A nova direita na América Latina

01 de dezembro de 2021

Por Gustavo Mendes de Almeida, Mirella Acioli, Nicole Lime, Rafael Sales e Tatiane Watanabe
(Foto: Congresso em Foco)

A ascensão de lideranças extremistas no continente pode reduzir o isolamento regional de Jair Bolsonaro. Candidatos com bom desempenho eleitoral no Chile e na Argentina e golpistas da Bolívia e do Peru têm no presidente brasileiro e em Donald Trump seus modelos de comportamento político.

Introdução

Os ciclos políticos na América Latina têm sido um fenômeno observado desde que a região passou pelos processos de redemocratização após o período de golpes militares no século XX. A alternância de poder entre líderes do espectro político mais à direita com os mais à esquerda vem acompanhado de dilemas conjunturais que criam em cada ciclo características semelhantes entre eles, e que revelam problemas estruturais da região. Recentemente, o continente vivenciou a chamada onda progressista (1998-2016) que deixou um legado de políticas públicas voltadas para pautas sociais. Mas com o fim do boom das commodities,  as fragilidades dos países ficaram evidentes. Isso abriu espaço para que a corrupção se tornasse o alvo prioritário de forças conservadoras, com grande apelo popular. Contudo, o que se pode observar é que, além de um conservadorismo tradicional, há uma nova direita na América Latina que coloca a própria democracia em questão, apelando para o ressentimento social de camadas populares. 

Os principais sintomas do fenômeno puderam ser vistos na crise do governo Dilma e no golpe que a retirou do poder no Brasil (2016), com a vitória de Maurício Macri na Argentina (2015), com a virada liberal de Lenin Moreno, no Equador (2017) e com o golpe de Estado na Bolívia (2019). 

O caso brasileiro é o mais expressivo. Diante de uma recessão provocada pelo governo petista em 2015-16, a direita teve argumentos, apoio da mídia e apelo para realizar grandes mobilizações que resultaram no impeachment da presidenta. Na Argentina, a queda dos preços das commodities resultou em contração econômica e perda de apoio popular do governo Cristina Kirchner. Em maior ou menor grau, o cenário se repetiu no Chile, o que abriu caminho para a eleição do direitista Sebastián Piñera, após a gestão de Michelle Bachelet em 2018, e no Uruguai, com a vitória de Lacalle Pou, no ano seguinte.

A grande radicalização se deu em 2018 no Brasil, com a vitória da extrema-direita comandada por Jair Bolsonaro, após a controversa prisão do favorito na disputa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A partir daí, variantes do que se poderia denominar de neofascismo – com particularidades em cada local – vem ganhando relevância, apesar de eventuais vitórias progressistas, como no México (2018), Argentina (2019), Bolívia (2019) e Peru (2021). Vale a pena examinar alguns desses casos, que chamam atenção por suas potencialidades preocupantes.  

 

Argentina e os resultados das eleições legislativas

A Argentina passou, no último dia 14 de novembro, por eleições parlamentares de meio de mandato presidencial (2019-23). Desde as primárias dos principais partidos, ocorridas em setembro, se esperava um baixo desempenho de candidatos governistas e de centro-esquerda, nas eleições para o Senado e para a Câmara dos Deputados, o que abriria vantagens para a direita. Apesar do resultado negativo, o governo conseguiu amortecer a queda por meio da recuperação parcial de votos na província de Buenos Aires, que reúne quase 40% do eleitorado nacional. A coalizão macrista de direita Juntos por el Cambio obteve ali 42,5% dos votos contra 39,9% da coalizão governista Frente de Todos. Mesmo assim, o resultado acende um alerta em relação às estratégias para os próximos dois anos de Alberto Fernandez na presidência, com a oposição conquistando maioria no Senado e com o governo mantendo sua proeminência na Câmara por apenas um voto. Nesse quadro, surge um novo fenômeno: o aumento da participação da extrema-direita no cenário político.

O partido La Libertad Avanza, do economista ultraliberal Javier Milei, conseguiu 17% dos votos na capital argentina, garantindo sua cadeira como deputado. Sem histórico político, Milei se aproxima de símbolos da extrema-direita, como Jair Bolsonaro e Donald Trump, por sua retórica agressiva e provocativa contra o mundo político e a esquerda. O político vem ganhando atenção e apoio de parcela da juventude. O apoio que recebe nas redes sociais também o projeta como partidário de uma concepção de “liberdade” que remete a uma retórica anti-vacina, negacionista, antiaborto e ultraconservadora. Apesar de ainda se concentrar no eleitorado da capital – no resto do país sua agremiação obteve 6% dos votos -, Javier Milei expressa um desafio à democracia e às instituições do Estado. 

 

Chile e disputa presidencial 

O Chile vive um de seus momentos mais importantes na história recente. Após a ebulição social vivida em 2019, na qual uma onda de protestos tomou conta das ruas de Santiago, com variadas pautas e reivindicações, seguiu-se a aprovação do plebiscito em 2020 sobre a instauração de uma nova constituição no país. O resultado das urnas para a eleição dos constituintes, em maio último, teve nítida inclinação progressista. Contudo, o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais (ocorridas em 21 de novembro) apontou como mais votado o candidato da extrema-direita Jose Antonio Kast, seguido pelo postulante de esquerda Gabriel Boric. 

Embora a disputa ainda esteja em curso, o caso é emblemático. A extremaa-direita chilena consegue captar medos populares de uma suposta desordem patrocinada pelos movimentos de massa, além de insuflar sentimentos racistas contra índios mapuches e imigrantes da Bolívia e do Peru. 

Kast também associa o desemprego à presença de imigrantes pobres no país, enfatizando supostas soluções radicais. Apesar da esquerda sempre denunciar as causas estruturais para os dilemas que o país atravessa, seu discurso não tem sido suficientemente convincente para sensibilizar uma base popular ampla. 

 

Bolívia e as ameaças da direita

Em novembro de 2019, a Bolívia sofreu um duro golpe de Estado, que forçou a renúncia do presidente Evo Morales, no poder desde 2006. A intentona envolveu uma articulação do exército, da polícia e dos chamados comitês cívicos da burguesia boliviana. Trata-se da ruptura do que foi chamado de proceso de cambio (processo de mudança), iniciado pelo governo Morales, e que trouxe diversos avanços sociais, econômicos e políticos para o povo boliviano. Sob o governo golpista de Jeanine Añez, foram feitas concessões ao agronegócio e ao grande capital, havendo tentativas de privatizações de empresas públicas.

O governo de Añez durou 11 meses, se encerrando com a eleição de Luís Arce – ex-ministro da economia de Morales – com 55% dos votos. O novo presidente vem buscando mecanismos para impedir um novo golpe. Na semana de 8 a 14 de novembro, uma série de ações violentas organizadas pelos comitês cívicos bolivianos contra a lei 1.386 aprovada em agosto, sobre ganhos ilícitos e financiamento do terrorismo, mostrou que a democracia não está assegurada no país. Com pregações de “derrubar o governo”, “fechar o parlamento”, e chamados para que o exército e a polícia se juntassem às movimentações (assim como aconteceu em 2019), o caso tornou-se preocupante. Nas redes sociais e na mídia, são espalhadas notícias falsas sobre a nova lei, como se fosse um dispositivo expropriante e contrário às camadas populares. Para Arce,  a “única coisa que eles querem, a única coisa que eles procuram é a impunidade pelo que aconteceu com o golpe de Estado”.

No dia 23 de novembro iniciou-se uma marcha de seis dias em Caracollo, no departamento de Oruro, organizada pelo MAS, partido de Arce e Morales, rumo a La Paz (totalizando 200 km de extensão) A base popular se organiza em defesa do governo.

 

O caso do Peru

Após anos sendo governado por setores conservadores e de vertente neoliberal, em junho de 2021 os peruanos elegeram Pedro Castillo para comandar o país pelos próximos cinco anos. Pouco cotado no início da corrida eleitoral, Castillo venceu Keiko Fujimori, de extrema-direita, num segundo turno extremamente disputado. Entretanto, pode-se dizer que o novo mandatário vem encontrando uma série de dificuldades para colocar seu plano de governo em ação, em um contexto de crise política crônica e com quase nenhum controle da assembleia nacional. Pedro Castillo teve suas mais importantes ações e nomeações bloqueadas pela oposição, entrou em rota de colisão com seu partido e passou a correr sérios riscos de ser derrubado. 

Desde que tomou posse em julho de 2021, Pedro Castillo já efetuou diversas mudanças em cargos ministeriais. Com o intuito de angariar maior governabilidade em uma assembleia constituída em sua maior porção por partidos de direita, o presidente substituiu alguns de seus ministros considerados da ala mais à esquerda, entre eles Guido Bellido, que ocupava o equivalente à chefia da Casa Civil.

Com a saída de Guido Bellido do governo, Vladmir Cerrón, presidente do Peru Libre, partido do presidente, se voltou contra Castillo, acusando-o de ter se rendido ao neoliberalismo, num ato de traição àqueles que o elegeram. Na votação que aprovou a substituta de Bellido  – Mirtha Vásquez, ex-presidente do congresso e considerada moderada – o Peru Libre anunciou que não apoiaria o novo gabinete, numa situação em que 15 dos seus 35 congressistas votaram contra a nova composição.

A cisão de Pedro Castillo e Vladmir Cerrón fragilizou a base governista, que vem sendo pressionada cada vez mais pela extrema-direita. Ainda remoendo a derrota no processo eleitoral, forças direitistas entraram com um pedido de destituição do presidente no dia 25 de novembro. 

A Constituição peruana carrega um mecanismo um tanto quanto controverso: a moção de vacância contra o presidente por incapacidade moral ou física atestada pelo congresso, descrita de maneira extremamente vaga no que concerne aos critérios utilizados para basear tal decisão. Este mecanismo, o mesmo utilizado para remover Martin Vizcarra do poder em 2020, foi agora levado invocado como clara tentativa de golpe articulado por 28 deputados dos partidos de extrema-direita Fuerza Popular e Renovación Popular. Para o processo de destituição seguir adiante, são necessários 52 votos dos 130 deputados, e para concretizar a remoção do presidente, seriam necessários 87 votos. 

A vitória de Castillo mexeu com as estruturas do neoliberalismo peruano, inclusive reacendendo os setores mais reacionários e extremistas. Keiko Fujimori, adversária de Castillo no segundo turno, incorporou o atual receituário da extrema-direita latino-americana: vestiu a camisa da seleção nacional de futebol, ressuscitou o fantasma do comunismo e questionou a lisura do processo eleitoral, dando os ingredientes necessários para o aparecimento de movimentos ditos nacionalistas, que passaram a se manifestar em Lima a partir da confirmação do resultado do primeiro turno da eleição presidencial. Desde junho de 2021, grupos de extrema-direita passaram a utilizar a Cruz de Borgonha, um símbolo do Império Espanhol, em manifestações pelas ruas de Lima. Num movimento semelhante ao dos apoiadores de Jair Bolsonaro – que frequentemente exibem a bandeira do Império do Brasil -, os extremistas peruanos alegam estar enfrentando o globalismo, o comunismo e o indigenismo. Grupos como La Sociedad Patriotas del Perú e La Resistencia se colocam como defensores da pátria, da família e da liberdade e contrários a o que chamam de “marxismo cultural”, pautados em concepções racistas, homofóbicas e xenofóbicas. 

 

Similaridades entre Bolsonaro e a direita latino-americana

Enganam-se os que pensavam que Bolsonaro estaria isolado regionalmente por sua política regressiva. Lideranças em ascensão na região evidenciam suas similaridades com o presidente brasileiro e até compartilham sua admiração pelo mesmo. Fato é que se observa uma consolidação de uma terceira fase de personagens da extrema direita no hemisfério, sendo Trump e Bolsonaro gatilhos para essa nova geração. 

Tais líderes, da mesma maneira que Bolsonaro, reativam símbolos e discursos dos primeiros movimentos de extrema direita e dos regimes militares das décadas de 1970 e 1980 da América Latina. Dessa forma, demonstram e incitam a fobia à esquerda e se posicionam como lideranças a favor da defesa da ordem, em contextos de aprofundamento das crises institucionais e da legitimidade dos sistemas democráticos na região.

Entretanto, ao contrário de Jair Bolsonaro, líderes como Javier Milei e Jose Antonio Kast não se apoiam nos setores militares de seus países, inclusive tentam não se vincular a estes. Bolsonaro, por sua vez, é cria dos militares e grande parte do contingente da burocracia estatal de seu governo é ocupada por integrantes das Forças Armadas. Um ponto de semelhança entre os demais líderes latinos e Bolsonaro é o uso intensivo das redes sociais para a propagação de seus discursos e ideias, bem como para se conectar cada vez mais com seu eleitorado e com a população. 

A presença nas redes sociais revela-se, portanto, uma estratégia bastante efetiva para lançar lideranças até então não tão conhecidas pelo povo e, justamente por isso, atraem enorme curiosidade e interesse dos usuários. 

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