacinação.

Se as grandes economias como Estados Unidos, China, União Europeia e Rússia indicaram que não farão parte da coalizão, evidencia-se que o Brasil desta vez não quis ficar fora da família dos países em desenvolvimento marcando presença, o que de certa forma indica uma consciência do que o lugar natural do Brasil é dos países em desenvolvimento e não o clube dos ricos.

O Brasil e o Acordo Continental Africano de Livre Comércio

 

O continente africano, apesar das grandes dificuldades ainda enfrentadas e diversas barreiras a serem superadas, vem mostrando uma articulação regional robusta, visando o desenvolvimento nacional. A União Africana busca consolidar-se cada vez mais como principal articulador dessa política continental na África, acumulando sucessos e decepções, as últimas possuindo raiz na falta de financiamento para colocar em diante os projetos propostos no fórum regional. Não somente isso, em 2021, a Zona de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA) começou a vigorar, promovendo mudanças no comércio continental e permitindo uma inserção mundial mais competitiva. 

Tais iniciativas e fóruns regionais demonstram a clara busca africana pelo desenvolvimento regional e superação das crises humanitárias. Apesar disso, pouco interesse é visto na atual gestão brasileira para estreitar os laços com a África, limitando-se a poucas iniciativas e discursos rasos em sua atuação econômica com as nações africanas. Um dos principais projetos a se ressaltar é o projeto Green Imperative,  que apesar de inicialmente ser limitado à Nigéria, pode gerar um modelo de investimento e transferência de tecnologia para outros países. 

O contínuo foco no agronegócio e exportações de commodities para a África faz sentido dentro do atual modelo econômico brasileiro, afinal, tem como um dos principais motores de sua economia a agroindústria. Enquanto isso, o continente africano enfrenta um grande problema demográfico, que é um crescimento populacional de 1,2 bilhões de pessoas, gerando grandes pressões nos líderes africanos acerca da segurança alimentar (um tema já delicado atualmente).  

Apesar da evidente relação bilateral através da agroindústria, países como a 

África do Sul já estão buscando o caminho para a transição energética (atualmente baseada em carvão), ou seja, um novo mercado amplo e de maior valor agregado. Até o momento, pouco se tem visto do governo brasileiro para fomentar parcerias privadas ou públicas no setor de energia renovável na África. Tal atitude pode ser explicada por um maior foco nas relações com os Estados Unidos da América, a qual pouco tem sido frutífera para a nação brasileira. 

Mas, diferentemente do Brasil, os EUA e suas multinacionais já enxergam a África com olhos diferentes e tomam os principais passos para obter presença em novos mercados. Com projeções de crescimento econômico e populacional para o continente africano evidenciando um potencial grande mercado consumidor, a Boeing (multinacional estadunidense no setor de aviação) prevê que as companhias aéreas americanas demandarão 1.030 novos aviões (estimados em 160 bilhões de dólares) até 2050. 

Com tantos mercados inexplorados na África, pode-se dizer que o Brasil peca em não fomentar investimentos públicos e privados na região, apesar de instituições de consultoria e pesquisa já apontarem para esse grande mercado em potencial.

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